terça-feira, junho 02, 2020

"O Mito da Caverna e a Sala de Espelhos", por Douglas da Mata

Mais artigo que o Douglas da Mata publicou no seu perfil do FB, ainda na série Diário da Pandemia. Sobre a digitalização da vida social e sua relação com a atomização, limitações, vaidade e arrogância em Platão.

O Mito da Caverna e a Sala de Espelhos

Prometi ao amigo e professor Roberto Moraes que só publicaria este texto amanhã.

O tema surgiu em meio a nossa conversa, e confesso não ter aguentado esperar.

Falamos do sentimento comum de falta de esperança no desenrolar dos acontecimentos, da pobreza intelectual que tem nos cercado e pior, associada a uma certa arrogância, que torna mais trágica a nossa trajetória rumo ao abismo da Humanidade.

Platão, na República, montou uma conhecidíssima metáfora para a questão da produção, apropriação e disseminação do conhecimento, não esquecendo que tais processos se dão em ambiente sempre hierárquicos, e estabelecem, portanto, regras e ambientes de poder.

Em apertada síntese, Platão alegou que a falta de conhecimento sobre nossa condição (consciência de si) e local (pertencimento) nos leva a enxergar o mundo como sombras refletidas em paredes de uma caverna, que ao mesmo tempo podem ser imagens de nós mesmo, como de objetos, e que estas imagens são projetadas por outros seres que habitam tal caverna, e controlam as figuras e a luz de uma fogueira.

Ciente dessa condição, o homem liberto o que fará, se apropriará do conhecimento em benefício coletivo ou individual?

Há outra questão subjacente, que é: este conhecimento pode servir ao coletivo (libertar os outros da ignorância) e servir a liberdade individual do recém liberto?

Como reagirão os que desconhecem suas condições?

Na minha conversa com Roberto Moraes, quando o assunto acerca do conhecimento surgiu eu ponderei que vivemos em um Mito da Caverna atualizado, que eu disse ser como uma sala de espelhos de um parque de diversões.

Sim, a digitalização social e a elevação do capitalismo como mediador de todas as formas de relacionamentos conhecidas nos isolou em frente a nós mesmos, e tudo o que enxergamos são distorções ópticas (semióticas?) de nós mesmos e de quem nos cerca, sendo impossível achar uma saída, porque sempre damos de cara com outras imagens refletidas e distorcidas.

No Mito da Sala de Espelhos não existem outros manipulando a oscilação de luz de uma fogueira, para projeção de sombras nas paredes, ou uma contraposição entre o escuro da caverna e a luz exterior.

Há somente reflexos idênticos e invertidos.

Na Caverna da Platão, o conhecimento da luz e dos objetos daqueles que projetavam as sombras permitem a percepção de alguma realidade.

Já a Sala de Espelhos refletem imagens refletidas e refletidas, cujo objeto real gerador nunca encontraremos, e os que nos cercam nunca saberão se somos nós mesmos ou nosso reflexo.

Vertigem.

A maior crueldade da Sala de Espelhos é que não há oposição entre luz e escuridão, só repetição e distorção, onde a hierarquia de poder, derivada da apropriação do conhecimento, pode ser (e é) falsa porque ela não se permite aprisionar, porque afinal, o que vemos não é o que vemos, e que pensamos conhecer é só uma cópia.

O poder de quem está fora da sala de espelhos seria, para nosso infortúnio, absoluto.

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