sexta-feira, julho 15, 2016

Entrevista com o pesquisador Julio Oliveira: “A carência habitacional aqui é histórica e vinculada a um passivo social revelado na integração periférica de grande parte das famílias ao ambiente urbano”

As Políticas Públicas são a razão de ser da gestão administrativa para as quais elegemos nossos representantes para o Executivo e o Legislativo nas três esferas de governo. É com esta preocupação em estimular o debate sobre a gestão, especialmente num período pré-eleitoral, que o blog foi ouvir o sociólogo e doutor em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), Julio Cezar Pinheiro de Oliveira.

Julio atualmente é professor do IFF no Campus Avançado Cambuci, mestre em Políticas Sociais (UENF) e defendeu sua tese no início deste ano com o título: “Poder local, royalties e política: um Estudo Comparativo sobre a centralidade do Governo Local na definição das estratégias de enfrentamento da problemática habitacional nos Municípios de Macaé e Campos dos Goytacazes”.

As análises e abordagens que o professor/pesquisador Julio Oliveira faz do tema é bastante interessante e contribui em muito para aprofundar o debate sobre planejamento urbano, habitação e as demandas da população não apenas em nossos municípios petrorrentistas. Confira:

Blog: Como você vê a expansão das políticas habitacionais na Região Norte Fluminense, sobretudo aquelas financiadas pelo poder local, desde o início do crescimento do repasse dos royalties em 1998?
Julio Oliveira: A região Norte Fluminense traz em sua história componentes básicos de exclusão social sobre os quais a nossa sociedade foi fundada. A carência habitacional aqui é histórica e está vinculada diretamente a existência de um passivo social histórico que se revela na integração periférica de grande parte das famílias ao ambiente urbano. Então aqui é facilmente perceptível a convivência de porções territoriais nas cidades extremamente enriquecidas em contraponto à espaços de pobreza.

Apesar de alguns gostarem de acreditar que a intervenção urbana com a construção de habitação social parte de benesses deste ou daquele político ou grupo político, ela antes de tudo é a construção de um processo histórico de luta de famílias e pessoas que levaram até o poder público local suas necessidades. Em Campos, por exemplo, onde hoje se encontra o Conjunto Habitacional da Aldeia em 1998 foi feita uma grande ocupação daquelas terras pelas famílias que viviam entre as margens do Rio Paraíba e da BR 356 (Campos x Itaperuna). Aquelas famílias inauguram naquele momento, com a ajuda do MST, um grande movimento de resistência e conseguiram ser atendidos pelo poder local com a construção de moradias. Então a partir daquele momento a habitação social passou a ser vista com outros olhos pelos governantes que nos recursos provenientes dos royalties do petróleo uma base de financiamento robusta. A habitação social então ganha destaque como uma política de grande visibilidade por atender diretamente ao imaginário de grande parte das famílias brasileira que é se tornar proprietários a partir da realização do “Sonho da Casa Própria”.

Outra questão importante que conduziu a região para uma verdadeira crise urbana foi a sua abrupta inserção como centro da cadeia produtiva do petróleo da Bacia de Campos. Uma característica marcante deste processo foi que ele se baseou na atratividade de mão de obra e na seletividade de distribuição dos benefícios da economia do petróleo. Além disto, nossas cidades não estavam preparadas para recepcionar o contingente de pessoas e investimentos oriundos do setor de petróleo e gás, portanto o que se viu foi o aprofundamento da desigualdade o que acirrou a crise urbana nos municípios da região, sobretudo em Macaé.  

Blog: E o poder local como atuou neste processo?
Julio Oliveira: Nos casos que eu analisei, Campos e Macaé, ficou patente a centralidade que os impactos que a cadeia produtiva do petróleo possuem na definição da formatação das políticas públicas. Então, o poder local em Macaé buscou concentrar seus esforços em adequar o município as necessidades de circulação de bens e serviços gerados pela indústria do petróleo. Segundo os ex-prefeitos de Macaé, a indústria do petróleo e seus impactos vêm consumindo grande parte do orçamento municipal principalmente na dotação de infraestrutura viária.

No caso de Campos, como o município não vem sofrendo de forma aprofundada os efeitos das instalações industriais não há uma preocupação em preparar o município para receber investimentos nos mesmos moldes que em Macaé. Estes fatos repercutiram diretamente na tomada de decisão sobre o modelo de política da habitação social implementado por cada município: autonomia e parceria. Então Campos utilizou em larga escala seus recursos para promover políticas de forma autônoma, mesmo quando existiam a possibilidade de se fazer parcerias com as demais níveis de poder. Já Macaé que passou por um grande período de isolamento político, a partir de 2005 consegue reverter esta situação com o alinhamento político tanto com o governo estadual, quanto o governo federal, permitindo a viabilização de investimentos por meio de políticas descentralizadas e linhas de financiamento. Macaé montou um estrutura administrativa exclusiva para este fim, mesmo que isto em algum ponto tenha representado um retrocesso na sua autonomia administrativa e na possibilidade de atender as especificidades dos seus problemas locais.

Blog: Com o PMCMV (Programa Minha Casa, Minha Vida) Macaé perdeu então sua autonomia na gestão das Políticas Habitacionais?
Julio Oliveira: Em parte sim. Pois este é um problema central do PMCMV (Programa Minha Casa, Minha Vida), ele retira do poder municipal grande parte da sua autonomia em estabelecer políticas urbanas e entrega diretamente ao setor empresarial. Este fato aliado ao processo de segregação sócio espacial imposto pela principalmente pela indústria do petróleo e o intenso processo de especulação imobiliária que a seguiu, vem aprofundando a segmentação e a especialização do tecido urbano na cidade de Macaé. Então vamos ter o direcionamento da construção dos conjuntos populares em áreas afastadas, pouco valorizadas e deficitárias em serviços públicos. Outro problema do PMCMV é a sua forma homogênea de atuação que preconiza apenas a construção de unidades habitacionais. Por não atender às famílias com reformas ou mesmo a com requalificação urbana, o programa vem sendo acusado de ser um instrumento para remoção de comunidades.

“É impossível não associar a política urbana do Morar Feliz com conexões com o jogo imobiliário e a valorização de algumas áreas do município. Observa-se a dispersão e a formação de enclaves desconectados da vida social e econômica do entorno”.

Blog: Como você verifica o desempenho do Morar Feliz em Campos?
Julio Oliveira: Eu acredito que o Morar Feliz devido a sua complexidade e sua meta ambiciosa de produção massiva de moradias deve ser observado sobre diferentes ângulos. Este programa se consolidou como ponto central da política urbana de Campos oferece uma ampla gama de situações e conexões que ensejam bastantes críticas. Por ser uma tomada de decisão política com uma forte vinculação eleitoral, digo isto por ele ter sido a principal promessa política de Rosinha tanto na sua eleição em 2008, quanto na reeleição em 2012, ele trás consigo uma série de vícios de origem que acabaram impactando negativamente o seu desempenho. No meu entendimento a meta estabelecida pelo Morar Feliz nasce de um grande equivoco, pois o que esta postura trouxe foi uma produção massiva de moradias que colocou a disposição do poder local um grande estoque de moradias populares. Então atualmente qualquer comunidade em Campos corre o risco de ser varrida do mapa pelo fato de existir a possibilidade de transferir estas famílias para estes enormes conjuntos habitacionais.   O que decide hoje se uma comunidade será ou não removida é a declaração por critérios pouco objetivos de que esta ou aquela comunidade se encontra em uma área de risco. Por outro lado, é impossível não associar esta política urbana com conexões com o jogo imobiliário e a valorização de algumas áreas do município. Ao observar a dispersão dos Conjuntos do Morar Feliz não se percebe apenas a formação de enclaves desconectados da vida social e econômica do entorno, mas sim ações deliberadas que visam a expansão das fronteiras urbanas do município a partir da dotação de infraestrutura urbana de caráter essencial. Estes conjuntos acabam funcionando como frentes pioneiras que cedo ou tarde irão forçar o poder público a dotar estes espaços com novos investimentos. Isto irá fazer com que invariavelmente as glebas circunvizinhas se valorizem.

Blog: O que em sua opinião diferencia o Morar Feliz das outras experiências de políticas habitacionais que já foram implementadas no Brasil ou que ainda estão em vigor como o PMCMV?
Julio Oliveira: Olhando a experiência do Norte Fluminense foi possível verificar que Macaé por não optar por um programa próprio foi obrigado a cumprir um série de exigências feitas pelo governo federal para ter acesso à programas habitacionais. Assim o município pode contar com recursos oriundos do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Isto implicou diretamente na necessidade de racionalização de algumas decisões e práticas políticas no município, como por exemplo, a criação do Plano Local de Habitação de Interesse Social em 2009, justamente como uma contrapartida por fazer parte do Sistema Nacional da Habitação de Interesse Social, e também teve que realizar prestações de contas aos órgãos de controle. Com a chegada do PMCMV algumas regras para o financiamento habitacional foram tornadas menos rígidas. Uma das poucas contrapartidas se resumem à dotação de infraestrutura urbana no entorno dos conjuntos habitacionais e a desregulamentação da legislação construtiva e de zoneamento urbano. Contudo, o programa do governo federal exige que as famílias a serem beneficiadas façam parte do Cadastro Único de programas sociais, este fato afasta um pouco o perigo da influência político-eleitoral da escolha das famílias que serão atendidas. O Programa Morar Feliz por ser um programa financiado com recursos municipais escapa a toda esta lógica não tendo que atender a nenhum critério de controle por nenhum órgão externo, soma-se a isto uma das marcas dos governos campistas que é a falta de transparência e controle social dos gastos públicos.

Blog: Quais seriam os motivos levaram o governo de Campos a optar por não fazer parte do PMCMV até 2014?
Julio Oliveira: As condições para a adesão de Campos ao MCMV já existiam desde o lançamento do programa. Porém, a opção política do governo municipal foi de tocar um programa habitacional de forma solitária se deve principalmente à disponibilidade de recursos no caixa da prefeitura. Além disto, os programas habitacionais possuem pouca resistência entre todos os setores sociais, ainda mais quando estes programas estão comprometidos com a desfavelização. Assim, os principais argumentos alegados pelos responsáveis pela política habitacional de Campos é que o Minha Casa, Minha Vida era extremamente burocrático e que as formas construtivas do Morar Feliz eram notadamente superiores ao programa do governo federal.

“Em Campos se desdobrou duas características essenciais sobre os grupos que vêm se revezando no poder: a necessidade de se estabelecer pactos políticos multidirecionados e a busca por autonomia frente ao controle de gastos e investimentos públicos... se perdeu uma grande oportunidade de fazer um programa habitacional que dialogasse com a população a ser atendida por ele”

Do meu ponto de vista estes argumentos não se sustentam, principalmente sobre a existência dos trâmites burocráticos que inviabilizaram o programa em Campos, sendo que municípios no próprio Estado do Rio Janeiro com menor a capacidade administrativa, em comparação com a Campos, realizaram investimentos junto o PMCMV na faixa de 0 a 3 salários mínimos. A questão em Campos se desdobra em duas características essenciais sobre os grupos que vêm se revezando no poder: a necessidade de se estabelecer pactos políticos multidirecionados e a autonomia frente aos mecanismos de controle de gastos e investimentos públicos. O Morar Feliz foi estabelecido sobre uma estrutura administrativa montada exclusivamente para ele, onde se descartou todo e qualquer conhecimento prévio existente no interior da administração pública. A própria EMHAB, concebida em 1992 por Anthony Garotinho para gerir os projetos habitacionais, vem tendo um papel coadjuvante no Morar Feliz. A decisão política que deu origem ao Morar Feliz optou em centralizar as decisões sobre o programa na Construtora (que se encontra no centro das investigações da operação Lava-Jato) e em uma empresa de planejamento e engenharia. Então se perdeu uma grande oportunidade de fazer um programa habitacional que dialogasse com a população a ser atendida por ele.

Blog: No último mês parece que o cenário das políticas habitacionais modificou um pouco e tivemos a inauguração do primeiro conjunto habitacional do PMCMV voltado para as classes populares, que contou com a parceria do governo municipal de Campos. O que mudou em relação às parcerias?
Julio Oliveira: Esta questão é um tanto quanto complexa, pois não há muita transparência na tomada de decisões dos gestores municipais em Campos. Porém, sem sobra de dúvida esta parceria vem como um efeito da queda de arrecadação dos royalties. Por se constituir como uma promessa político-eleitoral considerada como uma marca de um governo torna-se necessário cumprir em sua totalidade ou em números bastante próximos disto. Então estas moradias do PMCMV provavelmente serão contabilizadas como realização do governo municipal.

O Morar Feliz hoje está praticamente paralisado, basta observar os canteiros de obras esvaziados. Então para se chegar a um número próximo ao montante de moradias prometidas foi necessário lançar mão desta parceria. Porém, é importante ressaltar que a contratação destas moradias foi feita entre 2013 e 2014, assim já existia a previsão de não se alcançar a meta do Morar Feliz antes mesmo da crise dos royalties. Outro interessante movimento feito pela prefeitura de Campos foi o de assumir as prestações das famílias que estão sendo atendidas pelo PMCMV, o que acabou representando uma economia para os cofres municipais. Cabe ressaltar, que os recursos que hoje representam esta economia saem do orçamento do município e não do montante reservado ao Morar Feliz, assim passamos a ter duas políticas habitacionais em vigência no município, atendendo ao mesmo segmento social com formas de atuação bastante semelhantes. Mesmo assim, a parceria com o MCMV talvez seja o principal elemento de racionalização dos gastos públicos feita por este governo desde 2009. Com uma simples decisão de viabilizar o cadastro das famílias sem moradia ou que viviam em condições precárias, e apresentá-lo ao governo federal foi possível fazer uma grande economia.

Uma questão interessante que pode ser levantada a partir desta mudança de postura, está vinculada diretamente a ausência de planejamento na questão habitacional em Campos. Pois a com as parcerias com Minha Casa, Minha Vida, este programa poderia ter sido mesclado com o Morar Feliz e assim atender de forma mais efetiva a questão habitacional em Campos a partir dos casos que não envolvessem necessariamente a remoção de famílias. A autonomia proporcionada pelos recursos dos royalties poderia ter proporcionado uma atuação mais ampla do Morar Feliz para além de um programa massivo de construção de moradia. Por fim, é importante salientar que na atual configuração dos programas e em suas formas de atuação, tanto PMCMV, quanto ao Morar Feliz reiteram o modelo clássico de criação de periferias, o que reitera e potencializa o afastamento e hierarquização urbana.

Blog: Para encerrar mesmo, uma pergunta de teor mais político e de poder: diante desta realidade seria possível afirmar que - mesmo no programa mais badalado destes dois mandatos do grupo político do Garotinho - a negação à participação popular na formulação e acompanhamento, torna uma boa Política Pública limitada e cheia de problemas? Pode-se dizer que este seria o principal viés político deste grupo?
Julio Oliveira: Esta questão é interessante principalmente pelo fato de que tanto o PMCMV, quanto o Morar Feliz, são projetos que concorrem pelo mesmo público alvo. Talvez isto seja o principal elemento que afastou a faixa popular do PMCMV de Campos por tanto tempo. No caso do PMCMV, segundo relatos do maior construtor do programa na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o programa foi formatado junto com os empreiteiros permitindo assim sua submissão aos anseios dos construtores e do mercado imobiliário. Então os compromissos políticos foram firmados primeiramente com os detentores do capital e não com a população que viria a ser atendida pelo programa. Mesmo assim, o PMCMV guarda um rascunho das discussões que vinham sendo construídas entre o governo e os movimentos populares. Um exemplo disto foi a constituição do PMCMV Entidades, que conta principalmente com a participação coletiva para a construção dos projetos habitacionais. Neste formato do programa a população a discute a localização dos conjuntos, tipologia de construção e divisão das unidades habitacionais, e o governo federal tem como contrapartida o financiamento.

No caso do Programa Morar Feliz, ele nasce exatamente do não debate entre o governo e a população, visto que ele foi concebido como uma promessa de campanha eleitoral. Quando a população foi convocada em 2009 para uma audiência pública sobre o programa, foi apresentado o programa já formatado, com o tipo de moradia e os locais onde eles seriam construídos, faltando apenas decidir quais comunidades seriam removidas. Então, se descartou desde o início o diálogo com a população, por isto o programa passou a sofrer resistências. O que se percebe neste programa é a forte marca do personalismo como elemento guia das ações sociais em Campos.  Este releitura politicamente empobrecida do varguismo vem sendo determinante na tomada de decisão sobre as políticas públicas, pois se trabalha com um forte componente midiático e com o não o estabelecimento de canais de participação popular, pois se acredita que a liderança política tem a capacidade de captar e operacionalizar a vontade popular. Esta postura então abre espaço para o descontentamento popular, pois as pessoas querem participar das decisões que irão delimitar o seu espaço de moradia, acesso a bens e serviços públicos e de reprodução social.

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