quarta-feira, fevereiro 17, 2021

“O sentido que o algoritmo faz – ou faz fazer...”, por Luciana Salazar Salgado

A partir da última conversa-entrevista na TV 24 (aqui), eu recebi um contato por e-mail da professora e pesquisadora da Luciana Salazar Salgado, Universidade Federal de São Carlos, SP, que é doutora em Linguística, me felicitando pelo esforço de “esclarecer um amplo público sobre o que se passa na atual arquitetura da rede, com os modelos de negócios hegemônicos - e sobretudo explicar que “a rede” não tem que ser fatalmente assim”.

A seguir a Luciana me enviou um texto (está nas referências abaixo) propondo uma interlocução com o objetivo  de unir os esforços de leituras, em diferentes dimensões, sobre o fenômeno das redes digitais, a “distribuição algorítmica dos dizeres” e também ao "estado das técnicas e estado da política", como elementos para a compreensão do fenômeno do capitalismo de plataformas entre os discursos e as apropriações de toda a sorte.

A análise superinteressante da “cadeia semântica”, dos “mídiuns digitais”, da psicosfera/tecnosfera com resgates de referências conceituais do Debray e Milton Santos, feita por Lucina, me levaram a sugerir a elaboração de um texto síntese, com o objetivo de estimular e ampliar o nosso conhecimento da dimensão da linguagem que dirige as técnicas algorítmicas e as relações de poder que manipula a política. Gentilmente, Luciana nos atendeu e aí está.

 

O sentido que o algoritmo faz – ou faz fazer...

Luciana Salazar Salgado

Leio no Portal 247 a chamada “Villas Bôas admite ter consultado ministros e elaborado tuíte ainda mais incendiário sobre Lula”, que trata das ameaças do general ao STF frente ao julgamento de um habeas corpus para Lula, em 2018. O rumor público se densifica novamente em torno do tema por conta das declarações que compõem o livro “General Villas Bôas: conversa com o comandante”, recém-lançado pela Editora FGV. Um tuíte tem poder incendiário! É um caso típico do tempo presente, que se caracteriza por uma troca comunicacional intensa, densa e hipercondicionante – este é o ponto.

“Curto” sabendo que “curtir” uma notícia escabrosa fortalece a denúncia; “curte-se” a denúncia, e não o horror estampado na imagem ou manchete; os “likes” podem ajudar a pôr tema na roda, valorizar um canal ou celebrizar uma pessoa. O volume de dizeres que a lógica da plataforma enseja pautará mídias televisivas, radiofônicas e impressas, jornalísticas ou não. O Twitter é uma “rede social”, como se diz, que tem hoje poder de promover o rumor público na própria plataforma e para além dela. E eu curtir essa notícia nessa plataforma me amarra numa teia de coisas ditas e por dizer, não só porque meus rastros de navegação são coletados o tempo todo, mas porque o próprio gesto de engajamento incita em mim uma tomada de posição. É um gesto tão corriqueiro quanto grave. Fazemos isso à exaustão nas navegações cotidianas que não são consideradas “produtividade”, nos termos dos relatórios que nossas máquinas nos enviam. E com que critérios assumimos essas posições o tempo todo, cada vez mais vezes em cada vez mais redes?

Muito já se disse sobre o que Sérgio Amadeu da Silveira chama de “modulação de comportamentos”. Muitos pensadores têm nos alertado há mais de uma década para esse aspecto da arquitetura técnica que se hegemonizou e que chamamos tranquilamente de “internet”: são modelos de negócios que extraem da massiva coleta de dados, metadados e rastros a definição de categorias às quais temos de corresponder para participar da vida que se move pelos aplicativos e plataformas – tudo é filtrado, etiquetado e ranqueado. Fornecemos o material com que nos classificarão depois, enquadrando-nos. E mal percebemos como isso funciona. Sutilmente, somos conduzidos com a sensação de customização: de fato, tal como funciona hoje, esse hipersistema comunicacional pode oferecer produtos, serviços ou ideias no exato momento da navegação de um sujeito que os cálculos o apontam como efetivamente suscetível de comprar, contratar ou aderir.

O termo “hipermídia” foi caindo em desuso, mas parece muito adequado para designar algo tão abarcante, e eu me pergunto como passamos a preferir o palatável “internet”, sugestivo de uma tranquila “rede internacional”, que é, de fato, uma malha técnica de distribuição desigual. “Hipermídia” parece referir melhor a modulação de comportamentos que opera com as mais específicas idiossincrasias para estabelecer um padrão que volta pelos aplicativos e plataformas, manejando a eterna reinserção do navegante em curvas finamente calculadas. Chamo de hipersujeito esse navegante que nem se dá conta de que seu engajamento é gerador de mais engajamento, e que consiste basicamente em trabalhar para dar forma cada vez mais precisa aos cálculos que futuramente lhe darão forma (cada vez mais precisa?).

E aí a questão da língua se coloca. Também sorrateira e poderosa. Essa lógica da hipermídia que produz hipersujeitos tem muito a ver com desconsiderarmos, como usuários dessas tecnologias, o que está da tela para lá. A tela não é um ponto zero. O que se apresenta nela é já a confluência de articulações de diversos tipos de dados que nenhuma lei hoje obriga que sejam explicitadas. Também os nomes que fomos adotando para falar desses dispositivos nada neutros são incrivelmente poderosos. Um exemplo: a nuvem. Ora, não há nuvens. O marketing engenhoso definiu uma metáfora fofinha para o que são enormes galpões hiper-refrigerados funcionando 24 horas por dia, consumindo uma quantidade gigantesca de energia elétrica para estocar toda informação. Os serviços de streaming são exemplos dessa sofisticação: os de música, filme e aplicativos como Uber, Waze ou Ifood não existem senão investindo fortunas no ir-e-vir de dados hiperprecisos que, por exemplo, a Amazon estoca. A Amazon vive dos dados, não dos livros que vende a preços baixíssimos, como alguns ainda creem. É uma empresa de logística, uma intermediária, e nós somos mais mercadoria do que clientes nessa intermediação: nossas compras fornecem dados, nossas formas de comprar deixam os rastros que ela comercializa. Como se vê, essa questão da designação é bem importante: o próprio nome “Amazon” merece atenção!

Sabemos que os sentidos das palavras não estão nelas, mas nas suas relações; que as palavras dizem o que dizem ali onde aparecem, no modo como aparecem, propondo uma descrição do real. E é o convívio social que estabelece os parâmetros dessa descrição. Se cultivamos uma vida em bolhas, pode-se imaginar a dificuldade de estabelecer esses parâmetros...

Em todo caso, dizer que os sentidos das palavras se alteram conforme variáveis não linguísticas, conforme os repertórios dos interlocutores etc. não significa dizer que qualquer coisa faz sentido: o material linguístico tem suas características e os usos sociais desse material impõem certos caminhos interpretativos. Na selva da comunicação rumorosa, há caminhos que parecem preferenciais, porque se apoiam em sentidos mais estabilizados numa dada comunidade, numa sociedade.

Voltemos à notícia do tuíte do general. Boa parte de nossas trocas comunicacionais se distribui por aplicativos e plataformas cujos funcionamentos não conhecemos, vamos nos adaptando às “funcionalidades” delas, aprendendo como ocupá-las. A gente quase não se lembra de como era conversar antes das figurinhas e emojis nos mensageiros, como eram os dias antes da possibilidade de falar com muita gente o tempo todo ao longo do dia... Nesse contexto, por que o general usa o Twitter para ameaçar o STF? O que um enunciado curto lançado ali pode? Pode muito, como estamos vendo. A língua é a arena das arenas, e o modo como vai se organizando em dizeres que se põem a circular é que faz sentido. Foi usando o Twitter como usamos que fizemos dele um lugar de exercício de poderes – de governo, de desgoverno, da tirania institucional... Eis o hipercondicionamento. Era só um tuíte, e condicionou os rumos da nação.

Por definição, como disse, os sentidos de uma língua não estão dados nas palavras soltas, mas no modo como elas aparecem onde aparecem, proferidas por quem as profere. O que se tem chamado de “guerra das narrativas” tem muito a ver com isso. Afinal, a disputa pelos sentidos do que se diz é a disputa pela descrição do real. Nesse caso, o próprio termo “narrativa”, convenhamos, tem seus perigos: faz crer que tudo são versões e não há fato.

E um rumor público que é “hiper”, difícil de digerir, nos deixa à mercê desses ventos. Por isso, em tempos de guerra das narrativas, só sobreviverá quem considerar a lógica das tecnologias do dizer, o que significa que ocupar as redes tem de vir junto com entender os funcionamentos que elas hoje impõem – e transformá-los.

 

Detalhamentos:

SALGADO, L.S. A dimensão algorítmica dos discursos, pré-print disponível no Reseachgate.

SALGADO, L.S.; OLIVA, J. Espaço comunicativo e fratura social. Belo Horizonte: Fino Traço, 2020. (versão digital gratuita)

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