quinta-feira, abril 30, 2020

Mapa da incidência de Covid-19 nas bacias de Campos e Santos, por Francismar Cunha, UFES

O geógrafo, pesquisador e doutorando de Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Francismar Cunha Ferreira elaborou um mapa sobre a incidência da contaminação de Covid-19, nas plataformas das bacias de Campos e Santos, em especial chama a atenção para o “cluster de Covid-19” nas plataformas do campo de Marlim na Bacia de Campos.

A situação é calamitosa e expressa as atuais e péssimas relações e condições de trabalho nas unidades da Petrobras, indicando o grau de precarização e pouco caso com os trabalhadores da empresa e os terceirizados. Abaixo o texto e o mapa, elaborados por Francismar Cunha da UFES.


Distribuição espacial da contaminação de Covid-19 nas plataformas das bacias de Campos e Santos: cluster de Covid-19 no campo de Marlim

Com a pandemia da Covid-19 diversas adaptações foram/estão sendo feitas nas rotinas dos trabalhadores. Entretanto, não se pode afirmar categoricamente que essas alterações visam o bem estar e a saúde do trabalhador. Esse posicionamento ganha força quando se verifica que em alguns setores produtivos como, a indústria petrolífera, se assiste a um aumento expressivo do número de casos de pessoas infectadas pelo vírus.

Até o dia 23/04* havia 10 plataformas de produção de petróleo e gás com registro de casos de trabalhadores infectados entre as bacias de Campos e Santos. São elas: a P-26, P-18, P-35, P-20, P-33 (no campo de Marlim na Bacia de Campos), P-62 (campo do Roncador) e P-50 (campo Albacora Leste) todas da Petrobras e as FPSOs Cidade de Santos e Cidade de Anchieta, ambas afretadas pela Petrobras, respectivamente da japonesa Modec e da Holandesa SBM Offshore. Para além das plataformas têm-se constatações de casos de contaminação nos campos terrestres no Amazonas, conforme apontou João Gilberto e Francisco Gonçalves, em texto publicado no dia 29/09 na página da AEPET.






























Em geral, foram confirmados até o dia 28 de abril 625 casos de Covid-19 nas empresas que executam atividades de Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural no Brasil, sendo que 243 profissionais acessaram instalações marítimas de perfuração e produção, conforme mapa acima. O total de suspeitos nessas empresas soma 1.445 de acordo com a ANP.

Dentre os trabalhadores expostos à contaminação de Covi-19, chama à atenção a situação dos trabalhadores terceirizados. De acordo com a FUP, as condições desses trabalhadores pioraram no contexto da pandemia, pois além de se encontrarem em situações de trabalho precárias, estão sob risco de contaminação que se associa ao temor de perder seus empregos. O pior, ainda segundo a FUP, é que algumas empresas ainda estão amplificando esses problemas ao não cumprir a legislação trabalhista, as convenções e acordos feitos com os sindicatos.

Em síntese, nota-se uma tendência de aumento de casos de contaminação, especialmente, no caso das plataformas no campo Marlim, onde se percebe um verdadeiro “cluster de COVID-19”. Soma-se a isso, as pressões sobre os trabalhadores, especialmente os terceirizados. Em paralelo, a Petrobras vem afirmando que vêm adotando medidas preventivas alinhadas às recomendações de autoridades sanitárias e órgãos reguladores.

A petroleira afirmou para a Reuters que reduziu o efetivo em unidades operacionais, tomando medidas mais rigorosas no setor offshore, como isolamento domiciliar monitorado e triagem médica no pré-embarque, com suspensão do embarque de quem apresentar qualquer sintoma. Entretanto, de acordo com João Gilberto (Diretor do Sindipetro Caxias), a Petrobras impôs um plano de resiliência que reduz a jornada e salários dos empregados administrativos em 25% e insiste em impor soluções sem ouvir ou negociar com representantes dos trabalhadores. João Gilberto aponta ainda que o atual governo e sua gestão na Petrobras se utilizam da Covid-19 para acelerar o desmonte e entrega da Petrobrás à iniciativa privada, um grande contrassenso, quando bancos, empresas de aviação, dentre outros, pedem socorro ao Estado em função da crise.


PS.: Atualizado às 21:52: para corrigir a data* no 2º parágrafo. O correto é até o dia 23/04 (e não 23/03 como saiu antes)  havia 10 plataformas de produção de petróleo e gás com registro de casos de trabalhadores infectados entre as bacias de Campos e Santos.

terça-feira, abril 28, 2020

Fundos de investimentos perdem R$ 121 bilhões em patrimônio em 2020 no Brasil. Mais de 100 mil cotistas deixaram os fundos nos últimos dois meses

Os fundos financeiros seguem sendo um dos maiores instrumentos para oferecer mobilidade e lucratividade ao capital. Ainda assim, vale observar seus movimentos nesta fase de baixa da economia global e brasileira em função da pandemia e de um processo histórico.

Tomemos uma reportagem de hoje do Valor que lista a situação de 20 expressivos fundos (multimercados e ações). Na reportagem da Adriana Cotias, é possível identificar 107 mil cotistas deixaram um dos 20 fundos listados (entre gestoras XP, Itaú, BB, CEF, etc.), tipo multimercados (hedge) e de ações, listados no quadro abaixo publicado hoje no Valor (28/04, P.C6).

Só nestes 20 expressivos fundos (multimercados e ações) os valores resgatados alcançaram cerca de R$ 10 bilhões. Estes vinte fundos apurados na matéria do Valor, possuem agora no final de abril patrimônio de cerca de R$ 50 bilhões. Ou seja, perderam 20% neste período de dois meses entre o final de fevereiro e de abril. O retorno de rendimentos deste patrimônio ficou negativo em até -36%. (Abaixo o infográfico do Valor. Veja aqui matéria na íntegra "Na crise, fundos veem saída de cotistas")

Infográfico do Valor. Caderno de Finanças, em 28-04-2020, P.C6.

























Algumas gestoras de fundos de investimentos dizem que no momento há ativos sendo vendidos no mercado por valores até 60% menores do que há dois meses atrás, o que aponta a perda de valor (real ou fictício).

Segundo, dados atuais da Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais) de hoje (Referência 22/04/2020), o total de patrimônio líquido em todos os fundos de investimentos no Brasil são de R$ 5,306 trilhões, valor que é R$ 121 bilhões a menos do que o valor fechado em dezembro de 2019 que alcançou R$ 5,427 trilhões.

Aí está um parte importante do movimento do capital no andar superior das altas finanças. Um patrimônio financeiro vinculado ao rentismo (praticado mesmo por boa parte das empresas produtivas da economia real) e à política dos derivativos que capturam a renda do trabalho. Hoje, o patrimônio total dos fundos de investimentos supera 80% do PIB do país.

A perda, até aqui, relativamente pequena (2,3%) do do patrimônio total investidos nos fundos financeiros, demonstram, como esse instrumento se tornou um dos mais importantes instrumentos do capitalismo contemporâneo, que confere potência e enorme mobilidade ao capital para transitar entre suas frações e os investimentos em diferentes regiões mundo afora, nas diferentes fases do ciclo da economia (expansão e colapso).

Os fundos financeiros (no geral incluindo os fundos soberanos e os fundos de pensão vinculados à previdência dos trabalhadores) com sua inter-conexão e inter-relação com os diversos agentes financeiros se transformaram numa das mais importantes estratégias do capitalismo contemporâneo, hegemonicamente financeiro.

As gestoras dos fundos financeiros interligam o sistema bancário tradicional (bancos comerciais); o mercado de capitais (bolsa de valores e ações; derivativos e mercado futuro); a rede não bancária (shadow banking); os bancos centrais dos países; as grandes companhias de seguro (e agora também de auditoria e avaliação de riscos);  e centros financeiros off shore a nível global.

A realidade que estamos assistindo neste período de auge da contaminação da Covid-19, reforça tudo aquilo que havíamos exposto no livro "A ´indústria´ dos fundos financeiros", editado em junho de 2019, pela Consequência.

segunda-feira, abril 27, 2020

O Brasil sem ministro da Saúde e na rota do genocídio

Estamos no meio de uma pandemia com mais de 4 mil mortos (na verdade pelo menos 12 mil mortes) e... cadê o ministro da Saúde? 
Quem é ele mesmo? O que faz? Ou o que deveria fazer? 
Bolsonaro escolheu um sabujo para deixar que as mortes fiquem mais silentes como tanto quer o general Ramos. Isso tem nome: genocídio!

#TAG REPORT 62: "Espiral de Incertezas": Análise de conjuntura, por Helena Chagas e Lydia Medeiros

O blog recebeu e repassa o conteúdo do relatório #TAG REPORT 62 de 26-04-2020 que republica abaixo:

Espiral de incertezas - Uma análise da conjuntura

Brasília, 26/4/2020 - nº62

Passadas 48 horas da demissão de Sérgio Moro, há no mundo político um sentimento de que o governo Jair Bolsonaro que assumiu em 1º de janeiro de 2019 acabou. Sobram dúvidas, porém, sobre se, como e quando serão removidos os destroços da edificação implodida — ou seja, tirar Bolsonaro da Presidência dentro das regras da Constituição e do Estado Democrático de Direito. As revelações de Moro sobre interferência na Polícia Federal e outros crimes já seriam graves o suficiente para  deflagrar um processo de impeachment se o establishment estivesse hoje tão disposto a cassar o presidente quanto esteve, lá em 2016, a se livrar de Dilma Rousseff com “pedaladas fiscais”. Até agora, tudo indica que não está — e por razões que unem direita e esquerda.

A principal delas atende pelo nome de Sérgio Moro. Diversos pedidos de impeachment foram apresentados nas últimas horas, e muitos outros virão. Mas o ex-ministro e ex-juiz sairá enormemente fortalecido como candidato presidencial em 2022 se vingar algum deles, baseado em sua “delação”. Pré-candidatos ao centro e à direita, como os governadores João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ), por exemplo, sabem que é mau negócio disputar o campo conservador com alguém tendo no currículo não só a Lava-Jato, mas a derrubada de Bolsonaro.

À esquerda, caciques petistas garantem que não faltará um só voto de sua bancada a favor de um pedido de abertura de impeachment que chegue ao plenário da Câmara. Vão apoiar a campanha Fora Bolsonaro. Mas, no PT, Moro é o algoz. Formar ao lado dele, ainda que na excepcionalidade de um processo desses, não será nada confortável. Contribuir para fortalecê-lo, impensável. Sem contar que, no partido, a perspectiva de um Bolsonaro sangrando até 2022 parece melhor do que a de enfrentar uma novidade vitaminada por um novo governo.

Diz-se também, nos meios políticos, que os partidos do Centrão que estão ganhando do presidente cobiçados cargos da administração também estarão, em sua maioria, votando a favor do impeachment no plenário. Até lá, vão encher as burras, sustentando um discurso de que, neste momento de pandemia, não se deve gastar energia com essa briga — argumento que até faz sentido, e vem servindo também para blindar a narrativa de quem decide, como Rodrigo Maia.

Há fatores, porém, que podem mudar a situação de uma hora para outra. Um deles, a evolução das investigações que correm no Supremo Tribunal Federal. Manchete da Folha de S.Paulo deste domingo trouxe um alerta ao revelar que o inquérito que apura a rede de fakenews e ameaças    montada contra autoridades tem entre seus articuladores o vereador Carlos Bolsonaro. Isso cria fatos novos, e graves. Quem conhece o estilo da PF e do próprio Moro de brigar sabe que a guerra de vazamentos envolvendo Bolsonaro e família vai ser pesada e centralizar as atenções daqui por diante. Moro também estará no alvo do outro lado, e a esperança de alguns é que também acabe queimado e deixe de ter sua digital tão clara num eventual impeachment.

Outro fator seriam as ruas, que agora, aliás, são apenas panelas. Não há impeachment sem povo na rua, e não há povo na rua com pandemia. Nem se ouviu falar, em algum lugar do mundo, de impeachment conduzido e votado remotamente. Por outro lado, as avaliações gerais são que o governo Bolsonaro — pelo conjunto da obra envolvendo também economia e pandemia — não tem volta em termos de capacidade de organização e governabilidade. E se, por enquanto, também não há previsão de ida — a ida para casa —, são grandes as chances de o país entrar numa triste espiral de incertezas, estagnação, doenças e mortes nos próximos meses.

SAÍDA PELO STF — MAS CÂMARA TEM QUE ABRIR A PORTA
No primeiro momento, será cômodo para os políticos deixar o destino do presidente da República nas mãos do STF. Afinal, três inquéritos podem chegar a Jair Bolsonaro: os dois relatados por Alexandre
Moraes, que investigam as fakenews e já chegaram ao filho Carlos, e a organização das manifestações pró-golpe militar; por fim, o que deverá ser aberto esta semana por Celso de Mello para apurar as denúncias de Sergio Moro de interferência na PF.

Advogados próximos relatam que os ministros do Supremo acham que muitas outras ações sobre o tema devem entrar nos próximos dias na Câmara e reverberar por lá. OAB e ABI devem apresentar pedidos de impeachment. Parlamentares de oposição vão tentar barrar a nomeação de Alexandre Ramagem para a Polícia Federal com base no precedente que impediu Lula, por liminar de Gilmar Mendes, de ocupar a Casa Civil de Dilma Rousseff. O deputado Rui Falcão (PT-SP) apresentou representação ao procurador-geral da República, Augusto Aras, pedindo que ele inclua no inquérito solicitado a Mello investigações sobre diversos atos de Moro relacionados à PF em sua gestão na pasta de Justiça.

O STF terá muito trabalho, e um grande protagonismo — conforme já previa este TAG REPORT em sua edição de 5 de abril (nº 59). Mas estará o impeachment judicializado? Não em última instância. Nada que a suprema Corte do país venha a descobrir terá maiores consequências se a Câmara dos Deputados não aprovar, por dois terços, o afastamento do presidente da República para que ele seja processado em denúncia a ser formulada pelo PGR. Muitas águas ainda vão rolar até que isso aconteça. Bolsonaro precisa de 172 votos para que não aconteça.

SOB CONTROLE
Procuradores que analisaram o pedido de inquérito de Augusto Aras ao Supremo acham que o procurador-geral jogou para controlar o processo. Assim como não citou Jair Bolsonaro no inquérito sobre a manifestação ocorrida diante do QG do Exército, optando por apurar a participação de parlamentares na organização do ato que pedia o fechamento do Congresso e do STF, Aras agora pede que sejam investigadas as acusações de Sérgio Moro. Todas se referem ao presidente
da República, mas o nome de Bolsonaro não é citado.

Ao comandar os inquéritos, Aras controla também o tempo para apresentar ou não uma denúncia. Também impede que outras investigações sejam abertas em instâncias inferiores. A diferença entre os dois casos é que Moro, desde a sexta-feira, não tem mais foro privilegiado, como têm os deputados federais. Logo, não caberia ao procurador-geral investigá-lo. Aras fez uma aposta de risco: o ministro Celso de Mello pode devolver-lhe os autos, ainda esta semana, e pedir que aponte qual autoridade com foro justificaria seu pedido. O nome, claro, é Jair Bolsonaro.

ZAP VERDE-OLIVA: AGUENTA SÓ MAIS UM POUQUINHO
Sérgio Moro mal acabara de falar quando os grupos de WhatsApp de generais — a maioria da reserva, inclusive ex-companheiros de ministros palacianos — já fervilhavam de mensagens. “O Bolsonaro já era”, postou um deles, completando que o presidente calculou mal ao achar que Moro, por apego ao cargo, não iria reagir. Para outro, o presidente “avaliou mal”, achando que, depois de demitir Luiz Henrique Mandetta sem maiores consequências, seria o mesmo no caso de Moro. “Cavou não só sua sepultura, como a da família”, concluiu. Um terceiro oficial informou: “Tive uma confirmação agora de que tudo o que o Moro está fazendo é real.” Ao que outro colega aduziu: “Muita gente amiga e conhecida se voltando contra o presidente. Isso não vai acabar bem, infelizmente.”

Nas mensagens, os militares lamentam por amigos e colegas que  estão no Planalto, agora em difícil situação. “O (Augusto) Heleno sempre esteve ao lado do Moro. Foi traído pelo presidente”, disse um.
As mensagens mais expressivas dessas conversas não são escritas. São figurinhas com a foto do vice Hamilton Mourão sorridente, marcadas com dizeres como “Aguenta só mais um pouquinho” e “Tô chegando”…

GUEDES CONTINUA DIGITANDO
Depois das demissões de Luiz Henrique Mandetta e Sérgio Moro, e somadas à crise em torno do comando do plano de retomada do crescimento pós-pandemia, Paulo Guedes vinha sendo dado como carta fora do baralho por dez entre dez observadores do cenário político. Sua demissão já estaria sendo inclusive “precificada” pelo mercado. Nas últimas horas, porém, o quadro parece estar mudando. Pelo lado de Jair Bolsonaro, que segundo aliados estaria chegando à conclusão de que
perder Guedes neste momento aceleraria a erosão do próprio governo.

Por seu lado, Guedes — que, sem paletó e de máscara isolou-se do resto da equipe durante o pronunciamento de Bolsonaro na última sexta-feira — também teria resolvido ficar e lutar para controlar a política econômica no pós-pandemia. Abriu confronto direto com o ex-auxiliar e hoje ministro do Desenvolvimento Rogério Marinho, que descobriu estar por trás dos movimentos ostensivos do ministro chefe da Casa Civil, Braga Netto de apresentação de um plano desenvolvimentista de recuperação. Vai ser um duelo de titãs.

Desde a apresentação do plano, Guedes tenta argumentar no governo que apenas com investimentos privados será possível tentar sair da crise econômica agravada com a crise sanitária — e com a crise de confiança provocada pela confusão política instalada no país. Ele tem dito que todo o investimento público que o governo puder fazer não chegará 1% do PIB, algo muito distante do necessário. Acha que o plano de Marinho foi inconveniente e que seu ex-subordinado agiu como oportunista.

O diagnóstico do ministro é que para atrair esses investidores será fundamental insistir em reformas, mas, principalmente, e em ritmo mais rápido, em mudança de legislação, citando os marcos regulatórios do saneamento e do setor elétrico que, segundo Guedes, travam a chegada do capital privado. Outra prioridade nessa lista é a revisão das regras do setor de óleo e gás, preferencialmente estabelecendo um modelo único, o de concessão.

A nova estratégia de Guedes ainda está no rascunho. O momento, tem dito o ministro, é de pensar apenas na Saúde, que tem toda a prioridade no gasto público. O “plano Marinho” atrapalha o ministro — sobretudo por exigir uma resposta mais rápida do chefe da Economia.

DORIA E WITZEL, MUITO AMIGOS DE MORO
Sérgio Moro saiu do Ministério da Justiça de Bolsonaro diretamente para a cartela de candidatos à presidência da República. Mas não vai ser tão simples assim. Perdeu seu lugar de fala, e precisa encontrar outro adequado, que he dê visibilidade nos próximos dois anos. Além disso, ao longo desse tempo, estará no centro do alvo de Jair Bolsonaro e todos os seus desafetos, sobretudo no papel de pivô de uma investigação do STF contra o presidente da República. Moro terá, sobretudo, que adquirir alguma malícia política para navegar até 2022.

Por exemplo. Entre elogios mis ao ex-juiz, os governadores João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ) lamentaram profundamente a demissão, aproveitando a ocasião para criticar de forma contundente o presidente, com quem vivem às turras. Que ninguém se engane, porém: Doria e Witzel, candidatos agora competitivos do campo da direita, de tudo farão para trucidar a candidatura Moro — ou ao menos para ter controle sobre ela, transformando o ex-ministro num companheiro de chapa na vice.
Isso acontecerá sobretudo se Sergio Moro aceitar convites para fazer parte do secretariado de algum desses governadores. Rápido no gatilho, Witzel não levou nem meia hora para convidá-lo.

MOURÃO E MORINHO
Já publicamos aqui neste TAG REPORT que, certa vez, um dos filhos de Jair Bolsonaro disse a um político que o maior arrependimento de seu pai, no governo, fora o convite a dois de seus integrantes: “o Mourão e o Morinho”. Agora o presidente poderá começar a ter problemas somados com a dupla, que se dava muito bem. Nos bastidores, frequentadores do Planalto comentam que, para Moro, não seria nada mau que Mourão assumisse o cargo num eventual impeachment de Bolsonaro — até
novembro, a tempo de nomeá-lo para o STF.

INFORMAÇÃO SEGURA
A nomeação do delegado Alexandre Ramagem para o comando da Polícia Federal tem tudo para confirmar uma suspeita que há muito incomoda políticos em Brasília, a de que são alvo de espionagem do governo. Depois que Sérgio Moro revelou o desejo de Jair Bolsonaro de se
manter “informado” pela PF, a expectativa é que a “arapongagem”, que supostamente vinha sendo conduzida por Ramagem como diretor da Abin, ganhe corpo e mais recursos. O novo diretor-geral da PF está com o presidente desde a campanha eleitoral e tem a total confiança dele e de seus filhos. Na edição de 11 agosto do ano passado, o TAG REPORT já informava o temor de parlamentares de serem alvo dos serviços de inteligência do governo.


NOVA POLÍTICA 

Os movimentos ostensivos de Roberto Jefferson para abraçar o governo Bolsonaro podem até ter sucesso, mas não foram combinados com o partido — muito menos os ataques a Rodrigo Maia, que teriam sido movidos por motivações regionais. A bancada petebista na Câmara teve alto índice de renovação, e Jefferson perdeu boa parte da influência que exercia no Congresso. O líder, deputado Pedro Lucas Fernandes (MA), por exemplo, tem 41 anos e é ligado a Rodrigo Maia.

HORA DE SAIR DO GRUPO 
 Desde o inicio do governo as relações de Onyx Lorenzoni com oDEM não vão nada bem. Mas hoje a convivência é considerada impossível. Há um esforço para que o ministro da Cidadania deixe a legenda. Além de sua presença no governo não ter a marca do partido e ser uma indicação pessoal de Jair Bolsonaro, a avaliação no DEM é que Onyx só trabalha em causa própria, visando a eleição para o governo gaúcho,sem qualquer benefício para o partido.

AGITAÇÃO NAS REDES


A saída de Sérgio Moro do governo, na manhã da última sexta-feira, mobilizou a opinião pública no Twitter. A agitação política tomou conta da rede, e as hashtags mais populares foram majoritariamente contra Jair Bolsonaro. Já o pronunciamento do presidente, às 17h daquele dia, teve pouca força para impulsionar seus apoiadores, que para usaram a tag #FechadoComBolsonaro. “Como já nos acostumamos a ver, o grupo de apoio forma uma rede mais fechada. No caso de sexta-feira, ela ficou unida, mas claramente isolada. As interações contrárias a Jair Bolsonaro, dessa vez, formaram um grande grupo (bolha). Sua coesão foi interligada pela tag #ForaBolsonaro”, diz o pesquisador Antonio Dione Santibanez, que analisou 60.534 menções no Twitter.

domingo, abril 26, 2020

Bolsonaro duro na queda, por Manuel Domingos Neto

Há cerca de uma semana, eu comentei aqui sobre um debate no canal do IE/UFRJJ entre os professores Manuel Domingos Neto da UFF, com Eduardo Costa Pinto do IE/UFRJ sobre a conjuntura. Ambos estudam o movimento dos militares em torno do poder político no país.

O professor Manuel insiste, e eu concordo com ele, que Bolsonaro é instrumento do movimento do Partido Militar (veja aqui estudo de pesquisadores da Unesp que o blog republicou dia 16/04/20) para um projeto autoritário de poder de longo prazo para o Brasil, e que por isso, eles concordam na essência e divergem apenas na forma e nos detalhes.

Esse texto divulgado hoje tem uma dose de pessimismo, mas ele não trata de desejos como convém a pesquisadores, porque se busca a interpretação do fenômeno real.

O bolsonarismo, agora rompido com o lavajatismo vem se tornando um movimento resiliente. Perde uma parte da classe média, mas amplia a relação com o neopetecostalismo, que pode vir a receber mais vantagens, na medida em que o capitão fique mais isolado. O comando dos generais haitianos pode jogar Bolsonaro ao mar, mas antes ele teria que sofrer ainda mais desgastes.

O Mourão não diferirá dele na essência, quando seguirá buscará a retomada (lá de 64) de uma ideia de segurança nacional contra os adversários internos, quando a decisão era eliminá-los. Na atual conjuntura (26/04), quando não só o isolamento é crescente, mas a perda de bases para governar, na medida em que toda a energia está voltada para a guerra cultural que pensam estar implementando.

Vale conferir o texto que nos ajuda na busca para uma compreensão sobre o que está em curso.


Bolsonaro, duro na queda

Manuel Domingos Neto em 26.04.2020
Eduardo Costa Pinto logo intuiu que o apoio a Bolsonaro poderia não ser afetado imediatamente pela demissão espetaculosa de Moro.

A pesquisa da XP realizada entre os dias 23 e 24, divulgada neste sábado, dia 25, confirmou sua hipótese. Os que alimentam expectativa boa, ótima e regular sobre o governo somam 44% dos entrevistados. Os que têm expectativa ruim e péssima chegam a 49%. Tendo em vista o desemprego, a penúria reinante e os descalabros governamentais, é um desempenho extraordinário.

A pesquisa registra que 77% dos entrevistados disseram ter conhecimento da saída de Moro. Pode não ter decorrido ainda o tempo necessário para que a exploração do episódio mostre seus desdobramentos.

De toda forma, fica reafirmado: Bolsonaro corporifica politicamente expressiva tendência conservadora-radical de parcela numerosa da sociedade brasileira. É notável a ofensiva dos bolsonaristas atacando Moro nas redes sociais. A turma tem consciência do impacto negativo da saída de Moro (67% das respostas), mas não se abate.

O afastamento de Bolsonaro, por renúncia forçada ou impeachment, hoje, dependeria basicamente de iniciativas institucionais, ou seja, de investigações criminais, judiciais e legislativas, não da mobilização popular contra os desmandos governamentais.

As instituições não entram em lances decisivos sem forte respaldo da opinião pública e... sem amparo militar.

Importantes elementos da grande mídia perderam as ilusões sobre a capacidade de o atual governo responder aos dramáticos problemas sanitários, sociais e econômicos. Empenham-se agora no afastamento de Bolsonaro temendo a deterioração do quadro sócio-econômico. Refletem a inquietude dos homens do dinheiro.

Mas, quando suas denúncias lograrão calar fundo na consciência de muitos brasileiros e sensibilizar as corporações da força bruta ao ponto de respaldarem o afastamento do Presidente?

Bolsonaro tem ao seu lado o Partido Militar, por baixo, um contingente de um milhão de homens da ativa e da reserva em ativismo ininterrupto e frenético para “salvar o Brasil” do comunismo e reforçar seus proventos.

Uma debandada de generais do governo seria devastadora. A política ficaria entregue aos políticos, mas isso é improvável. Onde já se viu militares entregando cargos políticos sem fortes constrangimentos por parte da opinião pública?

Os generais persistem amparando Bolsonaro e há diversas explicações possíveis, sendo a primeira delas a dificuldade de abandono da cria. Muitos ainda não admitem ou fingem não admitir, mas o candidato e o presidente Bolsonaro foram obras castrenses. Não existiriam sem a vontade e a mobilização da caserna.

A tentativa de atenuar a responsabilidade das corporações é manifesta nas insistentes referências a uma “ala militar”.

Que “ala” é esta? Obviamente, não pode se resumir aos três generais que não arredam o pé da sala do capitão. (Heleno hoje parece ter pouco peso). Ramos, Braga e Fernando não ocupam postos tão relevantes por conta de exclusivos atributos pessoais. Atrás de cada um, há a teia de amparo, intrincada, profusa e capilar.

O que pretende, qual sua consistência, quem a comanda a tal “ala militar”? Quem quiser que acredite que tais homens representam a si mesmo.

A falácia da “ala militar” serve para atenuar a ideia de que o governo esteja sendo respaldado e conduzido por corporações. Permite também imaginar oficiais idealistas e articulados voluntariamente para lutar contra terraplanistas aloprados.

Apontar tal “ala” é também uma maneira de negar a estreita aproximação política e ideológica entre os múltiplos e variados condutores da máquina governamental. Em outras palavras, serve para negar o afinamento entre as cabeças governamentais.

Ora, uma das razões do “sucesso” de Bolsonaro é justamente a coesão de sua equipe. As quedas de Mandetta e de Moro, que tanto animam os opositores, decorreram de veleidades eleitorais, não de discordância de princípios políticos, éticos ou administrativos.

É bem provável que nos próximos dias o noticiário revele com fartura que Moro e Bolsonaro apresentam a mesma qualidade moral. Moro, menos vivaz, será duramente estigmatizado como transgressor da “omertà”.

Há, de fato, figuras no governo que, pelo exotismo de posturas e pela incapacidade administrativa incomodam os militares. Mas no plano da percepção do processo político em curso, não há contraditórios notáveis na equipe.

Predominam no conjunto a ojeriza à esquerda, o medo da China, o alinhamento automático a Washington, o conservadorismo nos costumes, o ódio ao sistema político representativo, a raiva e o pavor da transformação social favorecedora dos mais pobres, a vontade de destruir o que foi construído com base do pacto de 1988.

Exemplos notórios da comunhão espiritual entre militares e terraplanistas aloprados: o silêncio frente às agressões de Olavo de Carvalho, as contemporizações com os ministros da Educação e do Exterior, próceres da abominável destruição de políticas públicas estratégicas. Observemos a concentração de militares na Educação e na Ciência e Tecnoligia. Por que não reagem aos descalabros?

Bolsonaro é uma cria dos militares e seu governo representa a vontade das corporações politicamente ativas desde sempre, mas obedientes aos esquemas de aproximações progressivas e sustentadas, conforme explicou Mourão.

É intrigante que, até agora, a estreita associação entre o bolsonarismo e o partido militar não seja percebida pela “sociedade civil”. As tergiversações nesta matéria são lastreadas na falácia de que os militares persistem como o "lado” ajuizado ou racional do governo. Ora, não podem ter bom juízo os que escolheram o “Cavalão” como peça de apoio para retornar ao mando político e desenvolver tenebrosa agenda conservadora.

Analistas de todos os matizes, com razão, agitam-se acerca de supostas cisões entre os generais e o presidente. Há gente de esquerda, inclusive, torcendo discretamente para que isso ocorra. Alguns olham esperançosos para o vice-presidente. Um líder de esquerda disse até que o Brasil chegaria melhor em 2022 com o governo entregue ao general Mourão.

Iludida, aturdida e na defensiva, a oposição fala em governo de “salvação nacional”, em “frente ampla”... Se não consegue se entender minimamente, como a oposição lograria arrebatar o sentimento dos brasileiros?

A oposição sabe que não tem força e não pode pensar em levantar multidões. Evitando o combate de idéias no seio da população, os partidos voltam-se para práticas eleitorais carcomidas, mesmo sem a certeza de que o próximo pleito seja de fato assegurado.

Quanto à saída para a crise, sonha com a prevalência da tradição republicana: um grande acordo de cúpula que evite confrontos desestabilizadores de velhas estruturas. Um ponto indiscutível do acordo é o descarte definitivo de Lula.

O que pode fazer ruir o castelo de cartas que sustenta Bolsonaro, quem sabe, é a comoção decorrente da mortandade previsível pela incúria diante do avanço anunciado do covid-19.

Mas, comoções populares em si não conduzem necessariamente a mudanças políticas efetivas. Provocam explosões de fôlego curto, contidas pelo aparelho repressor do Estado, o mesmo que criou e sustenta Bolsonaro.

Para não concluir de forma demasiado amarga, lembraria que, como quase tudo na vida, farsas políticas têm duração incerta. A administração do mundo está em mudança acelerada e pode encurtar a trágica aventura do partido militar que leva o nome de “governo Bolsonaro”.

Como observou Héctor Saint-Pierre, esta aventura tem tudo para ser as Malvinas dos militares brasileiros.

sexta-feira, abril 24, 2020

O Brasil precisa de uma Frente Democrática para reconstrução da nação!

As placas tectônicas seguem se mexendo no Planalto.

Em meio a 400 mortes diárias de brasileiros atingidos pelo coronavírus (que parece não ter nenhuma importância), Bolsonaro e sua junta de generais haitianos, seguem jogando fora as suas bases de apoio, em direção a um governo ainda mais autoritário, assustando ainda mais a nação.

Não é que Moro fosse impedimento para isso, mas é que algumas instituições podem estar recuperando, ainda que lentamente, a racionalidade que abandonaram em nome de um projeto de poder que vai se confirmando alucinado para governar.

Dos três pilares que sustentaram a eleição e se dizia que iria tutelar o eleito, em meio à explosão de fake news e facada, só um, até agora segue com ele: comando dos militares haitianos. A parte judicial das cortes vai pulando fora da aventura e cada vez mais, também, a ala do poder econômico que reunia de liberais a ultraneoliberais, vai buscando no seu tempo a forma de desembarcar no apoio a Bolsonaro. Isso nunca se dá de forma unânime, mas por maioria.

A confirmação de Moro (ainda na condição de ministro, porque de antes de seu pedido renúncia) de que Bolsonaro disse claramente, que a razão de seu objetivo com a troca na direção da Polícia Federal, se referia ao interesse que tinha nos processos em que era atingido no STF e no acompanhamento direto de relatório dos seus agentes, pode ter vários tipos de encaminhamento. 

Apenas mais um grave crime de responsabilidade de Bolsonaro.

O encaminhamento que será escolhido tende a definir a direção deste processo. Os fatos mostram como era bobagem essa interpretação de que os generais haitianos do Planalto tutelavam Bolsonaro. Eles são partes do mesmo jogo genocida e que levam a nação para o colapso.

Moro deverá ir para São Paulo ser secretário do Dória e assim manter um emprego e o aceno que juntos eles podem ser alternativas de poder para 2022.

Resta saber a nação que sobrará até lá. É preciso fugir desta tentação de discutir as eleições e pensar as pessoas e a nação.

Neste atividade alucinante em que se segue cavando o poço que parece não ter fundo, eu me lembro de algumas pessoas, próximas de cada um de nós, que dizia lá em 2018, que "ele não é isso tudo não". Realmente. É muito pior.

Essa visão higienista da política vai dando nisso que vemos aí. Como foi com Hitler até chegar ao nazismo, uma visão guiada unicamente pelo combate à corrupção. A luta contra a corrupção tem que ser travada, mas não como norte.

Assim, ninguém hoje tem ainda condições de dizer para onde as coisas caminharão. Mas precisamos dizer para onde não se pode deixar levar a nação, para um ditadura militar que já se instalou.

Precisamos compor uma frente democrática ampla, para discutir as saídas, e nela um projeto de reconstrução nacional para evitar os traumas ainda maiores da pandemia e este desmonte da nação.

No meio da frente democrática, os setores progressistas e de esquerda do país devem também se organizar entre si, para que a saída política, seja pelo viés da distribuição de renda e de um uma nação para todos.

A unidade pode se dar na prática, o que não elimina a organização pelos movimentos, partidos, credos, etc. para garantir a democracia, porque sem ela, não haverá espaço para debates e busca de maioria para projetos inclusivos de nação.

quarta-feira, abril 22, 2020

O fluxo mundial de petróleo, a Covid-19, a geopolítica da energia e o risco sistêmico do capitalismo

Nesta terceira semana de abril (2020) estamos assistindo a situações antes sequer pensadas como hipóteses. Não se tratou apenas de mais uma redução de preços, numa fase de colapso do ciclo petro-econômico. No caso dos EUA, o petróleo tipo WTI chegou a ficar negativo em US$ 38. Ou seja, se pagava essa quantia para alguém admitir receber e poder armazenar o produto adquirido no chamado “mercado futuro”.

No mercado financeiro este “mercado financeiro” promete ser um mecanismo que sinaliza preços e investimentos no mundo real das commodities, mas na prática ele entrega e serve basicamente à especulação. O mercado futuro traz para o presente (presentificação) um lucro (capitalização, capital fictício) sobre uma renda e riqueza que sequer existe. E neste caso, a valorização fictícia desta mercadoria se pendurou no futuro e assim caiu no poço fundo de um petróleo quase sem valor.

Pois bem, essa situação trouxe à tona a realidade dos fluxos globais de petróleo pelo mundo. Como sabemos, o petróleo é a mercadoria mais vendida no mundo (ENGDAHL, 2016) [1], sendo ainda a mercadoria lícita mais lucrativa neste planeta (KLARE, 2008). [2] [3]

Como sempre faço questão de recordar expressão do professor alemão Altvater (2010) [4], em seu livro “O fim do capitalismo como o conhecemos”, quando afirmou em sua análise que o capitalismo é lubrificado pelo petróleo. O capitalismo sem o petróleo seria qualquer outra coisa e não este que conhecemos. Assim, por derivação começamos a interpretar que um colapso deste tamanho que vemos no presente, talvez, o maior da história possa estar começando a comprometer (ou já estar sendo comprometido), o sistema, considerando a relação biunívoca e de interdependência que o petróleo e o capitalismo possuem, em especial desde a 2ª GM e que se estende ao mundo contemporâneo. Sendo assim, é possível também especular que o dólar também estaria em risco. Mas tudo isso, ainda deve ser melhor observado e investigado, embora essa realidade não possa mais ser escamoteada.


Fluxo mundial de petróleo
O fluxo de qualquer mercadoria é puxado por quem precisa comprar (e importar) e os que produzem em excesso às suas demandas para consumo interno e assim as coloca à venda. Os países que mais produziam petróleo até março, eram EUA; Arábia Saudita; Rússia e Canadá. Enquanto os que mais precisam comprar quase sempre são os que mais consomem petróleo no mundo. A exceção são os EUA que são disparados os maiores consumidores – com um consumo superior a 20% da produção mundial – sendo também o maior produtor precisando ainda das importações. Além dos EUA os outros maiores importadores são China; Índia e Japão. Sendo que a China é hoje o maior importador mundial de petróleo.

O volume das exportações mundiais depende ainda da diferença entre o que os maiores produtores extraem do seu subsolo (ou mares) e o que consomem internamente. Nesta linha aumenta o peso dos demais países produtores do Oriente Médio, além da Arábia Saudita, como é o caso do Iraque; Emirados Árabes Unidos (EAU); Irã; Kuwait, etc. Em suma, cerca de 40% de toda a extração de petróleo é vendida nos mercados mundiais. Os demais 60% são consumidos pelas próprias nações produtoras (PESSANHA, 2017, p.68). [5] 

Um total de 2/3 desse volume colossal de petróleo bruto e derivados (combustíveis) são comercializados mundialmente pela via marítima e apenas 1/3 através de dutos (PESSANHA, 2017, p. 131). [5] Segundo Michael Klare, estudioso da geopolítica do petróleo, em 2008, um total de 4 mil navios petroleiros faziam este transporte mundial de petróleo. Hoje, com os superpetroleiros, aquele de maior porte, tipo VLCC (Very Large Crude Carriers) - que possuem uma capacidade de transporte de 330 milhões de litros -, este número de petroleiros, circulando pelo mundo caiu para algo em torno de 3,5 mil. Não caiu tanto, porque a quantidade de petróleo comercializada no mundo se ampliou bastante nos último anos. Estima-se hoje que mais de 2,5 bilhões de toneladas de óleo atravessem os oceanos.

Com o advento dos navios petroleiros gigantes (VLCC), a atividade de transbordo de petróleo de navios petroleiros menores, para os dos tipo VLCC, cresceu de forma expressiva e passou também a demandar vários terminais portuários para realizar este tipo de operação, que reduz bastante o valor do frete final, para o transporte em massa de petróleo, em especial para aqueles feitos para grandes distâncias. Diferenças que dependendo do volume de petróleo e das distâncias, podem chegar a até US$ 10 por barril. Na circunstância atual seria quase o valor do barril (WTI) ou metade do valor do barril tipo brent.

Navio-petroleiro é um tipo específico de navio-tanque usado para transporte de petróleo bruto e seus derivados. O petróleo é ainda uma mercadoria especial, porque é a única que precisa dela mesmo para se transportar, embora sob a forma refinada de combustível (diesel). Os petroleiros se movimentam a uma velocidade máxima de 30 km/h, o suficiente para ir do Oriente Médio aos Estados Unidos em cerca de dois meses. As rotas consideradas chaves para o petróleo do mundo são: Estreito de Ormuz (controle do Irã); Estreito de Malaca (chave para a China); Canal de Suez e o oleoduto SUMED (Egito) e o Estreito de Bab el Mandeb (entre África e Oriente Médio, no Mar Vermelho). Recentemente, com os EUA ampliando sua produção e passando a exportar petróleo e também, em especial, derivados e combustíveis, o Louisiana Offshore Oil Port (LOOP) passou a ter um papel estratégico como hub neste tipo de comércio para todo o mundo.


As crises Covid-19, a disputa pela produção e preço do petróleo superpostas
Desde a virada do ano de 2019 para 2020, estas crises do preço do petróleo e da Covid-19 foram se alternando nas preocupações e se superpondo. No caso do petróleo, logo nos primeiros dias do ano, o conflito EUA x Irã já colocava a questão em cena, por se tratar dos riscos gerados não apenas pela produção de petróleo do Irã, mas pelos fluxos de toda a produção de petróleo da região que usam os estreitos até chegar aos mares. Mesmo com a Convid-19 se espalhando e preocupando na China, a nível mundial o olhar era de que se tratava de um problema localizado e que poderia ser contido. Já do meio de fevereiro em diante as tensões para o setor, para a saúde e para a economia como um todo começou a acender um sinal amarelo. O fluxo de saída de capitais dos mercados emergentes era colossal. Mas ainda, se fingia normalidade nos mercado. Em março isso foi se agravando e no mês de abril as preocupações já eram enormes com um sentimento de falta de controle sobre o processo que tendia a ser sistêmico.

Pois bem, assim o processo se desenrolou entre aumento de contaminações e mortes espantosa na Europa e EUA. Uma tragédia ainda em curso. Na semana entre 13/04 e 19/04 as reuniões da Opep+ e G-20 se mostraram impotentes, para uma solução que pudesse abranger todo o setor globalmente. Assim, é que na semana que começou no dia 20 de abril de 2020, que o desespero no setor de petróleo se instalou com a realidade do excesso de petróleo no mercado, gerado pela disputa da Opep+ x EUA e simultaneamente pela redução do consumo como consequência do isolamento social imposto como prevenção de contágio da Covid-19. [6] [7]

A Agência Internacional de Energia (AIE), informou que em março o consumo mundial tinha sido 29% menor do que no mês anterior com redução de consumo de 29 milhões de barris por dia, diante de uma produção mundial próxima dos 100 milhões de barris por dia. [8] Desta forma, o desespero no EUA é que o limite da capacidade de estocagem desse excesso de petróleo chamou a atenção de todo o mundo. Além de reservatórios, oleodutos, navios petroleiros, vagões de trens, cavernas subterrâneas de armazenamento (que muitos sequer sabem que existe, em várias partes do mundo, como p.e. no Clovelly Hub Louisiana Offshore Oil Port (LOOP) em Louisiana [9] [10] [5], tudo estava ou lotado de petróleo, ou já comprometido e contratado para receber a mercadoria.


Mapa com a espacialidade do fluxo mundial de petroleiros
Segundo a agência de notícias Reuters na segunda-feira (20/04) dia do colapso do petróleo tipo WTI (americano), havia 160 milhões de barris de petróleo em navios-tanque. Isso é 60% a mais que no auge da crise de 2008. Para ilustrar essa situação e o tráfego de petroleiros (tankers) pelo mundo na atualidade vale conferir o mapa abaixo (Figura 1) da Marine Traffic, hoje (22/04/2020), que demonstra a quantidade e o fluxo de petroleiros circulando pelos mares do mundo, assim como os seus principais fluxos. [11]


Figura 1: Mapa do fluxo de navios petroleiros (tankers) em 22 abril de 2020:


















Fonte: Marine Traffic [11]. Composição do autor a partir do site.

Através do mapa é possível identificar os pontos mais densos: a) em torno dos EUA (terminal LOOP da Louisiana e Texas no Golfo do México; b) no Oriente Médio (seus canais e estreitos citados acima); c) na Ásia China, Índia e Japão (grandes importadores). Vale ainda observar a movimentação de petroleiros contornando a África, onde há também fortes produtores (em especial Nigéria e Angola), assim como os petroleiros em torno da América Latina, em especial do Brasil, onde os “tankers” fazem a movimentação de petróleo. Um pouco antes do início desta fase (2020 de colapso do ciclo petro-econômico (Pessanha, 2017, p.95-147) [5], o Brasil exportou e 2019, cerca de 1,3 milhões de barris de óleo cru e estava importando mais de meio milhão de barris por dia de combustíveis e derivados. [12]

Não se pode deixar de falar na movimentação de petroleiros a partir da Rússia, mas boa parte do petróleo russo é exportado ainda por oleodutos para a Europa. Vale ainda lembrar que o maior potencial russo é de produção de gás natural, que aliás, hoje é parte do conflito com os EUA, que insiste na sanção, para tentar impedir a ligação da Rússia com a Alemanha, através da rota Nord Stream 2. Trata-se de um gasoduto com dois ramais paralelos, cada um com 1224 km de comprimento. O primeiro ramal já funciona, o segundo orçado em quase 11 bilhões de dólares, foi projetado para transportar até 55 bilhões de metros cúbicos por ano e que está com as obras paralisadas, mesmo que com mais de 90% já concluídas. Projeto da estatal russa Gazprom, mas com participação de cinco empresas europeias das áreas da energia e produtos químicos, como é o caso da alemã BASF, da anglo-holandesa Shell e da francesa ENGIE.


A relação biunívoca entre petróleo e o capitalismo (dólar) e o risco sistêmico de colapso
A relação sistêmica entre petróleo e o capitalismo nos oferece vários indicativos para a compreensão do presente. A redução dos fluxos globais desta mercadoria mais negociada, e até aqui, a mais rentável (entre as lícitas) do mundo está transformando o papel de uma boa parte dos navios petroleiros mundo afora.  Eles estão deixando de movimentar petróleo para servir de instalação de estoques de petróleo. Isto é um claro indicativo que aponta para o aprofundamento da crise em direção à uma enorme depressão econômica a nível mundial. A quebra de parte deste fluxo traz impactos para além do setor e se relaciona à demanda de liquidez para o dólar que é a moeda - de uso quase obrigatório - para a sua comercialização, desta mercadoria especial, reforçando a interpretação que insisto sobre a relação biunívoca e a interdependência entre o petróleo e o dólar (capitalismo).

Em termos espaciais, o mapa da Figura 1, acima, também pode apontar como os efeitos da crise vai de expandindo, seguindo um fluxo similar à da contaminação da Covid-19, com consequências econômicas graves sobre o sistema financeiro (de moedas e de impactos nos fundos, em especial os de investimentos tipo hedge que investem pesado no setor petróleo), sobre os bancos-centrais, os Estados-nações, a política, a sociedade, etc.

Há quem ainda creia que seja apenas um impacto temporário e de curta duração que terá uma curva de recuperação “tipo V”, com volta rápida, pós-pandemia, à situação anterior. A quem enxergue que esse prazo de recuperação será maior, num curva “tipo U”. E ainda outros, que preferem acompanhar para compreender melhor a profundidade, a extensão e o período de tempo que essa situação calamitosa e humanitária terá sobre a economia.

A prudência de um pesquisador sugere que se distancie um pouco mais do presente, para se poder compreender melhor o fenômeno em curso. Porém, de outro lado, não seria admissível, não arriscar hipóteses interpretativas, ainda no calor dos acontecimentos com vistas não apenas à compreensão do que está ocorrendo, mas para evitar o pior e buscar correções e transformações.

Sobre a política e o poder, ninguém tem dúvidas que todos serão abalados. Em qual grau e reações ainda não previstas. Mas é certo que as reações virão das massas mais pobres e vulneráveis que estão sendo massacradas em várias partes do mundo, incluindo nas nações do capitalismo central. Se a crise prosseguir de forma sistêmica, os movimentos não cessarão, porque a energia deslocada de suas fontes, ainda produzirão dinâmicas muito fortes que atingirão o mundo de forma transescalar (em várias regiões) e simultaneamente em múltiplas dimensões das vidas dos sujeitos.

Tudo isso, exigirá um enorme esforço, tanto de compreensão do fenômeno, quanto de reorganização de um novo sistema, para que saiamos da barbárie que nos rodeia (a uns povos mais que outros). Quem sabe, assim possamos tentar buscar uma humanidade, que seja real e não fingida e controlada pelas forças do poder econômico e militar, como tínhamos até a ocorrência da pandemia no final de dezembro de 2019. O(s) império(s) reagirão. O “hegemon” e o sistema lutarão, esganiçadamente, para mais uma vez, se reinventarem. Mas um outro mundo tem que ser possível!


Referências:

[1] ENGDAHL, William, F. Russia Breaking Wall St Oil Price Monopoly. Preço do petróleo: Rússia quebrará o monopólio de Wall Street. Oriente mídia (online), 11 jan. 2016. Disponível em:http://www.orientemidia.org/preco-do-petroleo-russia-quebrara-o-monopolio-de-wall-street/; e em:

[2] KLARE, Michael T. Maldito petróleo barato. Le Monde Diplomatique Brasil, 4 abr. 2016. Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=2072.

[3] KLARE, Michael T. A nova geopolítica da energia. Site Carta Maior, 2008. Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/A-nova-geopolitica-da-energia%0d%0a/6/14206

[4] ALTVATER, Elmar. O fim do capitalismo como o conhecemos. 1 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 

[5] Tese do autor defendida em mar. 2017, no PPFH-UERJ: A relação transescalar e multidimensional “Petróleo-porto” como produtora de novas territorialidades. Disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da UERJ. Disponível em: http://www.bdtd.uerj.br/tde_busca/processaPesquisa.php?pesqExecutada=1&id=7433&PHPSESSID=5vd3hsifip5hdg3n1icb57l9m6

[6] Postagem do blog Roberto Moraes em 20 de abril de 2020. A especulação do mercado futuro de petróleo se soma à crise do coronavírus e à disputa Opep+ x EUA. Disponível em: https://www.robertomoraes.com.br/2020/04/a-especulacao-do-mercado-futuro-de.html

[7] Matéria de O Globo online em 20 de abril de 2020. MARTINS, Gabriel e NETO, João S. Pandemia faz petróleo fechar abaixo de zero nos EUA pela primeira vez. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/pandemia-faz-petroleo-fechar-abaixo-de-zero-nos-eua-pela-primeira-vez-24383177?fbclid=IwAR318Uplg4RR9FZDvDUfJt2Sf_3tXAqqI17vA0Flba1veeniPtOJsLeop24

[8] Matéria do Valor Online e Dow Jones Newswires em 15 de abril de 2020. Demanda por petróleo deve ter queda recorde em abril, diz AIE; Brent recua. Projeção da agência é de um tombo de 29 milhões de barris por dia no mês, o que levará a uma redução de 9,3 milhões de barris por dia este ano. Disponível em: https://valor.globo.com/financas/noticia/2020/04/15/demanda-por-petroleo-deve-ter-queda-recorde-em-abril-diz-aie-precos-operam-em-queda.ghtml?fbclid=IwAR09hdNvC9hZuwTiyR0iO0XY8A6vHeboNLJ6w61DChRuC3mJS0RbJBywroU

[9] Matéria do site PetroNotícias em 26 de julho de 2017. O maior centro de importação de petróleo dos EUA quer se tornar também um ponto exportador. Disponível em: https://petronoticias.com.br/archives/101168

[10] Sobre as cavernas submarinas de armazenamento de petróleo e combustíveis que são considerados “Reserva Estratégica de Petróleo” (SPR, na sigla em inglês). Os EUA possuem mais de 60 cavernas, muitas instaladas há quase meio século desde a primeira crise do petróleo na década de 70. As cavernas submarinas estão situados no que é chamado de cúpulas de sal. O sal é impermeável ao petróleo cru. Desta forma as duas substâncias (sal e petróleo) não se misturam e também não há rachaduras, por isso a solução é considerado um reservatório perfeito para e petróleo e combustíveis. BBC News Brasil em 5 out. 2015. Por que os EUA guardam 700 milhões de barris de petróleo em cavernas? Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/10/151005_cavernas_estoque_petroleo_eua_fn.
Portal R7 – Reuters em 07 jan. 2016. China constrói tanques subterrâneos para armazenar reservas de petróleo estratégicasDisponível em:
https://noticias.r7.com/economia/china-constroi-tanques-subterraneos-para-armazenar-reservas-de-petroleo-estrategicas-07012016

[11] Portal da Marine Traffic que acompanha online a movimentação de navios (embarcações) em todo o mundo. Disponível em: https://www.marinetraffic.com/

[12] Postagem do blog Roberto Moraes, em 02 de janeiro de 2020. Em 2019, o Brasil exportou 1,3 milhão de barris por dia de petróleo cru e importou cerca de 600 mil barris por dia de derivados - desmonte do setor nacional de petróleo, em processo de nigerização! Disponível em:
http://www.robertomoraes.com.br/2020/01/em-2019-o-brasil-exportou-13-milhoes-de.html

segunda-feira, abril 20, 2020

A especulação do mercado futuro de petróleo se soma à crise do coronavírus e à disputa Opep+ x EUA

Sobre os preços negativos do petróleo, tipo WTI (americano) hoje, os amigos estão me perguntando (em off )sobre essa notícia. Vou resumir aqui o que conversei com alguns companheiros de pesquisas sobre esse circuito econômico. Veja aqui matéria de O Globo sobre o tema.

No caso dos EUA aconteceu quase um desespero. Capacidade de estoque no limite. Além de reservatórios, oleodutos, navios petroleiros, vagões de trens, etc. tudo lotado. Assim, quem tinha petróleo comprado no passado estava pagando (chegou a pagar mais de US$ 35 dólares, quase R$ 200) o barril, para que alguém pudesse ficar com ele guardar. Todos tentando perder menos.

Repito. Quem comprou no mercado futuro lá atrás, estava tendo dificuldades, para encontrar alguém que quisesse ficar com esse petróleo que vai ser entregue ainda em maio.

Neste caso, não se pode deixar de falar do dessa maluquice do rentismo do "mercado futuro". Mercado futuro é um mecanismo do mercado financeiro que vende a ideia de ser útil para sinalizar preços e investimentos no mundo real das commodities. Porém, na prática, é um instrumento de especulação que captura dinheiro em papeis, chamados de derivativos, que ficam com uma boa parte da renda, neste caso do petróleo.

O mercado futuro acaba sendo o instrumento que tenta trazer o futuro para ser negociado no presente (presentificação), que envolve na sua gênese muita especulação (informações que não se concretizam, quebram pequenos negócios que ficam baratos para serem comprados, etc.), produz uma valorização fictícia (capitalização), que neste caso hoje do barril de petróleo WTI, se perdeu, porque se mostrou muito descolada da economia real.

Os maiores prejudicados são os produtores de xisto americano financiados pelos fundos hedge. Por isso, Trump se desespera com o isolamento que leva a baixo consumo de combustíveis. Os produtores de petróleo de xisto (tight oil e shale gas) são seus apoiadores.

Os EUA é o maior atingido com a redução do consumo e a alta produção de petróleo de xisto. Os EUA era antes o maior produtor mundial de petróleo ( mais de 12 milhões de barris por dia) e também o maior consumidor (disparado).

Porém, esse mesmo movimento não ocorreu com o petróleo tipo brent vendido no resto do mundo, que teve uma queda menor e esteve hoje, na faixa dos US$ 25. Só o tipo WTI americano é que sofreu mais por conta do "mercado futuro".

O circuito econômico do petróleo nos ajuda muito a entender o capitalismo como ele se desenvolveu, lubrificado pelo petróleo, como afirmava o professor Altvater. Ele foi demandando mais capitais (se financeirizando com fundos públicos e privados) e puxando outras cadeias produtivas e sendo puxadas por elas, pela urbanização, etc.

A redução abrupta do seu consumo por conta do isolamento para conter a Covid-19 produz o maior impacto econômico, que se junta ao impacto humanitário da contaminação biológica. Mas este fenômeno em si é simbólico do impacto do modelo em que vivemos, sustentado em crenças e fios de cabelo.

No plano da geopolítica do petróleo, além da violenta redução do consumo global do petróleo, fica ainda mais claro que não se tratava de uma disputa entre a Arábia Saudita e a Rússia como não parava de repetir Trump. O que houve - e agora vai ficando mais claro - foi uma disputa por produção e controle de preços, entre Opep+ x EUA.

Assim, com estas questões simultâneas (disputa por preço, volume de produção e mercados mais as consequências econômicas do coronavírus), a geopolítica do petróleo depois deste vendaval em curso vai produzir alguns fortes movimentos.

A redução abrupta do seu consumo por conta do isolamento para conter a Covid-19 produz o maior impacto econômico que se junta ao impacto humanitário da contaminação biológica.

Mas este fenômeno em si é simbólico do impacto do modelo em que vivemos, sustentado em crenças e fios de cabelo. Se o petróleo lubrifica o capitalismo como afirmou o professor alemão Altvater, o coronavírus também infectou e produziu uma corrosão na graxa do sistema.

PS.: O Globo mudou a manchete e o conteúdo da matéria citada acima. Antes saiu assim; "Petróleo é negociado abaixo de zero nos EUA com corridas para venda de contrato e estoques altos". Depois passaram a atribuir tudo isso à pandemia. Uma verdade parcial. A questão é muito mais ampla como tentamos aqui apenas pontuar.

Bolsonaro segue redobrando a aposta. A quem ele se referia quando disse que "nós não queremos negociar nada"? Negociar o quê? Em troca de quê?

Bolsonaro hoje redobrou novamente sua louca aposta esticando ainda mais as cordas. O comando militar dos generais haitianos instalados no Planalto ainda permanece com o capitão, mas vai sendo confrontado mais uma vez nesta posição.

A princípio, os generais não afirma não quererem o golpe porque ainda hoje reclamam dizendo "que a partir de 64 eles ficaram com pecha de golpistas" (pecha correta é bom que se diga) e por isso tendem a querer ficar com a institucionalidade.

Mas, como já disse antes Bolsonaro e o comando dos generais haitianos não têm oposição no essencial. Eles comungam a mesma interpretação do país e de ideias para solução. As diferenças são nos detalhes. Entre as diferenças é que Bolsonaro quer avançar direto para controlar tudo na força. Já, o projeto dos generais haitianos prevê um projeto gradual de aprofundamento da direita para um poder de longo prazo.

Neste sentido, estas seguidas apostas de Bolsonaro forçam a que o comando militar dos generais tenha que se decidir. Até aqui eles jogam o mesmo jogo, com os generais contornando e contemporizando.

Mas, hoje o capitão exagerou em todos os limites. Porque falou num ato que reivindica a volta da ditadura. Ou seja, um uma posição inconstitucional clara do presidente. Foi ainda mais incisivo ao dizer que a força dele “é o povo no poder... acabou a patifaria ... nós não queremos negociar nada”. A quem ele se referia? Quem quer negociar o quê? A sua moderação? Em toca de quê? Quem daria o quê nessa negociação que ele rejeita? 

Falar disso tudo num ato em favor da ditadura é um chamamento para o confronto. Ou amanhã vai dizer que não foi nada disso? A sociedade e as instituições continuarão a brincar com o golpista? E vê-lo organizar as bases armadas?

No meio deste enorme conflito político (que ele não cessa, porque não governa, apenas arma conflitos), num momento de morte e terror que vive toda a população, há que se lembrar que a sustentação de Bolsonaro se dá em duas bases. Uma é dos militares (Partido Militar). A outra é o poder financeiro. Nassif chama esse nível de comando com duas bases de sustentação atual do poder político no país da superestrutura, lembrando ainda que a base do poder financeiro (e econômico) também tem controle direto da mídia que reflete na opinião pública que é onde o capitão ainda tenta se segurar.

Sendo assim, diante do esgarçamento contínuo e até isolamento de Bolsonaro, esse segundo sustentáculo (poder financeiro) pode (ou não) forçar o comando militar dos generais para que arrumem uma forma de jogar Bolsonaro ao mar. Em que tempo? De que forma? Ainda é difícil saber, porque estamos no meio da pandemia. Mas os conflitos estão sendo organizados.

Porém, o transcurso de tempo e este disse-me-disse, que se seguem às declarações tresloucadas do capitão, essa decisão pode ser revista. O comando dos generais haitianos sempre buscará optar se manter ao lado de Bolsonaro. Eles vislumbram dias difíceis pela frente. Milhares de mortos e cadáveres e reações à miséria, fome e desemprego e demais problemas econômicos, inclusive pelo não recebimento dos auxílios já aprovados.

Os generais sabem ainda que mesmo com uma base que vai sofrendo erosões, dia após dia, é o capitão quem possui – e preserva - relação direta com essa base. Não o outro general, Mourão, o vice, única alternativa para uma saída institucional (constitucional). Base que se reduz (possivelmente já até em menos que 20%), mas que articulada pelas redes sociais (e robôs) é barulhenta, e além de tudo, é em boa parte armada (polícias, milícias e os praças das FFAA).

Só não dá para dizer que quem pariu o capitão que o embale, porque o que está em jogo agora não é ainda mais que uma eleição e a direção da política no país, mas as vidas de todos nós. Embora, saibamos que a condução do país com o atual (des)governo já fosse responsável por muitas outras mortes e perdas do país, mas foi a partir dos riscos da Covid que o genocida e seus seguidores, passaram a operar sem controle, matando e aproveitando a “janela de oportunidades” para impor a ditadura. Até aqui com sucesso.

sábado, abril 18, 2020

Diário da pandemia, por Douglas da Mata

Abaixo a interessante análise transescalar e em várias dimensões que o Douglas da Mata publicou há pouco, em seu perfil no FB e o blog reproduz na íntegra abaixo.


Diário de pandemia...

Algumas observações ao longo da semana, a partir dos subsídios que tenho angariado em textos publicados por outros autores:

- Não há uma divisão (política) no comando do capital internacional e muito menos nas sua franjas (periferia, como a América Latina).

O roteiro é muito parecido em quase todos os países, e apesar de não haver provas de um sincronismo proposital, tudo faz parecer que seja desse modo.

Sempre há de um lado uma posição mais humanista ("científica"), que alinha alguns governantes, setores empresariais (geralmente os mais protegidos e beneficiados pelas ajudas governamentais) e as classes médias ligadas os serviços públicos (com algumas exceções, é claro), e de outro lado, supostamente, os "corona-céticos", que desafiam qualquer abordagem especializada do assunto, e que se dizem defensores do emprego e dos mais pobres.

- Não há essa divisão, o que está rodando é uma versão mais sofisticada da guerra híbrida na qual estamos imersos desde as décadas de 70/80 do século passado, quando a mídia empresarial virou um partido político, ao mesmo tempo que o sistema financeiro deixou de ser um meio de auxílio da acumulação capitalista para ser um fim em si mesmo.

Nessa versão, as principais armas são as ações diversionistas, na linguagem de inteligência e contra-inteligência militar, a maquiagem da realidade com fins estratégicos e táticos.

Nesse meio tempo, os poderes judiciários também formaram outro partido político, somando-se aos partidos militares na guerra ideológica que deflagrou o que virá: A Nova Idade Média.

Esse termo é só uma brincadeira, óbvio, porque ninguém defenderá que os pilares que estruturavam as sociedades medievais tenham voltado, mas é tentador fazer as comparações:
a) Pestes e pandemias;
b) Religiosidade exacerbada, com "novas inquisições";
c) Cidades fortificadas (condomínios e territórios das narco-milícias);
d) Restauração das formas autocráticas de governos, etc, etc, etc.

- Vivemos essa intensa gangorra: mandetta versus bozo, bozo versus braga neto, "científicos" e "corona-céticos", e por aí vão.

O objetivo é sempre apresentar uma narrativa polarizada, a fim de mostrar uma realidade binária, impondo sempre uma escolha, um lado.

Isso não quer dizer que as oposições tenham acabado, como luta de classes, ou a disputa pelo poder, nada disso, mas o que os formuladores das ações diversionistas (no jargão popular "fake news") fazem é reduzir a realidade a um nível de superficialidade que esconde o que está de fato acontecendo.

Enquanto a TV se apresenta como defensora da ciência ("a nova religião") e elege seus "heróis" e "vilões", bancos engordam seus caixas com a velocidade da luz, e de outro lado, a ajuda aos pobres e aos Estados da Federação andam a passo de cágado.

Na outra ponta, bozo, o "anti-herói" dos pobres", que com todo direito se ressentem de serem outra vez os mais prejudicados, surfa na onda de popularidade conferida pelos que ignoram as medidas de isolamento e prevenção sanitária.

Ora bolas, como falar em senso coletivo de saúde para pessoas que sequer têm água e sabão para lavar as mãos?

Quem quer ficar em casa, quando casa é um barraco no meio do esgoto, com 43 crianças famintas, no espaço de 10 m² pendurados em uma palafita de madeira ?

E o bozo, com sucesso, vai dizendo a essas pessoas que a situação delas não é resultado de um capitalismo que já os triturava e que sugou qualquer chance do Estado de reagir com rapidez em auxílio deles, mas sim culpa dos que defendem o fechamento da economia.

Sinais preocupantes que observei:

- Alguns países da Europa e Ásia começam a estocar e restringir a exportação de suas commodities (como o trigo);
- Aumento de compras de armas por cidadãos dos EUA (o que leva a crer, assim como a estocagem de comida que começou com pessoas comuns, que governos estejam fazendo o mesmo);
- Subida sustentada de preços de alimentos e itens de primeira necessidade (higiene e limpeza), que vem sendo escondida pela mídia;
- A região da Europa, dominada por alemães, ignorou solenemente o sofrimentos dos habitantes da Itália e de outros países mais pobres do bloco;
-Aumento da pressão da questão da imigração ilegal nas fronteiras da Europa, com o empobrecimento ainda mais drástico que se abaterá sobre a África, o que acontecerá de forma parecida nos EUA e seus vizinhos do sul.

O cenário não é animador.

Aguardemos...

quinta-feira, abril 16, 2020

O Partido Militar no (des)governo Bolsonaro: leituras sobre coesões e desconcertos feitas pelo Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) da Unesp

Para quem vem acompanhando o protagonismo do comando militar dos generais haitianos no Palácio do Planalto e o desenvolvimento do seu projeto de poder de longo prazo, vale conferir este interessante artigo do Observatório da Defesa e Soberania, vinculado ao GEDES (Grupo de Estudos de Defesa e Segurança) da Unesp.

O artigo tem como autores os pesquisadores Ana Penido, Jorge M. Rodrigues e Suzeley Kalil Mathias, todos do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) da Unesp.

O texto traz dados sobre a gênese desse movimento dos generais, desde as participações nos governos anteriores, a missão no Haiti e faz ainda um resgate sobre as intervenções mais recentes na política do Brasil, desde o impeachment (golpe parlamentar-midiático-jurídico-militar), às pressões sobre o STF visando as eleições de 2018, a escolha de Bolsonaro como seu primeiro instrumento para chegada ao poder pela via institucional, aproveitando uma conjuntura de oportunidades e como melhor opção ao golpe militar tradicional.

O Partido Militar trata-se de um projeto de poder político de longo prazo que o texto delineia de uma forma com relativamente precisão, ao citar a "subordinação automática e auto-imposta aos EUA, estes preocupados com a geopolítica energética" e também a "forte ligação entre Bolsonaro e as milícias armadas".

É um texto longo, mas com um interessante resgate histórico, além de leitura que se aproxima até a presente conjuntura da crise do Coronavírus, em que os "militares enxergam como uma janelas de oportunidades que se apresenta". Vale a leitura.



As Forças Armadas no governo Bolsonaro
Instituto Tricontinental de Pesquisa Social
Observatório da Defesa e Soberania – 14 de abril de 2020

Por Ana Penido*, Jorge M. Rodrigues** e Suzeley Kalil Mathias***


“Quem chega ao principado com a ajuda dos grandes mantém-se com mais dificuldade do que o que se torna príncipe com a ajuda do povo, porque o primeiro se vê cercado de muitos que parecem ser seus iguais, não podendo, por isso, comandá-los nem manejá-los a seu modo.” Maquiavel

Antes de mais nada é preciso dizer que este é um texto escrito no calor dos acontecimentos. Isso significa que, diferente de formulações que podem contar com o distanciamento histórico, ou de escritos que focam no debate teórico, este texto é escrito conforme o desenrolar dos fatos. Se essa característica, por um lado, dificulta a leitura de fundo sobre alguns fenômenos que ainda se desvelam, por outro, permite o exercício mais detalhado do acompanhamento de movimentações das forças militares. Se há dias que valem por anos, as ações políticas de militares que ocorrem desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff ajudam a compreender melhor aspirações e ressentimentos da corporação, que talvez tenham ficado mais de uma década sob névoa, assim como a fragilidade do controle político sobre as Forças Armadas (FFAA).


Comportamento militar nos governos petistas

Após um período de relativa estabilidade durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), as relações civis-militares experimentaram um período de deterioração. Cabe salientar que a estabilidade ocorreu em virtude das ações das FFAA e dos civis na condução política, que mantinham certa equidistância. Em outras palavras, especialmente durante o governo Lula, as FFAA mantiveram-se mais restritas a participar politicamente apenas nas questões que, no entendimento delas, traziam dilemas para a segurança nacional. Apesar das Forças Armadas terem uma doutrina bastante ampla sobre as questões que consideram de segurança nacional, essa amplitude é escalonada ao adotarem comportamentos ativos, reativos ou neutros a depender da situação. Os debates em torno da segurança pública, demarcação de terras indígenas e nas políticas da área de Defesa são alguns exemplos de momentos que contaram com a participação das FFAA. Por outro lado, o petista não adotou medidas que confrontassem a corporação. Em momentos de tensão, a autonomia prevaleceu, como na demissão de José Viegas, primeiro ministro da Defesa de Lula, que não teve apoio do presidente no exercício de sua autoridade frente ao então comandante do Exército, que permaneceu no cargo. O episódio deixa entrever que, diante das inúmeras necessidades de mudanças que exigiam o capital político do presidente, a área de defesa não seria a prioridade, como também não testaria a subordinação das FFAA ao poder civil, talvez por considerar que a própria posse de um operário eleito pelo voto popular já fosse prova suficiente da consolidação da Democracia.

Durante esse período, embora com pouca participação da sociedade civil ou mesmo da comunidade intelectual da área, houve pontos positivos, como a elaboração da Política Nacional de Defesa, da Estratégia Nacional de Defesa e do Livro Branco de Defesa nacional, três documentos capazes de definir e elucidar um pouco melhor o tema no Brasil e as pretensões do país para os seus vizinhos. Nesses documentos, um saldo doutrinário importante foi o conceito de dissuasão, ao esclarecer a tarefa externa a que os militares devem se dedicar e o consequente fortalecimento do poder civil. Como ponto negativo, destaca-se, em conflito com a doutrina, o crescimento expressivo do emprego das Forças Armadas em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), retomando a ideia de inimigo interno e estabelecendo um conceito de dissuasão ‘para dentro’, o que implica na existência, no caso anterior, de dissuasão ‘para fora’.

A deterioração das relações com as FFAA se aprofundou paulatinamente no governo de Dilma Rousseff (2011-2016). Segundo o General Etchegoyen, durante palestra em 2019 no Instituto FHC, os militares entraram em rota de choque com Dilma por questões objetivas e subjetivas. Como questões objetivas, ele cita a Comissão Nacional da Verdade, a troca do ministro Nelson Jobim por Jacques Wagner e o decreto 8515/15, que subordinava a promoção dos generais ao Ministério da Defesa, assinado por Wagner. O rebaixamento do Gabinete de Segurança Institucional (2015) também pode ser destacado enquanto fonte de tensão, uma vez que se trata de um órgão de notório prestígio historicamente ocupado pelas FFAA. Quanto às questões subjetivas, o general foi pouco claro ao dizer que a presidenta afrontava valores da classe média da qual os militares fazem parte. Pode-se inferir que ele se refere a uma visão de mundo expressa na Doutrina de Segurança Nacional, em que políticos de esquerda são considerados populistas, carentes de iniciativa e entusiastas de medidas que provocam polarização ideológica, consideradas por eles disfuncionais ao país. Soma-se a isso o forte machismo, marca indelével dos quartéis brasileiros. Assim, ter uma comandante-em-chefe mulher e ex-guerrilheira, provavelmente foi entendido como uma afronta aos valores castrenses.

Durante o rito processual do golpe, as FFAA mantiveram majoritariamente seu papel institucional. Afirma-se ‘majoritariamente’ e não totalmente, pois a anuência é uma forma de ação perceptível como, por exemplo, a não reação do general Villas Boas aos diversos pronunciamentos críticos à comandante em chefe da nação feitos por militares ainda na ativa, como o atual vice-presidente Hamilton Mourão. Entretanto, o desenrolar das ações dos militares a posteriori, em particular sua postura de fiadores do governo de Michel Temer, deixam dúvida se havia apenas um desejo individual com movimentações golpistas no seio da tropa, ou ainda se ocorreu algum envolvimento extra oficial mais coletivo. Comparado ao processo de impeachment de Fernando Collor de Mello, destituído em 1992, a inação dos comandos militares frente ao processo de Dilma parece mais explicitamente favorável à sua saída do governo.


O governo Temer e o protagonismo sorrateiro

Desde o início do governo Temer (2016-2019), as FFAA colocaram-se como fiadoras da sua legitimidade especialmente em duas dimensões. A primeira, sob demanda delas, Temer recriou o Gabinete de Segurança Institucional e entregou o órgão ao influente Sérgio Etchegoyen, que passou a coordenar o Sistema de Inteligência Nacional, reestruturado por decreto (8793/2016) do presidente. A segunda questão relevante foi o emprego massivo da GLO, seja diante dos protestos sociais que ocorreram fortemente durante todo o período do governo, com pautas e ações variadas, seja utilizando a violência urbana como justificativa, como na intervenção federal no Rio de Janeiro e na crise desencadeada pela greve dos caminhoneiros. Cabe pontuar que Temer aprovou a Lei nº13.491/17, que estabelece que os crimes de morte cometidos por militares contra civis nas operações GLO sejam julgados pelos tribunais militares e não civis.

Não é de se espantar no governo Temer uma postura tutelar das FFAA diante do Estado brasileiro. Uma vez extinto o regime militar, basicamente a tutela política constitui a forma de controle indireto do poder de Estado pelas FFAA. Substitui o exercício direto do poder político pelo controle indireto daqueles que legalmente o exercem, quase numa atitude paternal diante do sujeito tutelado, considerado incapaz de ser responsável pelos seus atos. Há duas interpretações clássicas que derivam desse comportamento. A primeira pressupõe que as FFAA intervenham de maneira cirúrgica e esporádica, porém contundente, diante de situações de crise ampla. Após sanear a situação, as FFAA devolveriam o poder aos civis. A segunda interpretação parte da ideia de que quando as FFAA têm força suficiente para intervir, elas não devolvem o poder que conquistaram, o que culmina na instalação de um governo ditatorial ou autoritário militarizado.

O termo tutela também apresenta outra conotação: os militares se consideram melhores preparados para pensar estrategicamente que os demais grupos, e por isso capazes de tutelar as decisões. Nesse sentido, as Forças Armadas não são um poder moderador, muito menos neutro, para casos de crise. Os militares têm consciência da postura civil de tentar utilizá-los a serviço da facção no poder ou de suas oposições. Ao mesmo tempo, o estrato castrense tem seus interesses corporativos, como formular uma doutrina compatível com a importância que atribuem a si mesmos. Eventualmente os dois interesses convergem, como no fim do governo Dilma.

O governo Temer foi marcado por uma postura intermediária entre as duas posições. O Exército brasileiro, comandado pelo general Villas Boas, não deu um golpe, mas manteve as instituições sob pressão contínua, inclusive inovando ao se utilizar de tuíteres – em especial na véspera do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do Habeas Corpus de Lula. O próprio Alto Comando reconhece esse comportamento tutelar e tenta desconstruí-lo continuamente em declarações públicas. Nesse sentido, embora as FFAA sempre afirmassem que suas ações estavam pautadas pela estabilidade, legalidade e legitimidade, foram elas próprias que definiram os limites desses três conceitos. E o fizeram, isto é, definiram tais limites, ao longo de todo o processo de transição (1979-1990) e dos governos democráticos (1990-atual). Pode-se inclusive dizer que definiram o próprio entendimento de democracia, pois em nenhum momento se intimidaram quando autoridades reagiram ao esgarçamento das regras, como no próprio caso do tuíter mencionado anteriormente.

Devido a esse protagonismo imediato, há de se acreditar que houve sim um grupo de militares que conspirou sorrateiramente pelo golpe, ainda que as três Forças institucionalmente tenham passado quase ao largo disso. Entretanto, isso não significa que o golpe tenha sido fruto de uma conspiração militar, mas um trabalho de, no mínimo, três grupos com objetivos diferentes que se articularam paralelamente, mas em um determinado momento se unificam e derrubam Dilma Rousseff. A primeira e a mais óbvia é a conspiração dos políticos, capitaneada por Aécio Neves, que desde sua derrota eleitoral adotou um comportamento golpista, e a quem se somaram Temer, Romero Jucá, Eduardo Cunha e outros, cujo objetivo era trocar o grupo político que dominava o poder Executivo. A segunda conspiração, que passa a ficar mais clara com o governo Bolsonaro e com a venda massiva de empresas brasileiras aos Estados Unidos, em evidente disputa geopolítica com a China, foi protagonizada pela Lava Jato e setores do Poder Judiciário, sob os auspícios dos EUA. A terceira conspiração, a mais antiga entre elas, foi a de setores militares, com ressentimentos que datam da criação da Nova República, mas que foram ampliados e se tornaram força golpista com a Comissão da Verdade. Esse desejo de protagonismo das FFAA não foi explícito, por isso chamamos esse comportamento de protagonismo sorrateiro26.

O principal sentimento militar transformado em discurso e utilizado para encobrir o desejo de protagonismo foi a suposta formação de bons quadros técnicos pelas FFAA, continuamente mal aproveitado pelos governos, em virtude da permanência de uma mágoa na liderança civil sobre o que ocorreu durante a ditadura militar. Esse é um sentimento real que muitas vezes coloca os militares até mesmo como vítimas de uma revanche civil.

As últimas eleições que elegeram Jair Bolsonaro à presidência da República não foram marcadas pela técnica ou pelo debate entre programas, mas profundamente por diferenças ideológicas, com forte recorte religioso e uso massivo de notícias falsas, e que contaram com um protagonismo ativo das FFAA. O episódio que talvez tenha maior relevo por ser público e institucional foi a sabatina feita por Villas Bôas aos candidatos à presidência. Não há notícias de outros grupos de servidores públicos do Estado que tenham o mesmo comportamento, típico de corporações e organizações privadas.


O governo Bolsonaro e o partido militar

Se é verdade que as FFAA se utilizam da tutela para se posicionar politicamente, ao mesmo tempo essa postura exige certo distanciamento das decisões rotineiras, de maneira a influenciar o jogo, mas apresentando-se moral e intelectualmente superior diante dos demais jogadores. Portanto, são evitadas ações cotidianas que geram desgaste político existentes em todos os governos, e o jogador em função tutelar aparece apenas em momentos decisivos. Pelo seu desejo de protagonismo, pelo grande número de militares no governo, assim como pela convicção da “necessidade conjuntural” desse tipo de intervenção para estabilizar e reorganizar uma hegemonia da qual fazem parte, as FFAA continuam a exercer as ações sorrateiras, mas de maneira cada vez mais protagonista, formando um dos grupos que desde o início sustenta o presidente Bolsonaro. O maior exemplo dessa nova postura é o general Augusto Heleno. Militares em geral são discretos, mas quando Heleno sobe em um palanque de uma manifestação, ainda que lá embaixo estejam misturados vários recrutas com as mesmas opiniões dos manifestantes, e mesmo que ele não esteja mais na ativa, a instituição Exército fica exposta.

Desde o período da transição do governo Temer para o governo Bolsonaro, as FFAA ocuparam 8 ministérios e cargos chave em diversas secretarias, com um número significativo de militares ainda na ativa. Os generais levaram consigo um enorme contingente de coronéis e majores, nomeando mais de 100 pessoas e adotando o princípio de ocupação em massa do Palácio do Planalto. Além do discurso da técnica, também se mostravam como uma força moralizante e capaz de combater a corrupção no Executivo. Nas palavras de Etchegoyen, Bolsonaro decidiu usar o know how militar. Em outros termos, viraram o ‘Posto Ipiranga’ em várias frentes. Porém, diversos generais rapidamente foram percebendo que as coisas não eram bem assim, como o caso de Jesus Correa, afastado do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Tal afastamento não ocorre em virtude de divergências sobre a política de regularização fundiária ou do modelo produtivo do agronegócio, mas pela constatação prática de que a corrupção tem relação com o sistema político. ‘Combatê-la’ não é uma mera questão de vontade – muito menos tendo à frente Jair Bolsonaro.

Um ponto importante para pensar os militares no governo é a hierarquia. Dentro das FFAA, por exemplo, um general quatro estrelas manda nos demais, bem como nas demais forças de segurança, como policiais e bombeiros. Da mesma forma, dentro de cada patente ou posto, o mais antigo (aquele que chegou no posto a mais tempo) e mais graduado (aquele que, sendo da mesma turma, atingiu as melhores notas), é considerado superior diante dos semelhantes. Sob esta lógica, seria ‘antinatural’ que militares de patentes mais altas ficassem sob a coordenação de patentes mais baixas, como algumas vezes acaba ocorrendo ao assumirem cargos políticos ou burocráticos fora das FFAA. Essa relação é conduzida com contrariedades, da mesma forma em que há um desconforto com o fato da base bolsonarista tradicional estar predominantemente nas polícias, sendo que o primeiro escalão governamental é composto pelas FFAA.


Da vidraça às pedras

As FFAA não foram para o governo enquanto instituição. Porém, os militares no governo se mostraram um grupo bastante coeso e representativo dos interesses das Forças. O efeito direto e imediato disso foi a exposição da instituição, que se tornou alvo de diversos acontecimentos, como a apreensão de cocaína no avião presidencial e os 80 tiros disparados pelo Exército em um carro de família durante uma ronda na cidade do Rio de Janeiro. Tornaram-se, assim, vidraça, e, dessa maneira, se expuseram às pedras. Em contrapartida, a Aeronáutica e a Marinha, ainda que também estejam no governo, mantiveram um perfil mais discreto do que o Exército. Um dos efeitos dessa atuação foi o esvaziamento político do Ministério da Defesa, com cada Força levando adiante a sua própria política, mesmo considerando que o Ministério nunca tenha sido civilizanido36.

Vale ressaltar que os desdobramentos do último período provavelmente não eram o que as FFAA almejavam. Pelo seu comportamento no início do governo Bolsonaro, é possível pensar que elas desejavam exercer uma tutela direta sobre o presidente, tomando decisões concretas por meio do general Heleno, chefe do GSI, e do general Hamilton Mourão, vice-presidente da República. É difícil afirmar em que termos ocorreu esse acordo entre o partido militar e Bolsonaro, mas alguns questionamentos podem ser levantados: eles teriam o poder de veto em algum tema? Levariam adiante o que desejassem implementar nas suas pastas e quem deteria o poder de veto seria Bolsonaro? Há uma combinação entre os dois grupos, com ações coordenadas de “morde e assopra” a depender do tema? Apesar das dúvidas, o que é possível apontar é que esse acordo já sofreu reformulações ao longo do primeiro ano de governo.

Também é possível aventar que as FFAA tivessem o desejo de se afastarem das pautas negativas. Porém, considerando os grupos de apoio ao presidente eleito, e a personalidade de Bolsonaro, é algo praticamente impossível. Os militares tentaram se apresentar como os moderados no governo, em contraponto a uma “facção” radical com o núcleo Olavista, como Damares, Weinjtraub e Ernesto Araújo, responsáveis por executar um conjunto de manobras diversionistas enquanto o projeto de destruição nacional é levado adiante. De fato, no início do governo, aparentavam a voz da razão em alguns temas. Continuam buscando esse papel. Mas não foi possível sustentá-lo por muito tempo, e manifestações irritadas do general Heleno soaram com muito mais radicalidade para a população do que os conselhos sexuais da ministra Damares, com forte apoio popular. Nesse sentido, o “Foda-se” de Heleno para o Congresso Nacional, uma manifestação de golpismo aberto, ocorre apenas num segundo momento, depois da linha do poder tutelar já ter sido cruzada há muito tempo, e a atuação do partido militar ter se tornado mais nítida.

Entretanto, o desenrolar do governo deixou claro que as FFAA não conquistaram a hegemonia do governo durante o primeiro ano, embora o tenham ocupado massivamente. O que sustentou o governo são suas medidas econômicas e argumentos extremistas que mantêm viva uma base reacionária, incluindo militares, em especial das baixas patentes, mas certamente não expressa as posições da instituição, algo facilmente verificável na postura das Forças Armadas sobre a Venezuela. Por outro lado, os militares emprestam a credibilidade da instituição ao governo, pois existe a ideia, pelo menos para parte da elite política (até mesmo à esquerda) de que eles têm a possibilidade de colocar limites às “loucuras” do Bolsonaro, tornando-se uma alternativa, caso o presidente seja afastado.


Pontos de comunhão

Para além das contradições entre FFAA e governo Bolsonaro, há diversos pontos de comunhão entre ambos. Um deles é o revisionismo histórico. As FFAA sempre priorizaram a batalha das ideias, e viviam um sentimento de injustiça por terem ficado com a responsabilidade pelo regime autoritário (1964-1984). Em outros termos, consideram errada a forma como passaram para a História após terem ‘salvado a nação do comunismo e levado ordem e progresso ao país”. Essa luta pelas narrativas se expressa em cada vírgula e representa as FFAA em geral. Chega-se ao ponto de inventar tradições históricas, como a Batalha de Guararapes, apenas para se justificar como a instituição mais antiga do país.

Outra confluência entre as FFAA e Bolsonaro é a forte crítica ao identitarismo e outras pautas contemporâneas. Villas Bôas já expressou isso em algumas falas, mas como um todo, entendem que brancos e negros, homens e mulheres, homossexuais e heterossexuais, são divisões que atacam a identidade de povo brasileiro, formulação clássica da Doutrina de Segurança Nacional. Nesse sentido, há uma convergência com formulações dos neopentecostais no conservadorismo de costumes, base do governo Bolsonaro. Isso se expressa num sentimento difuso, de uma nostalgia de tempos passados e na ideia de “guardiões das tradições”. Para alguns, uma das maiores ameaças atuais às Forças Armadas é um hipotético crescimento do homossexualismo nas suas fileiras. Nessa mesma lógica, questões complexas como drogas e violência entre adolescentes recebem respostas maquiadas nas escolas cívico-militares, por exemplo, por meio da qual as FFAA pretendem regular a socialização civil.

Outro elemento comum é o discurso de defesa da pátria. A corporação acredita que tem como ‘destino manifesto’ salvar a nação. Esse ethos salvacionista é muito forte culturalmente, assim como a ideia de que eles representam o que há de mais puro na nação brasileira. Com isso, parte dos militares que vão para o governo não são necessariamente bolsonaristas, mas acreditam fazer uma “revolução” moralizante e modernizadora do país, corrigindo o rumo e ajustando coisas que julgam pertinentes pelos seus próprios parâmetros. Para outros, a intervenção militar de 1964 proporcionou a preservação e reorganização da democracia, na lógica do “golpe preventivo” ao comunismo.

Neste sentido, as FFAA também se encontram com outra base bolsonarista: o partido da Lava Jato e com a classe média alta. A aliança entre as FFAA e essa parcela do Judiciário parece ser mais firme do que com o próprio presidente. Se não existem guerras reais, inventamos as nossas para combater o que são consideras disfuncionalidades do sistema; nesse caso, como em outros momentos da história, o ‘combate à corrupção’ atua como entrave para o avanço de tentativas progressistas no processo político nacional.

Ainda sobre o patriotismo, é preciso pontuar que, no Brasil, essa ideia sempre esteve associada ao um tipo de nacionalismo, próprio do campo simbólico, e é esse que se apresenta no Bolsonaro e nas FFAA. Sob esse entendimento, a cessão do Centro Espacial de Alcântara não é uma medida antinacional. Assim, a noção de território assume contornos cartográficos, e não de espaço onde habita um povo.

Essa compreensão particular sobre patriotismo também é presente no pensamento sobre a região Amazônica. Há pelo menos 30 anos, a Amazônia passou a ser considerada o principal território para se defender no Brasil. Todavia, mais de 70% do efetivo militar segue no Comando Sul e Sudeste. Isso tem relação com uma cultura institucional muito forte, assim como o baixo interesse pela defesa [do país] e com a pouca noção de “missão”, quando se pensa o próprio bem estar (servir no Sul, Sudeste, ser adido militar, missão de paz ou fazer cursos no exterior é melhor do ir para a Amazônia). Esse fato leva a outro questionamento: teria a corporação capturado as FFAA? O deslocamento para a Amazônia não deveria ser mais intenso? Claro que não se trata de uma decisão pautada apenas na estratégia de defesa, mas deve-se levar em conta custos políticos e econômicos, e mesmo conflitos com as identidades das Armas (das FFAA), como a Cavalaria, bastante atrelada ao Sul. Em última instância, a discussão recai sobre a pergunta: para que servem as FFAA brasileiras?

A pauta econômica é outro ponto de confluência entre FFAA e Bolsonaro. Foi-se o tempo dos nacionais-desenvolvimentistas, herdeiros do projeto tenentista. Atualmente, os generais têm a visão econômica da Fundação Getúlio Vargas, que atua como verdadeiro intelectual orgânico [dos entreguistas] defendendo a privatização inclusive de setores estratégicos. Neste sentido, não surpreende que o ministro de Infraestrutura e engenheiro do Exército, Tarcísio Gomes de Freitas, que leva adiante a agenda de privatização, é considerado um dos melhores ministros pelo empresariado, como comprova o prêmio da LIDE. Eventualmente, há alguma dissidência, como as declarações do general Juarez Cunha, contrário à privatização dos Correios. Mas a venda da Embraer foi a medida mais significativa que corrobora essa tese.

As FFAA também sofreram cortes orçamentários, já que algumas unidades não tinham recursos nem para o rancho (refeição dos soldados) no final de 2019. Mas esse cenário foi modificado em 2020. Mesmo com a crise econômica, a pasta da Defesa teve aumento orçamentário, foram inaugurados um novo campus da Escola Superior de Guerra (ESG), em Brasília, e a nova base na Antártica. Na mesma toada, a Engeprom teve um considerável crescimento e foi fechado um importante acordo de fomento industrial com o BNDES. Importa lembrar que a indústria de defesa tem o Estado como maior comprador. No caso de Brumadinho, por exemplo, helicópteros foram reparados 24 horas pelas empresas para continuar voando nas buscas pelos desaparecidos. Uma aparente contradição nesse tema é a postura de Eduardo Bolsonaro, presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, que critica o que chama de “monopólio da Taurus” e deseja maior abertura do mercado brasileiro para as empresas estadunidenses de armamentos.

Um ponto que deveria ter gerado contradições entre os dois atores é a política externa, o que não ocorreu. O Brasil vinha se construindo na lógica de uma inserção autônoma no mundo. Do ponto de vista objetivo, as relações atuais entre EUA e Brasil são absolutamente diferentes de 1964. Apesar da China ter se transformado no maior exportador de capitais para a América Latina, o Brasil seguiu dependente em termos de equipamentos e doutrina dos EUA na área militar, mesmo com a diversificação de parceiros. Há também grupos militares que acreditam que a cooperação com os EUA e a OTAN renderá ao país compras vantajosas de equipamentos, mesmo se estes forem obsoletos. Nesse sentido, é importante destacar o novo status do Brasil diante da OTAN e o recente acordo militar assinado entre Brasil e EUA.

Para além das questões objetivas, há vínculos simbólicos, como a reedição de alguns raciocínios da Guerra Fria, quando se aponta a necessidade de se aliar aos EUA diante da guerra comercial com a China. Ou mesmo pensamentos como “nossa bandeira jamais será vermelha”. A partir disso, Bolsonaro tem redefinido o papel do Brasil na guerra de quarta geração: controle interno da ordem por meio da segurança integral (todo o país) e preventiva (inteligência e espionagem). Já que não existe um projeto para desenvolver o Brasil enquanto uma “potência”, as FFAA serviriam para acomodar as forças sociais aos interesses internacionais (repressão interna). De fato, existe um grupo que acredita no marxismo cultural62, que estamos em guerra permanente e o inimigo interno deve ser combatido. Essa ideia do emprego interno das FFAA foi consolidada pelas operações GLO, citadas no início do texto. Cabe pontuar que esse é um inimigo interno de ocasião, podendo ser caracterizado como petista, comunista, crime organizado, corruptos ou terrorista, a depender dos interesses. Algumas medidas legislativas estão sendo tomadas nesse sentido, politicamente alinhado ao Bolsonaro e ao general Heleno, como o PL 1595, do Major Vitor Hugo, que pretende dar poderes excepcionais ao Estado brasileiro para reprimir manifestações populares.


Relações estremecidas

A demissão do general Santos Cruz da Secretaria de Governo é muito significativa. Existem muitas explicações para a demissão. A maioria aponta para uma resistência do Santos Cruz a cumprir ordens que contrariavam princípios éticos e morais que ele alimenta. Outros argumentam que o general não se subordinou ao capitão, ou que havia uma disputa por status político dentro do partido militar, derivada dos diferentes reconhecimentos recebidos pela ONU em virtude da participação na Minustah. Quem saiu em defesa do general demitido não foi nenhum dos militares do governo, mas o fiador do governo Temer, o general Etchegoyen. Outro episódio digno de menção foram as ofensas de Olavo de Carvalho a Villas Boas. Por fim, também existiram farpas que partiram dos filhos do presidente em diversos episódios, como a desconfiança em torno da segurança do GSI estimulada por Carlos Bolsonaro, mas ‘amortecida’ pelo próprio general Heleno. Nunca ocorreu na Nova República uma escalada de ofensas às FFAA e aos militares nessa proporção.

O fato é que a demissão de Santos Cruz fragilizou a ideia de bloco e do projeto militar, e ganhou peso os interesses individuais. Isso não significa que eles tenham começado a concorrer entre si, pois em primeiro lugar, vale a corporação militar. Mas fica clara a busca por status, pois mesmo figuras populares na caserna como o general Heleno e Mourão, eram pouco conhecidas da sociedade civil. O mesmo vale para generais com destaque no exterior, como Santos Cruz e Floriano. Para um militar profissional, a maior vaidade da carreira é conseguir a quarta estrela. Entretanto, generais com 4 estrelas, ainda que desempenhem impecavelmente sua tarefa, são esquecidos. A ocupação de cargos políticos e a projeção pública alimentam a vaidade e passaram a ser almejadas. Contrariando qualquer discussão coerente com a profissionalização, seria possível encontrar generais de 2 ou 3 estrelas fazendo cálculos sobre o que vale mais a pena: as estrelas que lhes faltam ou um Ministério. Outro exemplo possível de buscar se projetar publicamente é a utilização massiva das redes sociais, que permite que generais mantenham contato direto com a população. Com isso, pronunciamentos que deveriam ser orientados profissionalmente passam a ser feitos em busca de popularidade. Se isso tem relação com algum sentimento de falta de reconhecimento proveniente das missões no Haiti, é algo que merece aprofundamento, mas não é objeto desse texto.

No entanto, aparentemente ocorreu um afastamento da Instituição Exército em relação ao governo no final do ano de 2019, seja pelos baixos índices de avaliação ou pela dificuldade de conseguir resultados no campo econômico. Como ficaram com o ônus do golpe de 64 nos anais da história, o partido militar tem se precavido e tenta um duplo movimento, aparentando afastamento institucional do governo, coordenado pelo general Pujol, e a manutenção de uma postura tutelar, por exemplo, diante do Supremo Tribunal Federal.

São muitos os sinais para essa hipótese:
1. A ordem do dia do soldado citando o general Leônidas é um recado claro do alto comando: “Bolsonaro, te expulsamos uma vez, podemos expulsar de novo”;
2. Etchegoyen está com diversas movimentações para ‘conter’ o bolsonarismo nas fileiras, e vem fazendo palestras em todo país sobre liderança militar (hierarquia e disciplina) diretamente para baixa oficialidade, enquanto se articula com o setor industrial nacional, que vem tendo perdas com medidas do governo;
3. Desconfortos sobre a distribuição de medalhas militares a congressistas, numa nítida compra de votos para o projeto de reestruturação da carreira;
4. Os militares queriam Etchegoyen para a embaixada de Washington, mas o presidente desejava alguém de sua famiglia;
5. A negativa da quarta estrela para Rego Barros.
6. A indicação do general Amaro para o Comando Sudeste, mesmo ele tendo trabalhado tantos anos com Dilma;
7. Novas baixas entre militares que ocupavam cargos estratégicos no governo.

O projeto de reestruturação da carreira militar, PL1645, foi um momento bastante tenso. Há quem acredite que essa seria uma oportunidade de diálogo à esquerda com a base das FFAA. De fato, o projeto contém benesses aos altos escalões que não se estendem ao conjunto das FFAA, o que poderia gerar contradições hierárquicas. As Forças Armadas contam com um conjunto de direitos que as demais polícias não possuem, e o projeto reforça ganhos na carreira para as patentes mais altas, o que tem gerado insatisfação entre os praças, que deixaram claro que vão seguir o exemplo de insubordinação de Villas Bôas. Existem segmentos dessas baixas patentes que entendem a não manifestação de Bolsonaro a respeito como uma traição, forçando o presidente a adotar medidas paliativas.

Bolsonaro, entretanto, respeitou a hierarquia e aprovou o projeto, favorecendo os altos escalões e prejudicando sua base eleitoral mais antiga. Para mitigar a situação, outras fontes alternativas de renda vêm sendo construídas para esses setores, como o aumento em diárias e ocupações extras, como nas escolas cívico-militares e no INSS. Embora absurdas, seja do ponto de vista das regras da administração pública ou da defesa, essas medidas são coerentes com o objetivo de atender sua base.

A conivência das FFAA no governo com essas e outras medidas que prejudicam a defesa nacional deixa claro algo já argumentado anteriormente. Não adianta os acenos à direita ou à esquerda. Quando a instituição se compromete nesse nível, ela passa a fazer parte do problema, e não da solução. Enfatize-se: não existe um divórcio das baixas patentes militares com o governo, e as dissidências não são contrárias à política econômica adotada nem favoráveis às forças democráticas e progressistas.

Esse conjunto de medidas não ocorreu por divergências ideológicas do Alto Comando com Bolsonaro, mas porque querem mostrar independência e deixar claro aos que almejam entrar na institucionalidade que não falam em nome das FFAA. A finalidade disso é afirmar a autonomia do Estado-Maior no interior da aliança e reforçar quem comanda o partido militar.

A ida de militares para diversos postos no governo foi tão grande que o Ministério da Defesa tomou medidas institucionais, como rotatividade, passagem à disposição, impactos na carreira, etc. Isso reforça o desejo de se autopreservarem. Por exemplo, à exceção dos ministros, eles se reservam o direito de indicar qual militar ocupará determinado cargo quando for requisitado. Por outro lado, o mesmo decreto 10171/2019 escancara o desejo dos militares de participarem da política de Brasília, se distanciando de suas funções e dos trabalhos considerados penosos, como as fronteiras. Essas atitudes apenas reforçam o que analistas de defesa vinham afirmando desde o período eleitoral: quando a política entra nos quartéis por uma porta, a profissionalização sai pela janela. A portaria também reforça o corporativismo, já que define que mesmo em cargos civis, os crimes cometidos por militares serão julgados pela Justiça Militar.

Levando em consideração a história das outras intervenções militares no Brasil, existe mais um ponto digno de nota. Militar importante está em comando de tropa, no serviço de informações ou nas escolas de formação. Com Ramos promovido a secretário de governo, Bolsonaro tirou o único comandante alinhado com ele dos comandos de tropa, pois este agora passou a ser mais um palaciano.

Ao chegar ao governo, Ramos fez uma promessa, a de “colocar ordem na casa”. Tal promessa aparentemente expressa o ethos militar, que é ter os meios e o desejo de ordem. No entanto, sua função no governo é a de atuar como articulador, fazendo reuniões com os líderes de governo no legislativo, com bancadas de estados, além de desenhar agendas estratégicas com líderes empresariais e com a imprensa. Assim, Ramos desnuda a ação castrense no poder: é atuação partidária, representando o partido militar, e este é fiel ao presidente da República.

A geopolítica interferiu para fortalecer e para enfraquecer a consonância entre o partido militar e o presidente. A conjuntura na América Latina, que terminou o ano de 2019 com explosões sociais em vários países, entre os quais se destacam Chile e Colômbia, fortaleceu a parceria. Havia uma preocupação nas FFAA de que o mesmo se repetisse no Brasil, o que justificaria medidas de repressão às iniciativas de sublevação dos povos. Por outro lado, em virtude do conflito Irã e EUA, essa proximidade se fragilizou. Se não bastasse o alinhamento incondicional brasileiro aos EUA nas suas formulações sobre terrorismo, o governo ofereceu o Brasil para testar uma aliança contra o Irã. Medidas como essa mostram o Brasil como celeiro de Trump, esvaziam os organismos internacionais e expõem o país a ataques estrangeiros. As declarações atrapalhadas do presidente do ponto de vista de defesa nacional mereceram comentários do gen. Etchegoyen , que junto com Santos Cruz, vem formando um polo de crítica ao governo. Tais atitudes apontariam fraqueza do Ministro Fernando, da Defesa, junto ao presidente.

Mas é bom observar com cautela essas diferenças. A mídia hegemônica tenta aumentar a distância entre os dois grupos, seguindo o desejo das FFAA de se apresentarem apenas como moderadores do governo, embora estejam enfronhados nele até os cabelos. Porém, esquecem que o partido militar, enquanto partido político, tem suas tendências internas, importantes inclusive para representar os diversos interesses existentes nos quartéis na construção do consenso. Todavia, não se pode esquecer do elemento básico na construção do partido, que é a espinha dorsal da profissão, a obediência disciplinada à hierarquia. Por isso, ao fim e ao cabo, tomada a decisão, o partido militar agirá como corporação, valendo o princípio dos “3 Ds”: não duvidar, não divergir, não discutir.


2020 e a consolidação do Partido Militar

As FFAA entram no ano de 2020 com um projeto mais elaborado quanto à sua participação no governo, atuando como um verdadeiro partido. Estão bem posicionados para isso, com quase 2.500 pessoas em cargos de assessoria ou chefia, em ministérios ou repartições. Também reivindicaram para sua coordenação assuntos que consideram mais relevantes para defesa e segurança nacional, como a questão da Amazônia, que passou a ser coordenada pelo vice-presidente Mourão, depois das trapalhadas que envolveram as intensas queimadas no ano de 2019. Até recentemente, Bolsonaro era funcional para esse projeto.

O mais importante acontecimento que mostra a mudança de qualidade na atuação do partido militar foi a nomeação do general Braga Netto, ex-interventor federal no Rio de Janeiro, para a Casa Civil. A partir dessa movimentação, o Palácio do Planalto se torna exclusivamente militar. Essa nomeação revela a unidade de ação da reserva e da ativa, ou seja, a unidade do partido, mesmo não sendo homogêneo como qualquer outro partido.

Embora poucos defendessem uma divisão entre militares e Bolsonaro, muitos analistas percebiam um distanciamento ao final do primeiro ano de governo. A nomeação de Braga Netto vem no sentido contrário. Ele está na ativa (antecipou sua ida para a reserva), assim como Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, e Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia. Até o fim do ano passado, Rego Barros (Comunicação) também estava na ativa. A nomeação também parece apontar uma ação mais ordenada do Alto Comando, contradizendo argumentos surgidos na nomeação do Ramos, que apontavam para a antiga amizade com o presidente ou na coincidência religiosa. Praticamente todos os generais de todas as estrelas da geração do capitão estão empregados no governo (1975-79), e foram formados sob a mesma estrutura de pensamento e atuam sob o princípio de ocupação em massa e em “ordem unida”. Estão organicamente vinculados ao restante, especialmente ao ministro Sergio Moro.

A questão não é apenas pragmática. Óbvio que muitos militares estão no governo motivados por ganhos pessoais ou para a corporação, ainda que travestidos de projetos políticos. Mas importa destacar que esses são bônus advindos da entrada no governo, não seu objetivo principal. Existe um projeto de poder e um objetivo, como passar a limpo acordos feitos na Constituinte, situações em que os militares se consideram prejudicados. As diferenças internas não são significativas no espectro político–ideológico, mas corporativas. São, como aconteceu durante a ditadura, pequenas disputas por vaidades, hegemonia nas armas, regionais, especializações, referências internacionais. Os principais generais são garantidores das privatizações e desnacionalizações (na linha do que é defendido pelos doutores em economia da Fundação Getúlio Vargas), alinhamento automático aos EUA na Política Externa (linha OTAN, embora aqui caibam contradições e não aceitem o chanceler de bom grado), esvaziamento das estruturas de Ciência, Tecnologia e Educação, em especial das Universidades Públicas, e controle de Artes e Cultura. Enfim, da soberania nacional. Fundamentalmente, veem-se a si mesmos como representantes da ‘verdadeira’ nacionalidade, aquela que afirma que o brasileiro é essencialmente cumpridor dos seus deveres, ciente de seu lugar e, portanto, ordeiro, cordial e pró-EUA.

Essa atualização conjuntural acontece em pleno estouro da crise do Coronavírus. Enquanto as forças progressistas pensam em salvar o povo brasileiro, sem dúvida há um conjunto de militares pensando nos efeitos colaterais que a crise traz, assim como na janela de oportunidades que se apresenta. Certamente cálculos sobre a utilidade de manter Bolsonaro na presidência estão sendo feitos pelas FFAA e pelos diversos grupos político-econômicos. Em meio a crise, o presidente convocou uma manifestação, usando imagens dos militares para passar credibilidade e foi criticado por isso. Também conclamou manifestações na porta dos quartéis pedindo intervenção militar no aniversário do golpe de 64, entrando em conflito direto com o STF e Congresso Nacional, além de conflitar com os governos estaduais e seu próprio Ministério da Saúde sobre as medidas sanitárias adequadas. Em um momento que todos os governos devem buscar a unidade nacional, Bolsonaro continua com seu discurso polarizador e de enfrentamento.

Embora este texto não tenha focado em questões de defesa, obviamente estas vêm sendo impactadas pelo governo Bolsonaro e pelo comportamento partidarizado dos seus principais servidores públicos: os militares. Num cenário de crise, é difícil explicar que apenas essa área seja beneficiada com aumento orçamentário. Há denúncias de benefícios individuais a militares, que tiveram o acesso ampliado para si e para a sua família a cursos e viagens internacionais. Essas denúncias são sérias e expressariam a cooptação individual de militares em ascensão, a fim de manter apoio político ao governo, mesmo que em detrimento da defesa nacional. Exemplo claro nesse sentido e que expôs o país a constrangimento internacional e mal estar com seus vizinhos foi o documento vazado com cenários prospectivos para 2040, elaborado pela Escola Superior de Guerra do RJ, que chega a mencionar a hipótese de conflito com a França. Segundo eles, foram feitas 11 reuniões regionais e ouvidas 500 pessoas. Em outros termos, o conteúdo não é um delírio localizado. É um plano de governo, reflexo da subordinação automática e auto-imposta aos EUA, estes preocupados com a geopolítica energética.


Hipóteses de cenários

Entre todas as questões que seriam pertinentes, selecionamos três elementos fundamentais a serem aprofundados. O primeiro diz respeito à perda do monopólio do exercício da força estatal por parte das FFAA. O segundo, relacionado ao primeiro, é sobre a quebra de hierarquia generalizada. O terceiro trata da destruição das instituições estatais e sua reorganização enquanto Estado autoritário.

A primeira hipótese ocorre em virtude da forte ligação entre Bolsonaro e as milícias armadas. É estranho que as FFAA não soubessem dessas ligações antes da eleição, devido ao seu acesso privilegiado às ferramentas de informações, ao seu envolvimento em várias GLOs no Rio de Janeiro, e mesmo na intervenção federal em que se destacou o chefe da Casa Civil, gen. Braga Netto. Ao que se sabe, as milícias se profissionalizaram, passando não somente a controlar territórios, populações e economias locais, mas também a ter arranjos com organizações criminosas internacionais. Se as FFAA sabiam dessas ligações, também é estranho terem endossado um presidente fortemente apoiado por essas forças também armadas, ainda que milicianas, mas que disputam com as próprias FFAA o monopólio de usar a força do Estado. Existiria um medo de que, caso as FFAA não ocupassem seu espaço formal no governo, esse vácuo de poder seria ocupado por forças armadas informais (paramilitares)?

Esse medo faz sentido não apenas diante de forças informais, mas também das formais, como as polícias militares. Por muito tempo, as polícias (ou guarda nacional) tiveram efetivos maiores e até equipamentos melhores que as FFAA. A missão militar francesa, por exemplo, veio antes profissionalizar a força pública de São Paulo, hoje polícia militar, e só depois o Exército brasileiro. Foi uma conquista das FFAA, portanto, a subordinação das polícias, com a criação da Inspetoria Geral de Polícias Militares dentro do Exército. Todos os projetos de mobilização das FFAA em território nacional em caso de grave ameaça contam com a utilização dessa força auxiliar extremamente pulverizada. Mas o que vemos hoje são disputas das FFAA até mesmo com a Polícia Federal, pelo controle do Palácio do Planalto, por exemplo. Nesse processo, a autoridade moral sobre as demais vai sendo contestada.

A maioria dos intelectuais escreve sobre o medo da policialização das FFAA devido ao seu emprego em GLO. Do ponto de vista de um cidadão comum isso é correto, mas do ponto de vista das FFAA, o verdadeiro medo é o aumento da militarização das polícias, de modo a se tornarem mais importantes do que elas. O mesmo vale para as milícias, sobre as quais, cabe lembrar, não houve nenhuma medida por parte do combatente ministro Sérgio Moro. Perder esse monopólio seria o fim das FFAA brasileiras, que diferente de outros países da América Latina, não conviviam com forças paramilitares, mas têm na memória institucional momentos em que essas disputas ocorreram.

Essa preocupação foi recentemente confirmada com o motim da polícia militar do Ceará. As FFAA foram empregadas, a pedido do governo estadual petista e por pressão das mesmas, conformando uma GLO. Bolsonaro resistiu até onde pode, pois se a situação naquele estado saísse do controle, teria como bônus a demonstração da sua força de mobilização nas polícias, criando caldo para a nacionalização das milícias cariocas, além de desestabilizar um governo opositor. O ministro da justiça Moro atuou muito fracamente. Outro militar que também passou panos quentes na indisciplina foi o coronel comandante da Força Nacional de Segurança, Aginaldo de Oliveira, que elogiou a atuação dos PM. Se já havia dúvidas no Alto Comando sobre as relações carnais entre a família do presidente e as forças de segurança, estatais ou não, o episódio ligou a luz vermelha.

Passemos ao segundo cenário: a hipótese de quebra de hierarquia, pilar fundamental das FFAA junto à disciplina. Quando entraram no governo, as FFAA tinham a firme crença de que tutelariam Bolsonaro. Na realidade, Bolsonaro foi mais habilidoso e fez o que sempre fez: sindicalismo militar e política para o baixo clero. Ele fala diretamente com a baixa oficialidade e com os praças. Não perde nenhuma formatura, assim como fazia quando era deputado. A baixa oficialidade pode argumentar que a desobediência à hierarquia é exemplo do próprio comando, e Villas Bôas já deu diversas demonstrações de proteger insubordinações militares contra o poder civil, cometidas pelo próprio Mourão.

Sabendo dessa fragilidade, Bolsonaro disputa os estratos inferiores e força os generais a posicionamentos públicos mais radicais, sob pena de perderam uma base mais ideologicamente bolsonarista nas próprias FFAA. As diferenças também surgirão entre os oficiais. Por exemplo, um coronel no Banco Central receberá um salário condizente ao de outros gestores do mesmo nível, maior que o de generais em final de carreira. Em outras palavras, a hierarquia vai sendo solapada pela distribuição de oficiais em empregos a partir de critérios distintos para a promoção, salário e benefícios. A profissionalização é desestabilizada pela nova divisão de trabalho e suas recompensas.

Num país que não vive em guerra, os oficiais se diferenciavam dos sargentos pela sua formação. Agora a maioria dos soldados tem curso superior, alguns até pós-graduação em Universidades civis. Os comandantes precisam encontrar outras formas para demonstrar sua autoridade, para além das simbólicas, como medalhas e demais identificações. Quando se trata do poder civil, esse fosso é ainda maior. Exemplo recente foi visto na formatura da Polícia Militar de São Paulo. Na ocasião, o chefe da Polícia, o governador João Doria, foi vaiado, enquanto o presidente Bolsonaro foi aclamado.

A fraqueza do comandante que cede à pressões, sejam elas internas ou externas, é uma das variáveis que compõe nossa terceira hipótese, de que o bolsonarismo estaria conseguindo desestabilizar todas as instituições do Brasil, incluindo as mais tradicionais, como as FFAA e o Judiciário. Nesse sentido, o governo vem distribuindo cargos para militares por toda a administração federal. A justificativa é que militares e policiais são técnicos e, por isso, bem preparados para gerir a burocracia sem se corromper.

Regimes nos quais o sistema de controles mútuos entre os poderem funcionam, temem a paralisia decisória que conflitos entre os poderes podem provocar. Tomando o mesmo desenho, a militarização da burocracia pode levar ao seu colapso. Por um lado, agrada sua base, inclusive com ganhos financeiros – quebrando a hierarquia militar. Por outro lado, ao colocar pessoas despreparadas e, ao mesmo tempo, que tem por missão uma determinada ação que contraria sua própria função – por exemplo, um produtor de agrotóxico cuidar do financiamento para agricultura orgânica – em cargos chave, desestrutura o processo de corrente de transmissão de decisões, levando ao colapso da burocracia.

Sem resultados na economia, o governo se sustenta a partir de uma forte retórica ideológica, elegendo pautas que alimentam uma base social militante em torno de 15% a 30% da população, segundo as pesquisas. Bolsonaro organizou e mantém mobilizado esse exército informal militante. Porém, um elemento altamente preocupante é que parte desse exército é armado, como é caso do apoio miliciano e das polícias militares. Essa foi uma das características básicas de sustentação de governos fascistas.

Independentemente da confirmação dos cenários anteriores, com a perda ou não do monopólio da força e a quebra de hierarquia, Bolsonaro tem hoje um forte exército pretoriano, jamais visto por algum outro governante da Nova República.

Nesse cenário, também não é descartável a hipótese de militarização da política, distinta de 1964, mas com uma questão comum. Antes de mais nada, para garantir sua própria existência, as FFAA precisam garantir a existência do Estado. Sem uma estrutura de mediação política (função da República) para os conflitos estruturais que inevitavelmente surgirão num cenário de crise social, triunfa a mediação da violência. O problema moral e político das FFAA é que seu cliente é algo abstrato, como instituições coletivas ou até imaginadas, como a Constituição, maiorias eleitorais, nação, líder, frequentemente em conflito entre si. Elas não são responsáveis por essas tensões, mas recorrentemente conduzem as FFAA a impasses.

Por outro lado, as FFAA não querem ficar mais uma vez com a pecha de golpistas, afinal, Bolsonaro foi eleito. Da mesma maneira, não desejam abrir espaço para um retorno da esquerda ao governo. Nesse sentido, tão importante quanto acompanhar a movimentação das camadas superiores do governo é perceber a militarização que ocorre no seio da sociedade, bem como as alterações que ocorrem na percepção do povo brasileiro sobre as FFAA. Para isso, é preciso levar em conta a cultura violenta e autoritária que estrutura o país e o tipo de transição do regime burocrático autoritário para o governo democrático que aqui se construiu. Mas isso é tema para outro artigo.

Terminamos este texto diante da explosão dos casos de Coronavírus no Brasil. Até agora, as respostas do presidente mantiveram a subordinação ao raciocínio dos EUA no combate a crise, até mesmo negando a gravidade da pandemia. Essa não é uma guerra, mas é sem dúvida o maior teste que as FFAA terão, como reconhecido em recente pronunciamento do comandante do Exército, gen. Edson Pujol. Suas capacidades de comando, mobilização, logística, articulação política, cooperação com outras instituições, apoio humanitário, pronta resposta e muitas outras serão colocadas à prova. Simultaneamente, é uma janela de oportunidade para a militarização da política. Sem dúvida, as FFAA sairão desse processo em outro patamar. Se melhor ou pior, veremos. Assim como em todo o mundo, os próximos meses determinarão o que esse século será para o Brasil. Todavia, uma certeza deve guiar a todos nós: O povo brasileiro não pode entregar seu destino aos generais.


*Ana Penido é pesquisadora em estágio de pós doutoral (bolsista Capes) do Instituto de Políticas Públicas em Relações Internacionais (IPPRI – UNESP), investigadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

** Jorge M. Rodrigues é mestre em Relações Internacionais pelo Programa ‘San Tiago Dantas’, investigador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

***Suzeley Kalil Mathias é professora Associada em Relações Internacionais (FCHS-Unesp; Programa ‘San Tiago Dantas’), investigadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq-PQ2).