domingo, março 22, 2015

Soffiati em novo artigo trata da antiga geografia de nossa região com ênfase no Rio Paraíba do Sul

Confiram abaixo mais um artigo do historiador, pesquisador e ambientalista Aristides Soffiati. No detalhe do email que enviou com o artigo, ele explicou alguns do motivos que justificaram sua elaboração. Assim, eu tomo a liberdade de dar divulgação junto da íntegra do artigo:

"Várias pessoas têm me pedido informações sobre a antiga geografia da região. Acho até que os cursos de geografia e de história podiam pensar na criação de uma nova disciplina chamada geografia histórica e história geográfica."

Rio Paraíba do Sul por baixo e por cima

Arthur Soffiati
Por baixo

Ao deixar a zona serrana em Itereré, o Rio Paraíba passa a correr numa planície fluviomarinha que ele mesmo ajudou a construir associado ao mar. Esta planície colossal supera todas as obras construídas pela mão ocidental. De todas as baixadas do Estado do Rio de Janeiro, a do norte fluminense é a mais distinta em relação às planícies de Sepetiba, Barra da Tijuca, Baía de Guanabara e Região dos Lagos.

Primeiramente, é a mais extensa de todas. É considerável, nela, a distância entre a zona serrana e o mar. Por esta razão, as águas que provêm da serra demoram-se mais na Baixada Norte Fluminense. Se a planície fosse estreita como as de Sepetiba e Barra da Tijuca, a água das partes altas chegaria mas rapidamente ao mar. Se fosse tão próxima de serras altas, como na Baía da Guanabara, as águas de chuvas fortes correriam torrencialmente para o mar, não dispondo de tempo nem condições propícias para se infiltrar no terreno, sobretudo depois da intensa urbanização do entorno da Baía de Guanabara.

Mesmo nas cheias extraordinárias, as águas dos rios transbordam de seus leitos e encontram terreno poroso para se infiltrar. Mesmo sem transbordamento, suspeita-se, desde 1819, que as águas do Paraíba do Sul alimentam o lençol freático, notadamente pela margem direita, mais baixa que o nível normal do Rio Paraíba do Sul. Isto significa que, nas cheias, as águas que transbordavam por esta margem não voltavam mais ao rio quando da normalização do nível. José Carneiro da Silva lança esta hipótese em 1819. Luís Henrique de Bellegarde Niemeyer confirma a hipótese. O engenheiro sanitarista Francisco Saturnino Rodrigues de Brito corrobora com mais elementos técnicos a hipotética ligação do Rio Paraíba do Sul com a Lagoa Feia, na década de 1920.

Em 1969, um macroprojeto da Engenharia Gallioli encomendado pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento observa que a água evaporada da Lagoa Feia superava em m³ a água recebida pelos Rios Macabu, da Prata, Ururaí e Canal de Tocos, os principais contribuintes do grande ecossistema lagunar. Os engenheiros se perguntaram, então por que a Lagoa Feia não secava, se o volume de água perdido pela evaporação e pelo Canal da Flecha era superior ao volume recebido pelos tributários. A resposta foi a confirmação da ligação subterrânea do Rio Paraíba do Sul com a Lagoa Feia. Que eu saiba, porém, a medição do volume de água que circula no lençol freático, tanto quanto o teor de evaporação dos ecossistemas aquáticos, nunca foram feitas. Se não foi, deveriam ser executadas por alguma instituição pública de pesquisa.

É importante este tipo de conhecimento numa região tradicionalmente encharcada de água pela longa permanência dela e que transita de um regime superúmido para um regime semiárido no presente.

Se os estudos se concentram na margem direita, na margem esquerda eles escasseiam. Hildebrando de Araujo Góes delimita a Baixada da Campista entre a margem direita da foz do Paraíba do Sul à margem esquerda do Rio Macaé. Numa demarcação mais rigorosa, a restinga de Paraíba do Sul se estende até as adjacências de Manguinhos, na margem esquerda do Rio Paraíba do Sul. Por outro lado, as unidades de tabuleiro em Quissamã e em São Francisco de Itabapoana têm intrínseca ligação com a planície fluviomarinha.

Ampliando assim a planície, a margem esquerda do Paraíba do Sul deve também ser considerada como área de influência do grande rio. Mesmo que a infiltração de águas na lençol freático seja mais lenta em terreno de tabuleiro, sem dúvida ela existe. Mas aqui também faltam estudos.

Há ainda uma característica singular da planície dos Goytacazes: ela confina diretamente com o mar aberto, sem a mediação de um golfo, de uma baía, de uma lagoa costeira e de formações pedregosas. Na Planície de Sepetiba, os rios que a drenam são pequenos e fluem para uma grande baía protegida pela comprida Restinga da Marambaia. Na Planície da Tijuca, também os cursos d'água apresentam pequena vazão e são interceptados por alongadas lagoas que chegam ao mar pelo protegido Canal da Joatinga. No entorno da Baía de Guanabara, os pequenos rios de seu entorno, que descem da zona serrana, aterraram as margens da baía e formaram uma delgada planície. Originalmente, a água vertida por esses rios é interceptada pela baía, que se comunica com o mar aberto por um canal ladeado de formações pedregosas maciças. Com chuvas fortes, os pequenos rios enchem, transbordam e correm em forma de torrente para a baía. Eles passaram a ser destrutivos com o intenso processo de urbanização, que os assoreou e entupiu seus leitos com esgoto, lixo e construções. Por sua vez, a planície da Região dos Lagos é drenada por vários pequenos rios que correm para alongadas lagoas salinas paralelas à costa, sendo as águas escoadas para o mar pelo Canal de Itajuru, na Lagoa de Araruama.

Já a costa entre a margem esquerda do Rio Macaé e a margem direita do Rio Itapemirim é nova, desabrigada, sem reentrâncias protegidas por formações pedregosas, rasa e varrida por correntes marinhas de alta energia. Os canais naturais com considerável vazão conseguem manter a barra a aberta, como é os caso dos Rios Itapemirim, Itabapoana, Guaxindiba, Paraíba do Sul e Macaé. Além do mais, a maior planície fluviomarinha do Estado é drenada pelo Paraíba do Sul, também o maior rio do Estado. Com relação aos pequenos cursos d'água, o mar tende sempre a vedar suas barras. O mesmo ocorre com os canais artificiais, como a Vala do Furado e os Canal de Jagoroaba e da Flecha. Este último exigiu o prolongamento da foz mar adentro por dois píeres de pedra, material estranho ao ambiente e que vem provocando acúmulo de areia do lado direito e erosão do lado esquerdo. Tudo indica que o canal aberto para a instalação de um grande estaleiro no interior do continente no Complexo Logístico Industrial Portuário do Açu também está provocando fenômenos erosivos nas praias ao sul do complexo.

Nas águas subterrâneas da Planície dos Goytacazes, encontra-se grande quantidade de sal e ferro dissolvido, indicadores mesmo da formação aluvial e marinha da planície. Em certos pontos, encontra-se água do mar confinada no subsolo. Da mesma forma, as bordas da planície têm a subsuperfície invadida pela água do mar. Um estudo da Engenharia Gallioli, de 1969, encomendado pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento, concluiu que, a língua salina alcança o meio da distância entre a linha de costa e a Lagoa Feia. A recomendação do relatório para o DNOS era manter a Lagoa de Dentro, integrante do complexo Lagoa Feia, para que o peso da água doce dela detivesse o avanço subterrâneo da língua salina. Mais uma questão a merecer novos estudos.

Figura 1 - As planícies do Estado do Rio de Janeiro, segundo Hildebrando de Araujo Góes (1944). Legenda: 1- Planície do norte fluminense; 2- Planície de Araruama; 3- Planície da Guanabara; 4- Planície de Jacarepaguá; 5- Planície de Sepetiba.
Por cima

A Baixada dos Goytacazes, assim, assemelhava-se a uma grande cisterna que recebia água serrana pelos Rios Paraíba do Sul, Macabu, Imbé e Preto, além de água das chuvas. Em grande parte, essa água se infiltrava no solo e se acumulava no lençol freático. Num cálculo estimado por Alberto Ribeiro Lamego, o embasamento cristalino, nesta baixada, dista 800 metros da superfície. Assim, acumulou-se muita terra de mistura com a água, como se a planície fosse mesmo uma grande piscina cheia de terra e de água, ambas entrando por tubos provenientes da serra e do mar, sendo que o nível d'água ultrapassa o nível do solo. Essa ultrapassagem correspondia às lagoas e rios.

Evidentemente, esse enorme volume de água vindo dos rios serranos, além de se infiltrar no solo, corria superficialmente. No tempo das cheias, os rios transbordavam e enchiam as lagoas. No caso particular do Rio Paraíba do Sul, as águas que transbordavam pela margem direita, não encontrando obstáculos, dirigiam-se às lagoas e não mais retornavam ao leito quanto normalizado o seu nível. As enchentes eram muito mais previsíveis. De tempos em tempos, ocorriam cheias anômalas mais intensas ou menos intensas. As cheias anômalas aquém da norma não deveriam afetar a quantidade de água, muito embora os Sete Capitães, iniciadores de uma colonização europeia contínua na região, tenham encontrado uma lagoa com pouca água e com muito peixe morto em decomposição, que foi batizada de Lagoa Fedorenta, na Restinga de Jurubatiba. O cartógrafo militar Manoel Martins do Couto Reis registrou, em 1785, que, durante a estiagem as lagoas secavam e que era preciso esperar a estação das chuvas para mapeá-las. Nessa estação ocorria fenômeno distinto: a água era tanta que as lagoas se ligavam, ultrapassando os baixos divisores de água.

Quando o parque industrial do açúcar se modernizou, na transição do século XIX para o XX, a necessidade de cana aumentou.Com isso, aumentou também a necessidade de terras, já que a produtividade era baixa. Acontece que as terras mais férteis ficavam embaixo d'água. Então, foi criada, em 1933, pelo governo centralizador e intervencionista de Getúlio Vargas, a Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense, com a missão de drenar e disciplinar as águas consideradas então focos de doenças transmissíveis agudas e crônicas. Em 1934, o engenheiro Hildebrando de Araujo Góes publicou um relatório alentado mostrando todos os fracassados esforços anteriores para domar as águas e apontou soluções mais efetivas. Para a Baixada dos Goytacazes, ele adotou o plano de saneamento de Francisco Saturnino Rodrigues de Brito.

Em cinco anos de trabalho, a Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense saiu-se tão bem em secar as áreas baixas que foi transformada no Departamento Nacional de Obras e Saneamento, em 1940, passando a atuar em todo o Brasil.

A rede hídrica natural que os engenheiros encontraram na Baixada dos Goytacazes era muito intrincada e lhes parecia um caos. O Rio Paraíba do Sul é a via principal que, na formação da planície, bifurcou-se em dois subsistemas: o rio propriamente dito e o subsistema da Lagoa Feia, que capturou os Rios Macabu, Urubu, Imbé e Preto, além da Lagoa de Cima. Esta, formada pelos Rios Urubu e Imbé, passou a defluir pelo Rio Ururaí, que recebia o Rio Cacumanga, proveniente do Rio Paraíba do Sul, e desaguava na Lagoa Feia. Esta defluia para o mar por incontáveis braços que se reuniam no Rio Iguaçu. Este recebia águas do Córrego do Cula, um dos quatro em que se dividiu o Paraíba do Sul no delta. Deste rio, partia também um canal natural perto da restinga que até hoje é conhecido como Rio Água Preta ou Doce. Também ele desaguava no Rio Iguaçu, que desembocava no mar.

Figura 2 - Geografia do norte fluminense antes das grandes obras de drenagem. Mapa desenhado pelo Sargento-Mor Vieira Leão no século XVIII (1765) com destaques do autor sobre a ligação dos subsistemas Rio Paraíba do Sul e Lagoa Feia. 


A margem esquerda do Paraíba do Sul era mais estável. Dela, chegavam ao Rio Paraíba do Sul o Rio Muriaé, o Canal do Jacaré ligando o grande rio à Lagoa das Pedras, o Córrego da Cataia, que o liga à Lagoa do Campelo, e o Canal de Cacimbas.

Tanto a Comissão quanto o DNOS deram mais atenção à margem direita do rio, mais sujeita a enchentes e onde se ergue Campos. Tomando por base o plano de Saturnino de Brito, três instrumentos foram utilizados: o dique, o canal e as comportas. Foram planejados diques novos em complementação aos antigos já existentes, para emparedar as água de transbordamentos. Depois, oito canais primários entre o subsistema Paraíba do Sul e o subsistema Lagoa Feia. A finalidade desses canais era dividir as águas de cheia para mais facilmente escoá-las para o mar. Os engenheiros de hoje esqueceram a finalidade inicial dos canais construídos. No entroncamento dos canais com o rio, concebeu-se a construção de comportas manejáveis ou automáticas para controlar a transferência de água para o subsistema Lagoa Feia.

Figura 3 - Exemplo de dique. Foto do autor

Restava apenas um problema já levantado por Alberto Ribeiro Lamego: como transferir água doce de cheias para o mar? Os Rios Paraíba do Sul e Iguaçu tanto quanto a Vala do Furado eram insuficientes, segundo os engenheiros. Então, tomou-se uma solução aventada por Saturnino de Brito, embora simplificada pelo órgão: ligar a Lagoa Feia ao mar pelo Canal da Flecha. Também o leito da Lagoa Feia foi rasgado por três canais, mas o DNOS não conseguiu chegar ao fim por resistência dos pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos. Outras obras menores e a manutenção não foram executadas porque o DNOS foi extinto em 1990.

Figura 4 - Abertura do Canal da Flecha. Foto do DNOS
Para a drenagem, a margem esquerda do Paraíba do Sul revela-se menos problemática porque ela é ligeiramente mais alta que o nível médio do rio. As enchentes a alagam e alimentam as lagoas pelo lado esquerdo. Quando o nível se normaliza, as águas descem progressivamente para o rio. Há menos estudos para a margem esquerda. Os últimos escritos de Saturnino de Brito se referem a ela, mas sem muitos detalhes. Ele concebeu um dique bem mais afastado que o atual para incluir as lagoas entre ele e o rio. Brito considerava essas lagoas de fundamental importância para amortecer o impacto das enchentes. Concebeu também um grande e caro canal paralelo ao Paraíba do Sul, começando em Campos e desembocando no mar.

Com relação ao dique, Camilo de Menezes, engenheiro do DNOS, defendeu a construção junto à margem, excluindo as lagoas. Os irmãos Coimbra Bueno, donos de um escritório de urbanismo e que formularam um plano de urbanismo para Campo em 1944, retomaram a concepção de Saturnino de Brito, mas não defendendo um canal contínuo, e sim um canal que aproveitasse das inúmeras lagoas. A engenharia Gallioli também defendeu esta posição, embora julgando-a muito cara.

A solução encontrada pelo DNOS foi bem mais simples. O Córrego da Cataia foi praticamente desativado por ela, com uma bateria de comportas automáticas que se fechavam quando o Paraíba do Sul subia e se abriam quando ele normalizava seu nível. Nas adjacências da cidade de Campos, foi rasgado o Canal do Vigário, aproveitando parte do Canal do Nogueira, aberto no século XIX para ligar o Paraíba do Sul à Lagoa do Campelo com fins de navegação. Por ser obra cara, ele não foi terminado. Ligando o rio à Lagoa do Campelo e esta ao mar pelo Canal Engenheiro Antonio Resende, o DNOS substituía o Grande Canal planejado por Saturnino de Brito. Mas o sistema do DNOS nunca funcionou a contento.

Figura 5 - Comporta entre os Canais de São Bento e da Flecha. Foto do autor.
Para finalizar este artigo que já vai longe, fica a pergunta. Para onde foi o volume colossal de água acumulada na Planície dos Goytacazes? Como chegamos à crise hídrica atual? As respostas ficam para outra oportunidade.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom o mapa do Sgt Mor, representa bem uma realidade que ainda hoje podemos observar, por exemplo a estrada que dava acesso à cidade ainda conta com muitos vestígios desde Santo Amaro onde passa à direita da atual RJ 216 atravessando em algum ponto e passando pelo cemitério retornando para à direita da mesma próximo à divisa com distrito de Baixa Grande seguindo daí até Babosa, passando por Mussurepe (Barrinha) até Mosteiro de São Bento (não identificado), Largo do Garcia, S, Sebastião e daí até o centro. Já Observei que as tradicionais famílias de fazendeiros possuíam suas terras próximas deste percurso.
Muito interessante!