sábado, novembro 18, 2017

Revisitando o noroeste fluminense (I): eixo Muriaé por Soffiati

O ecologista e professor Aristides Arthur Soffiati voltou a percorrer a região Noroeste Fluminense guiando pesquisas de campo. Como um dos desdobramentos deste trabalho, Soffiati nos brindará com um relato que será dividido em partes.

Soffiati como um bom mestre vai guiando o nosso olhar para melhor observar as alterações que o homem (sujeito - antropo) vai realizando na natureza. Repete na descrição - e nas fotografias - aquilo que detalhou para aqueles que o seguiam como professor de campo pela região Noroeste Fluminense.

Para melhor visualização da galeria de fotos que Soffiati apresenta na sua revisitação ao Noroeste Fluminense, o blog fez questão de publicar as fotos no maior tamanho possível. Enfim, viajemos sob o olhar ambientalmente por esta região que merece atenção tendo como guia o mestre Soffiati:


Revisitando o noroeste fluminense (I): eixo Muriaé
Arthur Soffiati

Certa vez, numa palestra, perguntaram-me como a terra chega ao topo de um morro para permitir o desenvolvimento de florestas. Algumas perguntas são constrangedoras porque as respostas revelam que o questionador ignora questões básicas. Um morro pedregoso sofre bombardeios de chuva e sol. É o que se chama de intemperismo. Um morro não pode se esconder dos fenômenos naturais de ordem física, química e biológica. Ao longo de muito tempo, a pedra se quebra e se pulveriza, formando a base do solo. Insetos, aves e mamíferos semeiam a pedra pulverizada. As plantas lançam galhos e folhas mortas que se decompõem e formam solo adubado. As árvores crescem e retêm o substrato. Trata-se de um processo de retroalimentação a longo prazo.

Então, certas economias removem a floresta e a substituem por lavouras e pastagens. A economia de mercado instalada no Brasil e, por conseguinte, no norte e noroeste fluminenses ultrapassou os limites de resiliência, ou seja, de recomposição. Particularmente, o território que hoje constitui o noroeste fluminense, na margem esquerda do rio Paraíba do Sul, caracteriza-se por elevações de baixa altitude. Os dois rios principais a drenarem e a irrigarem a região são o Pomba e o Muriaé. A vegetação nativa que aí se desenvolveu é a floresta estacional semidecidual atlântica, uma espécie de mata atlântica mais seca que perde até 50% de suas folhas na estação seca do ano. É estacional por estar sujeita às oscilações climáticas das estações. É semidecidual por perder parte das folhas (VELOSO).

Os autores que nos informaram sobre o Noroeste Fluminense no passado, quando ele ainda não tinha esse nome, foram Manoel Martins do Couto Reis, Antonio Muniz de Souza e Manoel Basílio Furtado. Couto Reis escreveu, em 1785, que “o Rio Muriaé (...) tem avultado curso e belíssima navegação até o primeiro cachoeiro, e ainda passado este, mais acima um bom espaço, depois do que são repetidas as itaupevas que dificultam a passagem (...) São as suas margens abundantíssimas de varjarias excelentes em terreno alto, porém, ainda assim com excelentíssimas baixadas, de onde se geram longos brejais que se comunicam com outros igualmente dilatados. A sua parte oriental até perto do primeiro cachoeiro está muito bem povoada de engenhos”. O capitão cartógrafo, no entanto, esclarece que não navegou o rio por enfrentar problemas.

Já Muniz de Souza subiu o rio Muriaé no dia 5 de fevereiro de 1828. Ele era um sergipano autodidata que residiu em Campos nos anos de 1827 e 1828. Ele ficou encantado com as fazendas, os engenhos e as olarias, que já subiam o rio. O sergipano contou 48 engenhos no eixo do Muriaé. Deve-se esclarecer que os engenhos daquela época eram pequenos em relação às usinas. Os disfarçados morros a que ele se refere no seu relato têm coloração vermelha e amarela. Ele ainda não havia alcançado a região serrana, mas apenas os tabuleiros. Em suas palavras, o rio Muriaé é ladeado por margens com extensas vargens, muitos brejos nutritivos excelentes para a criação de gado. Registra também o cultivo de mandioca, feijão e arroz. E as matas? O autor se maravilha com as frondosas árvores. A hoje denominada floresta estacional semidecidual atlântica cobria os tabuleiros e a serra. Mas ele já vê brechas nas florestas e vislumbra o maior aproveitamento econômico do vale.

Manoel Basílio Furtado, excursionou nas bacias do Itabapoana e Itapemirim, em 1875, cem anos após Couto Reis. Costumo usar a noção de Ecorregião de São Tomé para designar o território que se estende do rio Macaé ao rio Itapemirim. Quem examinar com atenção este espaço notará que ele apresenta unidade. Na borda da zona serrana, entre a margem esquerda do rio Paraíba do Sul e a margem direita do rio Itapemirim, estendem-se vastas terras de tabuleiros. Em alguns pontos, o tabuleiro encosta no mar, separado apenas pela fímbria arenosa da praia. Na margem esquerda do rio Itabapoana, formou-se a pequena restinga de Marobá, numa reentrância da costa. Do rio Guaxindiba ao rio Paraíba do Sul, encontra-se a porção setentrional de uma grande restinga. No município de Quissamã, existe uma pequena amostra de tabuleiros. Esta configuração geológica tem explicação, que não cabe agora explicar. Que nos contentemos em examinar o mapa abaixo.

1- Ecorregião de São Tomé

O intervalo de um século entre Couto Reis e Manoel Basílio mostra que não houve mudanças profundas no ambiente. Montes cobertos por florestas, vales com vegetação herbácea e muita umidade, rios com grande vazão mesmo nos períodos de estiagem, biodiversidade florística e faunística de notável riqueza. Mas cicatrizes causadas pela mineração e pela agropecuária. As cidades praticamente inexistiam. Os aglomerados humanos não passavam de povoados.

Por um tempo razoável, não visitei o Noroeste Fluminense com olhar observador. Estive lá em novembro de 2017 com a professora Adriana Filgueira, da Universidade Federal Fluminense. Planejamos quatro excursões. A primeira seguindo o eixo do rio Muriaé; a segunda acompanhando o eixo Paraíba do Sul-Pomba; a terceira acompanhando o rio Itabapoana e o quarta trilhando o vale do rio Itapemirim.

Na primeira excursão, saímos de Campos e seguimos a BR-356 até Itaperuna, passando por Cardoso Moreira e Italva. De Itaperuna, rumamos para Varre-Sai. O que mais nos chamou a atenção foi a secura. Embora no início da estação chuvosa, a seca é inclemente. Na verdade, a grande seca de 2014-15 não foi compensada com as chuvas de 2016-17. O balanço hídrico tem sido negativo em toda a Região Sudeste. 

2- Rio Muriaé entre Cardoso Moreira e Italva. Estiagem severa



























A vazão do Muriaé está muito reduzida. Na zona rural, pequenos afluentes seus não contam mais com água. Seus leitos ressecados estão expostos. Os pequenos cursos d’água cercados por núcleos urbanos são alimentados por esgoto.

3- Aspecto do ribeirão Santa Cruz, em Varre-Sai, com canos de esgoto nas margens























4- Rio Muriaé em Itaperuna, com margem invadida pela cidade






























Chama a atenção, também, o grau de supressão da vegetação nativa, ou seja, o desmatamento. Com a instalação da agropecuária, as florestas foram substituídas por monoculturas e pastagens. Não se trata de defender a integridade absoluta das florestas, mas, em nome da economia e do desenvolvimento, as atividades rurais avançaram mais do que deviam. Antes, as florestas não só protegiam o solo das intempéries e reduziam a erosão, como também acumulavam água, reduzindo o impacto das enchentes e das secas.

5- Desmatamento, secura de fragmentos florestais e erosão




























6- Erosão intensa




























Em São José de Ubá, não basta desnudar o solo com a remoção das matas. Arranca-se a pele e a carne dele com a mineração de calcário. Em outros lugares, os morros são cortados para o fornecimento de material para elevação do leito de ruas e estradas e para a expansão urbana em áreas de risco.

7- Corte na encosta para transferência de material. Varre-Sai




























8- Varre-Sai escalando elevação com plantação de eucalipto




























Nenhuma encosta tem sido poupada da agricultura, da pecuária e da urbanização. Em Varre-Sai, o café e o eucalipto têm sido implacáveis com as florestas. Na maior parte das outras, o gado sobe o morro com suas patas provocando erosão laminar.

9- Cidade, café e eucalipto em Varre-Sai
10- Pastagem pobre e erosão em encosta. Varre-Sai


Por fim, a urbanização. No Noroeste Fluminense, Itaperuna, Santo Antônio de Pádua e Bom Jesus do Itabapoana já alcançaram a dimensão de metrópoles regionais, com todos os problemas das grandes cidades e com as carências de uma cidade pequena. Geralmente, as cidades impermeabilizam o solo com seu asfalto e suas construções, avançam sobre encostas e rios, produzem muito esgoto e muito lixo sem que eles tenham a destinação adequada. Daí as enchentes, os deslizamentos, a poluição hídrica e a poluição do solo.


11- Adensamento e verticalização urbana. Varre-Sai




























12- Aspecto do rio Muriaé em Itaperuna




























13- Poluição por resíduo de lentíssima decomposição




























Leituras adicionais

FURTADO, Manoel Basílio. Itinerário da Freguesia do Senhor Bom Jesus do Itabapoana à Gruta das Minas do Castelo. Campos dos Goytacazes: Essentia, 2014.

REIS, Manoel Martins do Couto. Descrição Geográfica, Política e Cronográfica do Distrito dos Campos Goitacás que por Ordem do Ilmo e Exmo Senhor Luiz de Vasconcellos e Souza do Conselho de S. Majestade, Vice-Rei e Capitão General de Mar e Terra do Estado do Brasil, etc se Escreveu para Servir de Explicação ao Mapa Topográfico do mesmo Terreno, que debaixo de dita Ordem se Levantou. Rio de Janeiro: manuscrito original, 1785.

SOUZA, Antonio Muniz de. Viagens e observações de um brasileiro. Salvador: IGHB, 2000.

VELOSO, Henrique Pimenta; RANGEL FILHO, Antonio Lourenço Rosa e LIMA, Jorge Carlos Alves. Classificação da vegetação brasileira, adaptada a um sistema universal. Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1991.

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