Vi a sugestão deste livro Sumud em tempos de genocídio numa “live” sobre geopolítica. Antes de tudo considero uma leitura necessária, embora difícil nesses tempos de distopias.
A autora é a médica psiquiatra palestina, Samah Jabr, de 49 anos que nasceu na Jerusalém Oriental. Jabr é chefe da Unidade de Saúde Mental do Ministério da Saúde da Palestina. Atua nos setores público e privado e também já lecionou em diversas universidades palestinas, sendo ainda afiliada à Universidade George Washington no Departamento de Saúde Mental Global, como professora clínica associada de Psiquiatria e Ciências do Comportamento.
Os vários textos deste livro “Sumud em tempos de genocídio” é
uma compilação organizada e traduzida pela psicoterapeuta, Rima Awada Zahra, a
partir dos escritos da Dra. Samah Jabr. Se tratam de textos escritos
na mídia daquela região (em especial Middle East Eye) sobre as consequências traumáticas
da ocupação israelense na saúde mental dos palestinos desde 2000, envolvendo
ainda textos mais recentes de 2024, já sob o trauma do atual genocídio em Gaza.
São textos que mostram a “urgência de se conhecer o lado palestino que vem
sendo submetido à violência atroz com efeitos devastadores na saúde individual
e coletiva daquela população”. O livro foi publicado em 2024, pelo selo Tabla
da editora Roça Nova, Rio de Janeiro.
São relatos humanamente difíceis de serem aceitos sobre a
ocupação e a saúde mental do povo palestino; o trauma colonial e
intergeracional; a psicopatologia desencadeada por prisão e tortura
(adolescência aprisionada); mas especialmente, sobre resistência, resiliência e
solidariedade, em que a autora destaca o papel coletivo e comunitário, além do
tratamento individual, como opção para o apoio psicológico deste trauma
histórico palestino.
Aliás, os vários textos vão dando clareza ao termo “sumud” cunhado
pelos palestinos e que “expressa a essência desse povo” e que deu título ao
livro. Segundo destaca a organizadora, para a autora Dra. Samah Jabr “sumud não
significa apenas a capacidade de sobreviver ou a habilidade de se restabelecer para
lidar com o estresse a adversidade, mas sumud é a disposição de manter um
desafio inabalável à subjugação e à ocupação”. “Sumud não é uma característica
inata ou a consequência de um único evento na vida (trauma), mas um sistema de
habilidades e hábitos que são apreendidos e podem ser desenvolvidos”. Uma
espécie de estilo de vida voltado para a resistência.
Os relatos dos dois primeiros capítulos em especial, com descrição
dos sintomas no consultório (clínica psiquiátrica, postos de saúde, rua, etc.) são
muito fortes revelando não apenas a depressão e ansiedade de vários tipos, mas
a forma como a opressão permanente quase totalizante opera na saúde das
pessoas.
A doutora Jabr, escreve ao final do primeiro texto logo depois
do prefácio e da introdução do livro: “nem todo mundo que vem me ver é um
paciente. Nem toda dor ou queixa é um sintoma. Nem todo ajuste é um distúrbio. Tento
ajudar as pessoas a darem sentido a suas experiências dolorosas, criando uma
narrativa que valide a complexidade de sua situação frente aos poderes
opressivos, em vez de rotulá-las com um código de diagnóstico”.
A autora insiste em várias passagens que não aceita e
questiona o conceito ocidental de "Transtorno de Estresse Pós-Traumático" (classificado
como TEPT) que muitas vezes obriga a restringir a complexa história de um
paciente ao limitado código da Classificação Internacional de Doenças (CID).
Ela considera importante “explorar noções que considera importantes como jihad,
chahid, sacrifício, traição, honra, sumud, resistência, pátria, solidariedade e
outras conceituações relevantes para a visão Palestina de libertação”. Para
ela, “a libertação da mente, por meio da terapia, sensibilização e consciência
crítica, é projeto fundamental”.
“Os traumas que mais prevalecem na Palestina, são causados
de forma deliberada e o causador jamais é responsabilizado, o que multiplica os
efeitos da lesão com a impunidade que culpa as vítimas pelo trauma sofrido”.
Assim, a culpa e a vergonha complicam ainda mais qualquer tratamento, porque as
pessoas passam ter vergonha de compartilhar seus problemas e medo de expor suas
questões individuais por conta dos riscos de seus prontuários serem descobertos
pelos algozes.
A Dra. Jabr também questiona a individualização desses
problemas e a falta de conhecimento social do trauma, de modo que sobreviventes
isolados são desencorajados a procurar ajuda. A psiquiatra sugere assim “ir
além de tratar o trauma individual forjado na violência política que é apenas
parte da longa jornada de cura que enfrenta toda a comunidade palestina”, mas
insiste que é preciso ir além em termos coletivos: “é necessário recuperar do
trauma retomando nossa normalidade perdida por meio de sistemas culturais e
sociais... que permanecem adormecidos sob a ocupação. Esse trabalho não pode se
desenvolver de modo pleno somente no consultório, mas requer uma ampla
renovação coletiva da vida psicológica sob condições de autonomia e justiça”.
No presente, um livro mais que necessário, não apenas como
forma de solidariedade ao povo palestino (razão do último capítulo), para se conhecer
melhor e sob sua ótica, seus graves problemas e sofrimentos, mas também para se
compreender melhor a violência das guerras, do ódio e as psicopatologias que
nos cercam nesses difíceis períodos da humanidade.