Mais um interessante texto do professor José Luís Fiori. Ela foi publicada no dia 27/03/2015 no Valor (P.A15). No texto Fiori questiona a ideia da possível existência de escolha de Deus a favor de algum povo.
Fiori atribui essa ideia perigosa aos dogmas religiosos que ajudam a criar, na relação entre nações, uma fantasia que chama de "arrogante e absurda de superioridade". Uma boa questão que remete que também remete ao debate civilizacional. Confiram:
"Escolhas divinas"
"Agradecemos a Deus pela bomba atômica ter vindo para nós, e não para
os nossos inimigos; e oramos para que Ele possa nos guiar para usá-la em
Seus caminhos, e para Seus propósitos". Presidente Harry, S. Truman, cit in
P. Anderson, "A política externa norte-americana e seus teóricos", Ed.
Boitempo, SP, 2015 p:42
Do ponto de vista estritamente lógico, é impossível imaginar um Deus que
seja único e absoluto, e que ao mesmo tempo faça escolhas de qualquer tipo
que seja. Mas esta ideia da monopolização unilateral da "vontade divina" por
alguns povos parece ser muito antiga e persistente, sobretudo entre os que
professam religiões monoteístas.
O exemplo mais conhecido talvez seja o do povo hebreu, como aparece
descrito num dos cinco livros de Moisés, o Êxodo: "Então Javé chamou a
Moisés e lhe disse: agora, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha
aliança, sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos,
porque a terra é minha. Vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma
nação santa" (Êxodo, 19).
Mas esta mesma convicção pode ser
encontrada no Zoroastrismo, e na relação
preferencial de Ahura Mazda com o povo
persa e com o Império Aquemênida, de
Ciro, Dario e seus descendentes; na
relação de Ala, com os sucessivos
impérios islâmicos, desde o século VII d.C; ou na relação do Deus cristão com
os povos europeus e seu projeto de expansão e conversão do mundo, a partir
do século XVI.
E esta mesma ideia está por trás da certeza americana a respeito do seu
"destino manifesto" a liderar a humanidade. Uma visão construída pelos seus
"founding fathers" e que permanece viva até hoje, como se pode ler na
epígrafe do presidente Truman; ou na ideia do presidente Kennedy, de que
"os EUA deviam seguir em frente para liderar a terra....sabedores de que aqui
na Terra a obra de Deus deve, em verdade, ser obra nossa" (op. cit. p. 43); ou
ainda, na certeza do presidente Bush, de que "a nação americana foi
escolhida por Deus e comissionada pela história para ser um modelo para o
mundo" (idem, p:43).
Esta monopolização da "verdade divina" pode ser absurda do ponto de vista
lógico, mas de fato se transformou numa "ideia-força" que cumpriu um papel
decisivo ao longo de toda a história humana, tanto dos "povos escolhidos',
como dos "povos não escolhidos" por Deus. Sem esta imagem de si mesmo
talvez o povo hebreu não tivesse conseguido resistir ao assédio dos assírios,
dos romanos e de tantos outros povos mais poderosos, superando seu
sentimento milenar de inferioridade e de cerco; os persas não tivessem
conquistado seu gigantesco império de 8 milhões de quilômetros quadrados,
na África, Europa e Ásia; o Islã não tivesse se expandido de forma tão
continua e vitoriosa, a partir do século VII; e os europeus não tivessem
conseguido impor sua dominação colonial ao redor do mundo, a partir do
século XVI.
Sempre movidos pela mesma certeza ética que levou George Kennan a
afirmar, olhando para a destruição alemã, depois da Segunda Guerra
Mundial, "que ele se tranquilizava com o fato de que os EUA tivessem sido os
escolhidos pelo Todo-Poderoso para ser os agentes daquela destruição". (op
cit, p:42)
Nesta história, entretanto, é fundamental distinguir o papel decisivo das
religiões na construção das civilizações humanas, da sua monopolização e
instrumentalização pelos poderes territoriais e pelos grupos humanos que se
autoproclamam superiores e com o direito exclusivo a impor os seus valores
aos demais que forem sendo submetidos, convertidos, ou exterminados pelo
avanço e pela "tranquilidade ética" dos "povos escolhidos". Esta visão
unilateral e monopolista da "escolha divina" sempre esteve e segue estando
por trás de todos os fundamentalismos religiosos, em qualquer tempo e
lugar, e que sempre levou à demonização, à desqualificação, à humilhação e à
exclusão dos que pensam diferente. Uma radicalização que parece se repetir
através da história, em todos os grandes momentos de ruptura e "perda de
horizonte" por parte da humanidade, como está acontecendo de novo, neste
início do século XXI.
Depois do fim da Guerra Fria, e em particular nesta segunda década do
século XXI, os EUA estão vivendo um momento sem precedente de
fragmentação do seu establishment, do seu sistema político e da sua
sociedade, mobilizada por um fundamentalismo religioso cada vez mais
agressivo e excludente. E o mesmo está acontecendo na Europa, onde o
esvaziamento ideológico do projeto de unificação abriu portas para um
aumento contínuo da intolerância dentro do seu próprio território e dentro
de toda sua antiga zona de dominação colonial, em particular no Grande
Oriente Médio. Um panorama regional que se agrava ainda mais com o
distanciamento recente entre EUA e Israel, dois povos que se consideram
"escolhidos" e que compartilham a mesma genealogia divina.
Mas esta fragmentação e esta radicalização não se restringem mais a estes
pontos estratégicos da geopolítica mundial e tem avançado mesmo em
sociedades que pareciam imunes a este tipo de fundamentalismo e que agora
aparecem divididas pela intolerância e pela proposta explícita de negação do
diálogo e da convivência, e de exclusão muitas vezes da própria pessoa
física dos adversários. Como é o caso mais recente da sociedade brasileira,
que até hoje se considerava "cordial" e apenas "abençoada por Deus". Frente
a esta situação que tende a se agravar em todo mundo só cabe resistir à
intolerância com a tolerância, à irracionalidade com a razão, ao fanatismo
com a tranquilidade dos que sabem que não existem os "escolhidos" nem
existem pessoas superiores aos demais. Junto com a defesa intransigente, no
plano internacional, de que chegou a hora de enterrar de uma vez por todas,
na relação entre as nações, a fantasia arrogante e absurda dos "povos
escolhidos" por Deus.
José Luís Fiori, professor titular de economia política
internacional da UFRJ, é autor do livro "História, estratégia e
desenvolvimento" (2014) da Editora Boitempo, e coordenador do
grupo de pesquisa do CNPQ/UFRJ.
www.poderglobal.net
65 anos, professor titular "sênior" do IFF (ex-CEFET-Campos, RJ) e engenheiro. Pesquisador atuante nos temas: Capitalismo de Plataformas; Espaço-Economia e Financeirização no Capitalismo Contemporâneo; Circuito Econômico Petróleo-Porto; Geopolítica da Energia. Membro da Rede Latinoamericana de Investigadores em Espaço-Economia: Geografia Econômica e Economia Política (ReLAEE). Espaço para apresentar e debater questões e opiniões sobre política e economia. Blog criado em 10 agosto de 2004.
10 comentários:
O texto reflete um lamento ao fato das grandes potências possuírem armas nucleares em detrimento das que não conseguiram almejar as suas.
Quando os povos "afáveis" e "cordiais" do Oriente Médio conseguirem as suas, nossa, quanto diálogo teremos, quão justo será o nosso planeta.
Veríssimo também já expressou seu lamento da Alemanha nazista (Nacional Socialista, extrema esquerda) não ter podido alcançar a tempo seu desenvolvimento nuclear porque deu "atenção demais" ao anti-semitismo.
Vejo no mundo de hoje cada vez mais pessoas com nostalgia e um certo repúdio de como terminou a Segunda Guerra, inclusive com afirmações de que o causador da Segunda Guerra foram os EUA. A inveja é um problema sério na sociedade global.
http://noblat.oglobo.globo.com/cronicas/noticia/2014/12/especulacoes.html
O comentarista, o mesmo, repete a mesma leitura sempre de qualquer coisa, ficar ao lado da hegemonia, porque é mais fácil.
É como alguns dizem que o caminho é negociar a nossa dependência para sermos o primeiro da fila dos "eternamente dependentes", como se isso valesse alguma coisa para quem está acima e não a conjuntura do momento.
Sore a guerra que evitou o fascismo, que hoje volta ser exigida e exposta na Europa e aqui no trópico, por falsos liberais, há mais uma vez um erro da leitura do processo histórico. O povo e os exércitos que evitaram a expansão do nazismo e do fascismo ao mundo não foram os EUA.
Os erros e vários equívocos do chamado "socialismo real" tornaram a guerra fria uma etapa fácil para os EUA, ganhar do seu ex-aliado.
A própria leitura que se faz do texto do Veríssimo mostra a visão que tem do mundo, sem os dogmas religiosos, mas, com os mesmos que se valem da força das desigualdades para tentar manter sua hegemonia, quando o escritor pontuou o equilíbrio e a multipolaridade como um mecanismo mais adequado à busca de civilizações mais avançadas, tal como Fiori refletiu.
E eu que pensava que Deus era brasileiro......
Ah! É verdade! Não foram os aliados que venceram a guerra, foi a URSS! Entendi!
EUA é a maior potência militar da história da humanidade, URSS na Segunda Guerra enviavam qualquer um para as frentes de batalha inclusive desarmados, onde eram mortos se recuassem. Acho que não leu o bastante sobre o assunto. A civilização mais inventiva e avançada do mundo é a americana, basta ver os inventos e patentes.
O cidadão que precisa de um governo para lhe dizer o que fazer eu chamo de cidadão estatizado. O máximo que o senhor faz é ler artigos e publicações de esquerda. Já eu que sou liberal, já li Marx e Von Mises e o segundo está certo, Marx era um louco bancado pelo amigo banqueiro Engels mas cuspia na burguesia.
Pérolas aos porcos.
O mesmo de sempre.
A história cada um conta a sua.
Continue lendo O Globo e a Veja.
Engraçado que tem uma atração pelo blog.
Psicanálise também pode ser bom, porque ela ajuda a esvaziar os bolsos de quem tem cabeça oca e prepotência nas alturas.
É o suficiente.
Agora volta lá para o jornal da Globo, rs.
O cara leu tudo, sabe de tudo, defende os poderosos, faz isso de forma prepotente, só não tem coragem de assumir sua identidade.
Então não quer discutir quer reescrever a Veja e o William Waack. Aquele mesmo que sentava com o emabaixador americano para passar informações, assim como o ministro das relações exteriores do FHC que tirou os sapatos na imigração americana para comprovar sua subserviência.
Pois então faça isso. Abra um blog, conquiste leitores repetindo a Óia e o plim-plim.
Pode espernear lá nos espaços amigos deles. rs rs.
O blog aceitará as assertivas do sabe-tudo e passará a ser agora tão liberal quanto a mídia comercial que confere espaços a todos igualmente.
Assim como faz com os desvios da Lava Jato e da Sonegação das grandes empresas.
Assim podemos continuar debatendo.
Sigamos em frente sabe-tudo!
O blog confessa, faz mea-culpa e adere ao liberalismo idêntico a da mídia comercial.
Ah, ele não quer mais falar?
Ora, ora vamos então debater no Facebook onde também está essa nota da postagem, sabe-tudo.
Engraçado nos veículos da mídia só eles falam e se dizem democráticos.
Aguardo você também no FB.
Sds democráticas. Da próxima vez retire os sapatos, antes de entrar no blog, rs.
Não adianta vir com chantagens, rs.
Por favor, sem meias e com os pés limpos e a cabeça pra baixo.
Assim seguimos também o Delfim Neto que gosta de lembrar o sociólgo e economista Wolfang Streeck "o capitalismo precisa de adversários fortes o suficiente para civilizá-lo".
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