terça-feira, julho 11, 2023

Plataformização da Educação: um debate necessário!

 Plataformização da Educação: um debate necessário!

APP Sindicato-PR, Curitiba, 1 de Julho de 2023

 

Roberto Moraes Pessanha [1]

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 1 - Introdução (Tecnologia e Sociedade)

Atendendo a um convite da diretoria do APP Sindicato-PR (Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná) voltei a tratar do tema “Plataformização da Educação”, no último dia 1 de julho de 2023, em Curitiba, num seminário (título também deste ensaio) com a participação de representantes da categoria de todo o estado do Paraná. Na ocasião, tive o prazer de dividir a mesa com as professoras Vanda Santana, secretária Educacional da APP-Sindicato e Carolina Batista Israel, do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná.

Foto APP Sindicato-PR 01-07-23

Em maio de 2021, já havia participado de uma mesa-redonda online, sobre o mesmo assunto, organizada pela Pró Reitoria de Graduação e Laboratório Formação em Docências no Ensino Superior da UFMG (GIZ-PROGRAD-UFMG), que foi parte do encontro temático “Tempos Digitais". [1] [2]

Não sou pesquisador da área da Educação e nem do tema específico sobre Plataformização da Educação. Estudo as transformações do Modo de Produção Capitalista (MPC), nessa etapa que estou chamando de Plataformismo, em que várias infraestruturas digitais atuam na intermediação executada pelas Plataformas Digitais (PDs), cada vez mais presentes na sociedade contemporânea. Assim, tenho me dedicado a investigar o capitalismo de plataformas e identificado essas as plataformas digitais, como sendo “infraestruturas de intermediação” que surgiram com a finalidade de atender a diferentes setores da sociedade e/ou grupos econômicos no mundo contemporâneo que na gênese tinham usavam o discurso do compartilhamento (caronas, etc.) e foram se transformando em potentes ferramentas de exploração.

Nesse processo, as transformações digitais têm avançado como meios de comunicação (mídias digitais), interligadas com a produção material, o comércio e os serviços online. Aí estão incluídas as Plataformas Digitais Educacionais (PDE) e/ou os Aplicativos (APPs) Educacionais que se vinculam ao surgimento das startups tipo Ed Techs, em processo muito acelerado com a Pandemia num campo que de forma genérica, passou a ser denominado como Plataformização da Educação. Entre 2019 e 2022, as Ed Techs cresceram 80%, saindo de 449 para 813 empresas startups ligadas à educação.

A Plataformização da Educação é parte de um fenômeno mais geral das relações entre tecnologia e sociedade. Tecnologia e finanças. Tecnologia e trabalho. E no âmbito cruzado destas relações, foram entrando em nosso cotidiano no final da década passada - e de forma mais intensa na Pandemia e no Pós-Pandemia -, misturando uma necessidade emergencial com um difuso discurso de modernidade tecnológica presente na atual sociedade capitalista.

As fábricas, o comércio, os consultórios e as escolas entraram e seguem adentrando as nossas casas e ao nosso cotidiano. O público e o privado vão se misturando cada vez mais e de forma mais intensa e densa, não apenas nas redes sociais ou mídias digitais. Um processo que vem tornando o setor de tecnologia e suas corporações em gigantes e globais companhias, se transformando nas chamadas Big Techs, os maiores oligopólios da história da humanidade.

Portanto, entendo que não se deve olhar para o processo de Plataformização da Educação, sem deixar de observar todo esse contexto em que estamos vivendo no mundo contemporâneo. O fenômeno mais geral da plataformização deve ser visto como um fenômeno que se desenvolve e deve ser observado de forma multidimensional e transescalar nas dimensões: econômica, inovação tecnológica (C&T); trabalho; espacial (geoeconômica e geopolítica); política, cultural, das redes social-comunitárias onde se inclui o setor da educação, etc.

Figura 1: A multidimensionalidade do processo de plataformização


Elaboração do Autor. PESSANHA, 2020. [3]

Não é possível dar conta e analisar a repercussão do fenômeno de plataformização em todas essas dimensões, mesmo que busque uma leitura mais totalizante. Porém, com o aceite desse convite para dialogar com um coletivo de professores da rede pública do Paraná (laboratório de experiências neoliberais, empresarias e digitais no Ensino Básico) e como professor com atuação por mais de três décadas, me dediquei, num agradável esforço, a retomar o olhar em leituras e interpretações voltadas para a plataformização no campo da educação.


2 - A lógica da plataformização como etapa da circulação e meio de comunicação e meio de produção

A plataformização e a economia de plataformas, já eram processos crescentes e derivados, em especial, do incremento da internet móvel e do uso ampliado de aplicativos, a que chamo de Appficação. Quando me refiro ao Plataformismo como nova etapa do Modo de Produção Capitalista (MPC), em outras palavras, estou dizendo que as Plataformas Digitais funcionam hoje, como uma espécie denova” Linha de Montagem que, no passado, usando os princípios do Taylorismo, fez surgir o Fordismo. Porém, as novas transformações têm uma forma ainda mais preocupante, porque essa “nova linha de montagem” está agora ligada aos meios de comunicação e às pontas que ligam as demandas de consumo à produção de coisas materiais e serviços. Mais ainda, num ritmo 24/7 (24 horas e em 7 dias da semana), online, com o universo técnico-digital onipresente em nossas vidas através da internet móvel dos dias atuais.

A passagem da internet fixa para a possibilidade real e quase total da internet móvel dos smarphones (celulares) altera a escala do fenômeno sobre a sociedade. Hoje, 2/3 do planeta está conectado nas redes sociais e quase 6 bilhões de pessoas, de um total de 8 bilhões, estão na internet, mesmo que tenha seguido e ampliado as desigualdades sociais e a exclusão digital no mundo. As Plataformas Digitais (PDs) foram se tornando não apenas um instrumento técnico, mas um tipo de negócio na sociedade contemporânea.

Desta forma, é possível interpretar esse fenômeno com o que tenho também chamado de dominação tecnológica. A “digitalização de quase tudo” avança nessa atual etapa da reestruturação produtiva e da Divisão Internacional do Trabalho (DIT). No início, na última década do século passado, o professor espanhol Manuel Castells [4] já enxergava a inovação técnico-digital como base de um “sistema informacional”, mas isso ainda era visto como um fenômeno com características muito abstratas e como um exercício de leitura de cenários.  

No início da segunda década deste século, a relação entre tecnologia (digital) e sociedade já tinha se tornado mais intensa. O setor de tecnologia é transversal a todos os demais setores da economia e da vida em sociedade e isso tem enorme poder de arrasto. É um setor que está presente em tudo. Assim como as finanças que também é transversal aos demais setores. E são dois setores que sempre caminham juntos. Um setor potencializa o outro e juntos passam a controlar as demais atividades, permitindo entender melhor as razões das Big Techs serem alimentadas pelos fundos financeiros (capitais de risco de investidores) no processo de extração de renda e valor, sobre todos os processos de trabalho, exercendo assim, o que tenho também denominado com o uma espécie de “vampirismo digital”. [5]

Repito, as PDs atuam como infraestrutura e meio de comunicação e, simultaneamente, como meio de produção. A lógica de toda plataformização é a intermediação. É ligar as pontas entre produção e o consumo de coisas e serviços, entre eles a Educação.

Figura 2 e 3: A lógica da plataformização e produção de valor


Elaboração PESSANHA, 2020. [3] [6]

As PDs surgem do desenvolvimento da tecnologia digital e do sistema informacional, comentado por Castels [4], na virada do século em sua trilogia, mas de forma especial no livro “A sociedade em redes”. O desenvolvimento da tecnologia e sua implantação tem se enraizado na sociedade e nos territórios. Ao falar sobre dominação tecnológica vale observar que da mesma forma que o trabalho é inerente ao ser humano, a desenvolvimento das tecnologias não existiriam sem o trabalho humano, as forças produtivas e as relações de produção. Tudo misturado. [7]

Assim, é sempre importante destacar que a tecnologia (incluindo a digital) é feita de trabalho humano. Marx já dizia que as tecnologias são recheadas de trabalho humano. Tecnologia e Trabalho são historicamente entrelaçados. O desenvolvimento tecnológico refere-se às forças produtivas e às relações de trabalho [7]. Daí derivam as tecnologias, plataformas e aplicativos (APPs), tipo Aprendizado de Máquinas (Machine Learning, ML) e Inteligência Artificial (IA) que podem melhorar a capacidade dos processos e ainda a organização do trabalho, mas não substituem o homem. A lógica poderia ser a de unir o conhecimento e as habilidades humanas às máquinas criadas pelo homem, para articular o que se deseja otimizar, usando o que os algoritmos resumem e processam diante de tantos dados para as escolhas humanas, mas o objetivo central dos donos dessas tecnologias tem sido a do progressivo descarte humano.


3 - A Plataformização entra em todos os setores e espaços

Segundo o dicionário Aurélio, plataforma é uma “superfície plana e horizontal, mais alta que área ao redor”. Outra definição é a de que se trata de “um programa político, ideológico, administrativo de um candidato a cargo eletivo”. Numa ou noutra definição de plataforma ela é apresentada como um instrumento de intermediação entre as partes de um sistema de produção, planejamento e de escolhas. A partir desta leitura semântica de plataforma, como uma forma de mediação se pode avançar para se ter mais claro a lógica da Plataformização (ou do Capitalismo de Plataformas), onde na essência acontecem, em especial, a extração de três tipos renda: renda de publicidade, propriedade intelectual e renda de infraestrutura. [8]

Concretamente, as plataformas digitais atuam como instrumentos; a plataformização e plataformismo como processos; e as plataformas-raiz e as Big Techs como agentes. APPs e APPficação, Startups e Startupização (parques tecnológicos, incubadoras, investimentos de riscos, lógica neoliberal, individualismo) também são processos que possuem intensa relação com a financeirização, num sistema que atua sob o domínio e a égide neoliberal que assim amplia o controle do mercado sobre toda a sociedade.

A extração de dados dos usuários (usuários similar ao vício das drogas, mobilizado pela produção de dopamina) é a base desse processo, assim como o uso de vários outros recursos, entre eles o Aprendizado de Máquinas (Machine Learning (ML), Inteligência Artificial (IA), etc.  São processos integrados em o uso dos dados através das PDs permitem que as fábricas, lojas, consultórios e escolas entrem em nossas casas, via mídias digitais. Apesar da velocidade destes processos é importante reconhecer que as PDs, a digitalização e a plataformização não são os problemas por si, mas sim o uso e o controle dessas transformações feitas pelos donos dos dinheiros dos investidores e fundos financeiros que estabelecem uma lógica nefasta.

Assim, as plataformas digitais e a plataformização estão hoje presentes, em quase todos os setores econômicos e atividades da vida humana. Da produção material, agrícola, pecuária, beneficiamento e indústria, nos serviços e aplicativos de transportes, saúde (consultas e exames), educação (aulas, seminários, gestão e apoio, etc.), lazer, música, filmes (streamings), interação social (mídias sociais), comércio online (e-commerce), etc. Todas essas atividades estão hoje, num grau maior ou menor, intermediadas pelas PDs. Elas entraram em tudo. Não apenas na educação. Em todos esses processos as empresas-plataformas extraem dados, mas o objetivo é, em especial, extrair valor e recolher os excedentes das economias regionais/locais.

Figura 4: A Plataformização e APPficação dos negócios (marcas):

Elaboração PESSANHA, 2023.

Com o advento da crise sanitária e da pandemia, esse processo foi enormemente acelerado. Aceleração do tempo como dizia Thompson. [9] Ou, como sempre nos lembra o geógrafo David Harvey que se referiu à “compressão do espaço-tempo” a partir dos mecanismos da Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) [10]. O que era estimado para acontecer em uma década foi trazido para um ano, um semestre, ou um mês. E no Pós-Pandemia estamos ainda vivenciando o estímulo ao hibridismo, com o avanço da plataformização sobre os mais variados níveis e tipos de ensino no Brasil: do maternal à pós-graduação.


4- Contextualizando a inserção da Plataformização na área de Educação, no Ensino Fundamental e Ensino Médio

Antes ainda de falar sobre a Plataformização da Educação e dos aplicativos, plataformas digitais e startups educacionais (Ed Techs), é importante registrar, mesmo que brevemente, alguns aspectos e contextos da educação pública nos últimos anos no Brasil, exatamente, quando se ampliou o uso da digitalização na educação através do uso de diferentes plataformas e aplicativos vários estados, níveis e sistemas de ensino público e privado.

Trata-se de um contexto Pós-Pandemia em que as deficiências de aprendizagem se aguçaram, em especial no Ensino Fundamental e no Ensino Médio, ampliando a assimetria entre alunos de escolas públicas e privadas diante das dificuldades de acessos à internet e aos equipamentos cibernéticos. Vazios e empilhamentos fragmentados de conteúdos foram se multiplicando num esforço de ensino de aprendizagem por parte de professores e alunos. Usos de plataformas digitais de forma apressada e naquele momento de medo e que se desejava qualquer forma de romper o isolamento. Vivemos uma fragmentação absurda. Nesse mesmo período, os sistemas de ensino viveram a redução no orçamento de custeio e salários dos educadores; aumento da carga horária e do nº de alunos por professor e, praticamente, nenhum investimento na infraestrutura e nas instalações das escolas públicas. Ao final do isolamento completo, também assistimos ao crescimento da violência nas escolas, propiciada por um ambiente tóxico de ódio em toda a sociedade. 

As alterações no Ensino Médio em 2016 reforçaram ainda mais a fragmentação e a precariedade que vieram junto de processos de terceirizações, privatizações, sociabilidades estremecidas em termos familiares, geracionais e comunitários. A estranheza cresceu no interior da juventude sobre a compreensão do lugar deles no mundo, surgida do aumento da complexidade derivada da virtualidade das relações sociais intermediadas pelas plataformas, quase a todo tempo e em todo lugar e situações (ritmo 24/7). [11] [12] [13] Tudo isso não parece algo solto no tempo e no espaço. Qualquer análise mais aprofundada sobre esse processo, sugere que nesse contexto se perceba em que condições, se tem efetivado a enorme interconexão entre causas e efeitos decorrentes do avanço da Plataformização da Educação.

Gestores e donos das PDEs (Ed Techs) vendem a ideia difusa do progresso e da modernização, a partir da oferta de novas ferramentas de ensino e de uma certa autonomia, em que o trabalho poderia ser feito online (de casa, através do chamado home office), com maior alcance geográfico para dar aulas para outros bairros, municípios e regiões. Junto acompanhava a ainda a vaga sugestão de que esse modelo poderia possibilitar também maiores ganhos financeiros para professores, etc. Esse discurso de vantagens também foi vendido aos alunos, a partir da possibilidade da flexibilidade de horários com o online das PDE e APPs; oferta de cursos mais rápidos, cumprimento de etapas com certificação; oferta ainda de cursos técnicos e superiores com valores acessíveis às famílias de rendas mais baixas, enquanto os donos das PDEs ampliavam seus faturamentos com a massificação das matrículas.

Enquanto isso, se assistia a mistura intensa e perigosa entre a vida profissional com a vida pessoal dos trabalhadores da Educação. O ambiente “fidigital” obrigando a esforços para superação de dificuldades com manejo da tecnologia para além da necessidade de domínio dos conteúdos. Professores sendo substituídos por mentores e tutores com diminuição dos postos de trabalho que eram cativos dos docentes; e um controle quase total sobre o trabalho dos professores na forma, conteúdo (neotaylorismo que nesses tempos são exercidos de forma conjunta ao plataformismo) executados pelos donos das PDEs e Ed Techs contratados pelos gestores de sistemas estaduais de ensino. Observa-se assim, um uso indiscriminado e crescente de plataformas digitais educacionais que se alicerçam no velho esquema da “instrução programada”, skinnerização, uso de games e ofertas de conteúdos ligados à ideologia, modos de vida e costumes como educação financeira, escola sem partido, etc. Em síntese esse foi o contexto que as plataformas digitais entraram ou avançaram no ambiente e nos sistemas de ensino no Brasil.

 

5 - Plataformas-raiz (Big Techs) - Plataformização – Startupização da Educação

Para entendermos a lógica da plataformização e sua função na área da educação é importante entendermos o papel de um de seus principais agentes: as gigantes corporações do setor de tecnologia, as Big Techs que devem ser vistas como “plataformas-raiz”, em especial as cinco companhias americanas: Google, Facebook, Apple, Microsoft e Amazon. [14] Num nível mais abaixo, estão outras como a Nvidia, Tesla, TSMC, Tencent e Samsung. Sobre suas estruturas se penduram - gerando dependência - as demais plataformas, softwares e aplicativos que sabem que a educação é um filão extraordinário para ganhos e acumulação ampliada. Daí se derivou um processo extremamente potente que ampliou o uso e tornou as Plataformas Digitais ainda mais atrativas já contanto com o avanço da infraestrutura de comunicação digital e o peso da internet móvel e celulares que tornaram ainda mais fácil, o esquema de uso das mídias sociais e aplicativos no ritmo 24/7 em qualquer lugar e horário.

Figura 5 - Plataformas-raiz – Big Techs.

     Elaboração autor, PESSANHA, 2020. [3] [5] [6].


Estima-se que 70% das universidades e sistemas de ensino no Brasil usem as Big Techs, em especial Microsoft, Google e Amazon, como plataformas e APPs de tecnologia que fazem as “pontes” até os estudantes, capturando e guardando dados nas nuvens ao mesmo tempo que interligava pessoas e negócios de todo o tipo. Em termos de armazenamento nas nuvens (datacenters) destas três Big Techs são líderes: Amazon AWS-49%; Google Cloud (28%); e Azzure da Microsoft (16%). As Big Techs há algum tempo disponibilizam dezenas de softwares /aplicativos que são amplamente utilizados na educação: Windows, Office 365 (Word, PPT, etc); Gmail; YouTube; WhatsApp, FB, Instagram, Tik Tok, Meet, Team, Productivity Score (ferramenta de vigilância e comportamental de alunos); Reflect (soft para enviar questionários para avaliação de aprendizagem), etc.

A Microsoft possivelmente é a Big Tech mais próxima das universidades e dos sistemas de ensino seguido do Google no Brasil. O soft ClassRoom da Google é também usado para gerenciar turmas, enquanto, o soft Cuppertino (Apple) tem soluções de apoio e capturam inovações pedagógicas e educacionais. Novas soluções seguem buscando transformar o ambiente educacional mimetizando-o para uso digital que em seguida é compartilhado com venda para um público mais amplo. APPs como Power APP, Dynamics 365, Power Virtual, etc., são também muito utilizados. Outras empresas de tecnologia e Ed techs usam softwares e aplicativos que funcionam como acessos às artérias ou avenidas das plataformas-raiz das Big Techs que assim exercem um poder meio que imperial de captura de dados, rendas e valor de educadores e dos estudantes usuários.

O uso intenso e a dependência das plataformas-digitais foram constituindo o oligopólio das corporações gigantes do setor de tecnologia. As Big Techs estão no topo da estrutura dessa transformação digital que envolve os diferentes setores da economia e da vida em sociedade. O processo de oligopolização está diretamente relacionado à plataformização e à criação do modelo de negócio vinculado à tecnologia, conhecido como startups que avançam e dependem do financiamento dos capitais de riscos dos fundos de investimentos. O setor de finanças alimenta o setor de tecnologia e acaba sendo também retroalimentado numa “espiral de acumulação infindável” que explica a maior oligopolização da história da humanidade. Desde a Pandemia as gigantes empresas do setor de tecnologia não param de bater recordes em termos de valor de mercado entre os diferentes tipos de corporações em todo o mundo conforme pode ser visto no quadro 1 abaixo.

Quadro 1: Valor de mercado comparativo das 10 maiores corporações de tecnologia e óleo/gás

As quatro maiores corporações do setor de tecnologia tinham, em maio de 2023, valor de mercado acima de U$ 1 trilhão cada. Juntas, as dez maiores empresas de tecnologia somavam US$ 11,6 trilhões e puxaram muito a valorização das bolsas de valores no mundo, enquanto a economia em geral seguia com pouco dinamismo. Já a soma do valor de mercado das dez maiores corporações de petróleo no mundo somavam apenas U$ 3,7 bi, cerca de três vezes menor. A Pandemia da Covid contribuiu para os dois fenômenos, o freio da economia no geral e a expansão expressiva do valor de mercado das empresas de tecnologia (Big Techs) que na condição de “Plataformas-raiz” se mostraram ainda mais importantes com o isolamento forçado.

A ampliação da digitalização em todos os setores da economia, como etapa atual da reestruturação produtiva global, através do processo de plataformização foi levando a transformações dos negócios e ao surgimento de empresas ligadas ao setor de tecnologia que ficaram conhecidas como startups. A parir da ideia de empreendedorismo, do apoio às incubadoras de empresas e parques tecnológicos, vinculados às universidades e aos centros de pesquisas de grandes corporações, com aportes progressivos e seletivos de capitais viabilizaram esse tipo de empresa-plataformas, na condição de startup (empresa de tecnologia de rápido crescimento) no mercado. Assim, é espantoso ver a rápida evolução do número de startups no mundo e no Brasil.

Segundo a AbStartups, em 2011 no Brasil haviam 600 startups. Uma década depois elas tinham se multiplicado por mais de 20 vezes, chegando a 13.700 startups em funcionamento em 2021. A grande maioria vinculada a negócios tipo plataformas digitais com atuação em diferentes ramos de atividades e negócios. [15] [16]

A evolução deste tipo de negócio de inovação tecnológica, vinculada à tecnologia e ao processo de startupização no Brasil, se deu um pouco antes e foi rapidamente intensificado com o surgimento da Pandemia. Um movimento que veio também acompanhado de um aumento colossal de aportes de capitais de riscos de fundos financeiros, a partir do lançamento de inúmeros editais e rodadas de investimentos para negócios de empresas surgidas na condição startups, com foco em tecnologia e em negócios tipo plataformas.

A evolução desse movimento no Brasil foi muito expressivo e pode ser melhor percebido com os dados da evolução do nº de startups na última década. Outro indicador expressivo e que indica a relação com a financeirização é a dos valores e investimentos, em US$ bilhões de dólares, feitas por investidores nestas startups como pode ser visualizado nos quadros abaixo. Startups de diversos tipos se multiplicando, captando investimentos cada vez maiores, ganhando valor de mercado e se tornando rapidamente unicórnios (startup com calor de mercado superior a US$ 1 bilhão). Entre 2018 e 2022 mais de US$ 20 bilhões foram identificados como investimentos em startups no Brasil.

Quadro 2: Evolução do nº de startups no Brasil; Quadro 3: Investimentos em startups no Brasil entre 2018 e 2022:


Elaboração do autor. Fonte dos Dados: AbStartups e Consultoria Distrito. [15] [16]

São números colossais e que explicam o processo que tenho chamado de startupização que possui lógica própria vinculada diretamente à financeirização. As Startups no setor de tecnologia são vinculadas a diferentes setores e assim são denominadas com uso de expressões em inglês mais o sufixo tech de tecnologia: Finanças (Fintechs); Educação (EdTerch); Saúde e Bem-estar (HealthTech ou MedTech); Agronegócios (AgroTech ou AgTech); Tecnologia da Informação (TiTech); Alimentação (FoodTech); Imóveis (PropTech); Transporte e mobilidade (AutoTetch) ou Logística (LogTech); Direito e legislação (Lawtech ou Legaltech); Energia (EnergyTech); Esportes (SportTech); Gestão de pessoas (HRtech ou RHtech); Construção (ConstruTech); Seguros (InsurTech); Governo (GovTech); Varejo (RetailTech); Publicidade, marketing e anúncios (AdTech ou MarTech); Sustentabilidade (CleanTech); Nanotecnologia (NanoTech); Entretenimento e lazer (FunTech); Moda (FashionTech); Biotecnologia (BioTech); etc.

A diversidade de áreas demonstra como a tecnologia é na prática um setor transversal que atravessa todos os ramos de atividade e por isso, através de inovações e plataformas digitais elas desenvolvem inovações e capturam valor no interior destas cadeias produtivas. Assim, é possível identificar que os processos de plataformização leva a outros processos, num efeito em cadeia, diretamente imbricados à financeirização e oligopolização, estes vinculados a processos de fusões e aquisições entre as empresas-plataformas e startups. Para confirmar essa direção, no Brasil já se observa um número crescente de fusões e aquisições de startups que assim se transformam em unicórnios, com valor de mercado superior a US$ 1 bilhão.

Entre as várias startups estão as Plataformas Digitais Educacionais (PDEs) e Startups Educacionais, as Ed Techs. O papel das PDEs e Ed techs é o de fazer a intermediação entre grupos com demanda por formação e/ou certificação com donos e grupos de produtores de conteúdos (PDEs e Ed Techs) que não param de crescer no Brasil, captando investimentos de diversas fontes, mas em especial de fundos financeiros com atuação no Brasil.

Desta forma, o Plataformismo como modo de produção capitalista chega também ao setor de Educação. Lá atrás, o Taylorismo/Fordismo já tinha influenciado na organização da escola com a adoção da ideia do seriado (séries), grades curriculares e disciplinas, repetindo a conhecida divisão internacional do trabalho (DIT). A flexibilidade do Toyotismo trouxe a acumulação flexível e a ideia da produção sob demanda (Just In Time). Assim, o Plataformismo pode representar uma nova etapa do MPC que não significa a superação do Taylorismo/Fordismo e nem do Toyotismo, mas, o convívio simultâneo com elas a partir das Plataformas Digitais como novo tipo de negócio financeirizado e digitalizado com eficiência ampliada em relação à antiga linha de montagem, a partir das capacidades simultâneas das PDs como meio de comunicação e meios produção, como uma espécie de nova linha montagem do ambiente digital.

Figura 6: Plataformismo – Transformações no Modo de Produção Capitalista


Elaboração do autor. PESSANHA, 2020. [3]

Agora, com o início dessa espécie de “sociedade das plataformas” é possível que essa nova etapa do modo de produção capitalista (MPC) também influencie – de uma forma a ser ainda avaliada e conforme as resistências dos trabalhadores – em novas formas de reorganização da sociedade contemporânea e também do ambiente da escola. Uma observação inicial do que pode estar em curso é a hipótese já pode estar havendo uma certa adaptação, com uso “quase natural” das PDs também no ambiente da Educação, de forma similar ao que já acontece no e-commerce, no uso de aplicativos (APPS) para diferentes tipos de serviços, que seria parte desse fenômeno a que está sendo chamando de Plataformização da Educação.

Trata-se de um esquema ou negócio (tipo plataforma) que tende a fortalecer as bases e as condições para uma maior terceirização e privatização, através da contratação de empresas (com tutores), menos professores surgido junto do discurso único neoliberal da redução de custos nos sistemas públicos de educação. Nesse percurso as escolas podem, de forma paulatina e majoritária, saírem da condição de ambientes de aprendizagem para centros de certificação de títulos e cursos. O início desse processo pode já ter se dado através dos cursos livres e extras de línguas estrangeiras, depois matemática básica, redação, robótica, cursos profissionalizantes quase sem laboratórios e sem experiências reais e materiais que garanta uma formação de qualidade, mas passa a ideia difusa do moderno ligado à computação e ao digital. Esse processo segue avançando de forma acelerada para os conteúdos de outras disciplinas e às contratações de empresas-plataformas (Edtechs) pelos sistemas estaduais de ensino.

Porém, há que se ter clareza que o que se justificou na Pandemia, não se sustenta mais. Não estamos mais em situação de emergência, em que qualquer medida era melhor que a paralisia e o isolamento entre alunos, professores e a falta de mediação da escola no processo ensino-aprendizagem. Educação é muito mais que que um recurso didático isolado como infraestrutura de intermediação facilitadora da circulação de informações. O conhecimento é algo maior e exige sociabilidade, interação que pode ser auxiliada pelas técnicas digitais e pelas plataformas para melhorar e enriquecer o processo de aprendizagem. A construção do conhecimento é o inverso da fragmentação com acúmulo isolado de fatos e informações. Assim, há que se frear esse ímpeto irresponsável da plataformização a todo custo, no menor tempo possível e implantado à revelia dos educadores.

A construção do conhecimento exige o desenvolvimento de capacidades de articulação de saberes, em que a sociabilidade é base indispensável. Assim, é inaceitável que esse processo de intensificação do uso das Plataformas Digitais Educacionais (PDEs) seja guiado pela redução de custos, pela ideia difusa do descarte do papel do professor e pelo ideário neoliberal da produtividade a todo o tempo e em todos os processos.

 

6. As PDEs e Ed Techs no Brasil

O Brasil tem hoje quase meia centena de milhões de estudantes nos diversos níveis. Um pouco mais da metade disso (27 milhões) no Ensino Fundamental; 8 milhões no Ensino Médio e cerca também de 8 milhões em graduação. Em 2019, antes da Pandemia, pouco mais de 10% (até 14%) das escolas públicas utilizavam algum tipo de plataforma de ensino à distância ou via aplicativos. Durante a Pandemia, cerca de 80% das escolas iniciaram esse processo. Cerca de 90% dos professores começaram nesse ambiente, sem nenhuma experiência em ensino remoto; 50% tinham uma regular habilidade com técnicas digitais e 42% nenhuma habilidade e/ou conhecimento. Cerca de 70% declararam ter medo e insegurança, mas diante da situação de emergência e pressões exerceram atividades em PDs e PDEs (GIZ-PROGRAD-UFMG, 2021) [17].

Hoje, no Pós-Pandemia no âmbito da Educação, em seus diversos níveis, há ainda muitos e complexos desafios. Em especial na Educação Pública e no Ensino Básico. A digitalização quase que obriga a pensar em ampliar e reformular a forma de ensinar. O hibridismo é cantado em versos e prosa como alternativa. A sala de aula que deveria ter mais espaços de investigação, integração, sociabilidades e debates sobre aprendizados coletivos e interativos, está sendo pressionada para um uso maior das PDEs como alternativa quase única. É inaceitável que isso seja feito sem debates e qualquer iniciativa precisa ser um processo paulatino com avaliações periódicas e ampla participação das comunidades escolares. Os percursos não precisam ser iguais, mas não podem ser obrigatórios.

Essa geração de crianças, adolescentes e jovens não pode ser penalizada duplamente. Além de viverem o período difícil da Pandemia, é inaceitável e criminoso, ver novamente essa mesma geração de adolescentes e jovens, obrigados também a conviver com experimentações skinnerizadas [18], sem reflexão sobre essas mudanças. Com mais essa fragmentação entre o online e o presencial num mundo em que a transdisciplinaridade é uma necessidade para a qual ainda não tínhamos sequer avançado ou mesmo iniciado.

A escola e os sistemas de educação precisam entender melhor as mudanças em curso, inclusive no mundo do trabalho. Evitar a fragmentação e buscar maior integração, sociabilidade, mais reflexão e diálogo entre dirigentes, professores e alunos. Assim, pensar criticamente nos caminhos para essas mudanças.

As mudanças com a digitalização do ensino são partes das transformações do MPC em diferentes setores e na sociedade com efeitos econômicos sociais e políticos, entre eles a mais preocupante é a fragmentação do sujeito, a individualização e uma tendência reforçada e ampliada à meritocracia.

“A digitalização, as plataformas e o teletrabalho atomizam o mundo do trabalho e fazem de cada trabalhador(a) uma unidade produtiva, um sujeito desagregado e pressionado pelo assédio e pelas ameaças da meritocracia para alcançar produtividade” (GROHMAN, 2020) [7] através das chamadas “entregas”.

A tecnologia digital deve ser meio para auxiliar o processo ensino-aprendizagem para assim contribuir no aperfeiçoamento e na qualificação do ensino e a da instituição Escola e não o inverso. O avanço do uso das plataformas, parecem querer mostrar e impor a ideia – mesmo negando - que os sistemas de ensino podem prescindir da da escola e do professor.

Há um desafio na sociedade que é o de fazer com que o estudante possa conseguir transitar nesse mundo em profundas transformações.  O desafio é também de ajudar os jovens para atuarem num mundo constantemente instável e de transformação permanente. Para os adolescentes e jovens entenderem melhor sua identidade no mundo, seu pertencimento e seus relacionamento com os diferentes, a Skinnerização não tem nada a contribuir naquilo que é mais essencial, apenas com o que é periférico. A construção do conhecimento e a educação é o processo inverso da fragmentação e da individualização, presentes na maioria das plataformas e aplicativos educacionais até aqui. 

A UFMG empreendeu estudos e pesquisas através de alguns núcleos de pesquisas (em especial da Faculdade de Educação e da Pró-Reitora de Graduação) sobre o tema das Plataformas Educacionais. Uma dessa pesquisas, em 2020, no auge da Pandemia, teve o apoio da CNTE [17]. O Comitê Gestor da Internet no Brasil CGI.br (LabJor da Unicamp) tem estudado e acompanhado o assunto, expondo uma enorme preocupação com o papel crescente e hegemônico das Big Techs e com a falta de estrutura nacional que oriente o uso dessas infraestruturas digitais ligadas à Educação e também ao surgimento de centenas de startups ou Ed Techs (Empresas-plataformas ou empresas-aplicativos) na área de educação. [19]

Um estudo (pesquisa) da Abstartup / Deloitte /Amazon, junto com o Centro de Inovação Educacional (CIEB) identificou o crescimento das Ed Techs (Plataformas Educacionais) no Brasil, sob a perspectiva de mercado para oferta destes serviços de PDE, através das startups que, em sua quase totalidade, têm financiamento de investidores dos chamados capitais de riscos. Segundo a Abstartup em 2019, o Brasil tinha 449 EdTechs. Em 2020 já eram 566 EdTechs (+26%); em 2022 tinha chegado a 813 Ed Techs. Ou seja, em três anos (2019-2022) cresceu 81%, conforme evolução mostrada no quadro abaixo:

Quadro nº 4: Evolução do nº de Ed Techs no Brasil no triênio 2019 e 2022:


Elaboração do autor. Fontes dos Dados AbStartup. [20]

O mapeamento das Ed Techs divulgado pela Abstartup [20] expõe que esse tipo de startup se organiza principalmente por oferta de cursos e níveis: cursos livres (não formais, qualificação e profissionalização) e cursos preparatórios e EaD (Educação à Distância). Atuam nos níveis: Infantil (inicialização e pré-escola até 5 anos); Básico (Fundamental e Médio); Superior (graduação e pós-graduação); Corporativa (gestão, treinamentos específicos e simuladores) e Idiomas (línguas estrangeiras).

As EdTechs são classificadas ainda por recursos entre softwares e hardwares. A maior parte são de softwares e plataformas que são ainda classificadas por conteúdos ou ferramentas. Por conteúdos: cursos; jogos; ODA (Objeto Digital Apoio); Sistema de Gestão da Educação (SIG e SIS); Sistema de gerenciamento de aulas; Plataformas Educacionais; Repositório Digital. Por Ferramentas: Apoio à aula; Apoio à gestão; Avaliação do estudante; Auditoria; Colaboração; Conteúdo Pedagógico; Gerenciamento currículo e Tutorial.

Do universo de mais de oito centenas de EdTechs, cerca de 70% delas tinham recebido investimentos privados financeiros; 40% recebem entre R$ 500 mil e R$ 2,5 milhão. Na média as EdTechs recebem investimentos de R$ 1,3 milhão. Em 2022 foram registradas 187 aquisições e 13 fusões entre as startups, configurando um processo ainda inicial de oligopolização também no Brasil. No Mapeamento, a consultoria Holon IQ informou que US$ 21 bilhões de investimentos nas startups no Brasil, entre os 2018 e 2022, sendo mais de um US$ 1 bi apenas nas Ed Techs. Os tipos de startups que mais crescem no Brasil estão Ed Techs (15%); Fintechs – Financeiras - HealtTechs (Saúde) com 9% e as TITechs (Desenvolvimento de Tecnologia da Informação (6,7%). A maioria das EdTechs (38%) estão concentradas em SP e no Sudeste (55%). [20]

Figura 7 – Mapa da distribuição geográfica das Ed techs no Brasil:  


Fonte. Mapeamento de Ed Techs no Brasil. Slide 16/79. [19]

 

7. Processos analisados na perspectiva de totalidade (Plataformização - Startupização - Financeirização e Oligopolização) evidenciam a lógica neoliberal:

Através de um olhar mediado com a perspectiva de totalidade para esses processos interligados de Plataformização, Appficação, Startupização (Modelo de Negócio), Financeirização e Oligopolização (Unicórnio (Oligopolização) é possível avançar um pouco mais. Como já foi comentado, os processos de plataformização levam a outros processos num efeito em cadeia, imbricados à financeirização e à oligopolização, vinculados também a processos de fusões e aquisições entre as empresas-plataformas e startups.

São vários os casos de startups ligada à educação EdTechs buscando editais e rodadas de financiamento organizada por instituições de apoio à ciência e tecnologia e bancos de fomento. Vale citar um caso divulgado pela revista Pequenas Empresas e Grandes Negócios em 5 de julho 2023: “Edtech Teachy capta R$ 8 milhões em rodada pré-seed - Investimento foi liderado pela NXTP e teve participação da Roble Ventures. Plataforma lançada neste ano tem o objetivo de facilitar o trabalho dos professores”. [21]

Ao observar esses movimentos é possível interpretar e analisar a superestrutura desse sistema, a partir de uma perspectiva de totalidade, identificando onde se situam as Plataformas Digitais Educacionais e EdTechs como ferramenta; como elas desenvolvem os processos de plataformização de forma imbricada à financeirização e como essa relação produz a tendência de oligopolização que surgem a partir de fusões e aquisições de empresas similares e concorrentes. Esses movimentos e articulações estão expostos no esquema gráfico da figura abaixo, desde as Big Techs às pontas do sistema após passar pelos processos descritos.

Figura 8: Esquema gráfico dos processos integrados a partir das Big Techs e seus financiamentos


Elaboração (em construção) do autor. PESSANHA, 2023.

Ainda numa leitura mais ampla e numa perspectiva de totalidade é possível entender esses processos como responsáveis pelo que venho denominando junto com outros pesquisadores, como o tripé do capitalismo contemporâneo. Nele, a fase atual da reestruturação produtiva pode ser vista pela intensificação da digitalização e pelo o desenvolvimento do Plataformismo como nova etapa do MPC, em movimento conjunto com a hegemonia financeira que é decorrente do modus operandi da financeirização nos negócios. Juntos, eles forma uma trilogia de movimentos sob a lógica e a égide do neoliberalismo, sustentados nos princípios da desregulação, controle do mercado e no discurso único sobre a redução de custos, terceirização e privatização da vida em sociedade. Portanto, diante dessa realidade empírica não é difícil identificar a Plataformização da Educação como parte desse processo mais amplo.

Figura 9: Tripé do capitalismo contemporâneo


Elaboração PESSANHA, 2022.

Esse tripé que vem sustentando o capitalismo contemporâneo é composto de diversas outras tríades que expõem as diferentes dimensões e escalas em que esse fenômeno vem se desenvolvendo e produzindo deslocamentos (DOWBOR, 2020) [22]. Porém, na essência observa-se que esse movimento tem contribuído para ampliar as capacidades do andar superior das finanças em aumentar seus lucros, apropriar mais renda e valor e, assim constituir regimes mais potentes de acumulação e hegemonia financeira em aliança à dominação técnico-digital que assistimos no presente e está exposta nesse ensaio. 

 

8- Tendências /Riscos com ampliação do uso das PDEs (Ed Techs) e recursos do ML, IA e ChatGPT

Dialeticamente, a tecnologia digital é muito atrativa e tentadora. Ela nos liberta e simultaneamente nos aprisiona. Os acessos à informação e à comunicação são, ao mesmo tempo, remédio e veneno, nos lembra Pierre Lévy.  Com essa perspectiva e diante da leitura de que é possível aproveitar os recursos das tecnologias, mas noutra direção, é que se apontará a seguir nesse texto, um conjunto de tendências e riscos que a ampliação desenfreada do uso das Plataformas Digitais e Aplicativos Educacionais (PDEs e APPs) da EdTechs trazem para todos. Sem os cuidados necessários, com velocidade e experimentalismos inaceitáveis e sem diálogo com os docentes e alunos (e suas representações) esses movimentos de plataformização podem estar conduzindo a Escola e os sistemas de ensino público no Brasil contemporâneo a caminhos indesejáveis. Com essa preocupação (e em síntese) lista-se abaixo um conjunto de tendências e riscos que em parte já foram abordados no presentes texto:

 

a) Nossos dados são a chave para soluções adotadas pelas PDE, Ed Techs, com uso dos BD, ML, IA e ChatGPT.

b) O Aprendizado de Máquina (ML), a Inteligência Artificial e os aplicativos tipo ChatGPT e similares tendem a avançar na linha de atender às necessidades individuais – princípio o neoliberalismo – em ritmos próprios de aprender a ler, contar (matemática) e de maior acesso a conhecimentos gerais e flexibilidade de lugar e hora para aprender.

c) Tendência de ampliação da gamificação (simuladores, jogos) como modelo para a Escola e para a vida em sociedade incorporando a lógica da competição e redução da autonomia.

d) Avanço das startups EdTechs (já são 1º em crescimento entre as startups) com transformação digital da sala de aula através da Plataformização paulatina da escola e da Educação.

e) EdTechs tendem a crescer como instrumento do discurso sobre o empreendedorismo na formação do aluno como sujeito que se faz por si próprio – fábrica do sujeito neoliberal (DARDOT e LAVAL, 2017) [23] – acompanhado de cursos e instruções de educação financeira, saúde, etc.;

f) EdTechs vão passar a entrar nos ambientes virtuais MetaversoRealidade Aumentada (RA) e Virtual (RV) com aulas em viagens ao redor do mundo; viagens especiais e setoriais coma promessa de oferta de habilidades cognitivas complementares aos alunos.

g) Tendência de ampliação da mistura entre Educação e treinamento corporativo apresentadas como qualificação para o Trabalho como já define as questionadas diretrizes do Ensino Médio; Tendência da lógica de educação mais empresarial e não do trabalho como princípio educativo;

h) Maiores pressões para o aumento das terceirizações e contratações de Ed Techs com tutorias em substituição ao professor;

i) Tendência paulatina de que algumas escolas possam se transformar, quase que apenas, em centros de certificação de títulos, cursos e níveis de ensino;

j) Ampliação do modelo de ensino híbrido, com fragmentação do ensino; tendência de guetificação de grupo de alunos; maior individualismo, competição, gamificação, skinnerização e meritocracia que seguem o ideário neoliberal. Ao inverso, tendência para uma maior dificuldade para formação coletiva, sociabilidade e organização social e comunitária.

k) Tendência de des-reponsabilização da escola a partir do ensino-aprendizagem mais centrado numa lógica do aprendizado contínuo (Lifelong Learning) também fora da sala de aula.

Estes riscos e tendências, evidentemente, não são processos inexoráveis. Os questionamentos e as resistências à lógica produtivista de uma Educação desvinculada da preocupação real pela melhoria da Educação está se ampliando, assim como a disposição para se construir uma formação cidadã que nos leve a percorrer caminhos diferentes em nossa sociedade.

 

9 - O que fazer diante dessa realidade?

O contexto em que vivemos no Brasil em 2023, após superar os momentos duros da Pandemia e de ameaças mais forte e concretas do fascismo e do desmonte das políticas públicas, executadas pela extrema-direita em todas as áreas no país, em especial da Educação e, diante das tendências, ameaças e riscos ainda presentes e, em parte listadas acima, é necessário pensar, discutir e apontar, ao menos, alguns caminhos. Não apenas para resistir, mas ir adiante, também formulando e colocando em movimento, ações críticas e contra-hegemônicas, a favor dos trabalhadores e da maioria da nossa sociedade. Assim, esse ensaio será finalizado com a indicação de algumas sugestões iniciais, para que elas possam ser discutidas no âmbito da organização dos trabalhadores da educação enquanto estratégias e mobilizações:  

a)        Acompanhamento, análise e avaliação crítica do processo de plataformização da educação com a implantação e uso crescente das Plataformas Digitais Educacionais nas escolas. O mecanismo de monitoramento pode envolver educadores, pais e alunos (em especial do Ensino Médio) e deve seguir levantando dados sobre os tipos de plataformas educacionais utilizadas no Paraná, outros sistemas de educação estaduais, escolas privadas e outros níveis e tipos de ensino (EaD, Ensino Tecnológico e Profissionalizante, etc.). Reunir depoimentos, registros e avaliação dos educadores, pais e alunos sobre a implantação e utilização das PDEs em escolas de diferentes regiões e municípios por tipos de direção, gestão da escola (período integral e parcial) e ensino: Fundamental e Médio e por vinculação às diferentes disciplinas. Constituir banco de dados sobre as empresas (e seus donos) proprietárias das PDEs (as EdTechs) por tipo e valor dos contratos, feitos junto à Secretaria Estadual de Educação. Acompanhamento dos valores efetivamente gastos pelo poder público para a contratação, licenciamento (assinatura) para uso das PDEs. Organizar banco de dados sobre problemas e soluções identificadas para o uso sistemático destas PDEs, assim como os mecanismos de by-pass adotados por professores e alunos para fugir ao controle dos sistemas e algoritmos sobre o trabalho docente e rendimento dos alunos. Identificar e registrar de forma clara os processos de precarização e espoliação do trabalho educativo decorrentes do uso das PDEs. 

b)     Constituição de um acervo gerado a partir deste levantamento permanente de dados e indicadores referentes à plataformização poderão compor uma espécie de Observatório da Plataformização da Educação, coordenado por um comitê ou, até eventualmente, por uma institucionalidade mais robusta tipo fundação ou instituto a partir de avaliação da categoria e direção do sindicato. 

c)     Ampliação do conhecimento dos educadores, pais e alunos, sobre o que representa o avanço da plataformização da educação, da forma como vem sendo conduzida, para todas as partes envolvidas. O objetivo deste trabalho poderá ser o aumento da mobilização para uma maior pressão junto à gestão do sistema de educação estadual, no sentido de garantir mecanismos de auscultação permanente e participação dos educadores, pais e alunos nas decisões sobre a implantação destas plataformas digitais educacionais na rede pública. 

d)       Definir como premissa das pesquisas, investigações e dos registros, a identificação da hipótese do crescimento da fragmentação, individualismo ou individualização, skinnerização e redução da capacidade de reflexão na avaliação do processo de plataformização. Nessa linha também ter como direção a observação do avanço dos gastos com a plataformização, a terceirizações e privatizações do trabalho (mentoria e tutoria), serviços e estruturas das escolas do sistema. 

e)       Trabalhar com a hipótese de desenvolver plataformas educacionais sustentadas em direções e perspectivas distintas da maioria dessas que estão sendo disponibilizadas. Que projetem a perspectiva alternativas de uma educação por projetos transdisciplinares e multidisciplinares e com uso de formas e fórmulas de integrar e não dispersar e fragmentar a construção do conhecimento; e também com a perspectiva de ampliar a sociabilidade consorciada (digital e presencial ou fidigital) e a organização comunitária. 

Para fechar, em síntese, uma sugestão bastante interessante feita pelo professor Cleiton Denez, secretário executivo de Formação Pública Sindical e Cultura, no curso do debate no seminário da APP Sindicato, para lema da estratégia de mobilização e de superação da realidade atual e constatada. Parodiando o geógrafo Milton Santos, num dos seus livros “Por outra globalização” [24], Denez sugeriu um excelente mote de campanha: “Outra plataformização é possível!”.

 

10 – Considerações finais: “outra plataformização é possível!”

Pelo exposto aqui nesse ensaio, é possível sustentar que o processo de Plataformização da Educação tem similaridades com aqueles que estão se desenvolvendo noutros campos de atividades entre causas e consequências diversas, mas também algumas particularidades. A análise sobre a dimensão do trabalho e sua organização diante do incremento do uso das plataformas digitais, necessita ser melhor estudada e aprofundada, em especial no que diz respeito às consequências para a classe trabalhadora que está sendo fortemente impactada com o avanço da digitalização e da financeirização no mundo contemporâneo. O trabalho e o trabalhador estão sendo deslocados e enormemente pressionados, para uma condição de extração de ainda mais valor.

O campo da Educação não pode ser investigado apenas como atividade econômica e/ou como um tipo específico de serviço que agora se utiliza das plataformas digitais como instrumento, mas como um trabalho vinculado ao processo civilizatório e ideológico de grande interesse da classe trabalhadora. Os educadores dependem do seu trabalho para sobreviver, enquanto classe, mas também enquanto trabalhadores, são aqueles que constroem o conhecimento e têm responsabilidades para a formação das novas gerações de trabalhadores.

Ao levantar e analisar os movimentos ligados às PDEs que produzem o fenômeno da Plataformização no campo da Educação, é importante que se identifique as EdTechs como negócios de tecnologia digital na área de educação que vendem o discurso da modernização, da otimização da aprendizagem e da redução de custos e do papel do Estado. Nesse sentido, a lógica da plataformização agiliza e disponibiliza os fluxos de informações, mas não garante interação e a formação dos sujeitos. Essa lógica tem levado à fragmentação que ao contrário do desejado, tem reforçado as dificuldades de aprendizagem.

Tratam-se de processos que podem servir bem aos negócios do e-commerce/marketplace, a alguns serviços, mas não servem como solução única, ao processo que exige interação social como é o caso da Educação. A fragmentação amplia as dificuldades para a reflexão e elaboração do pensamento reflexivo e crítico que exige múltiplas atenções, conexões e capacidade de formulação para interpretação e inter-relação entre os fatos. 

Conhecimento é o inverso da fragmentação. O ser humano não pode ser meio e sim o sujeito com capacidade de leitura, reflexão e interpretação. Até a etapa do Ensino Médio, como parte da Educação Básica, é difícil aceitar e imaginar o processo educacional apartada ou com reduzida sociabilidade pessoal.

Após a Pandemia, se percebe que a Educação vem sendo empurrada, diuturnamente, para o modelo híbrido, quase que como discurso único e sem alternativas. A pandemia ajudou a nos encaminhar para um modo mais individualista de ser e de viver com menos interações sociais presenciais. Porém, a Escola precisa permanecer sendo um Espaço em que se aprende mais com o convívio no ambiente de aprendizagem do que com o conteúdo e apenas através da relação professor-aluno ou aluno-máquina cibernética. É preciso enfrentar com todas as forças, a fragmentação, a dispersão e o sentimento de distopia. As PDEs podem servir de auxílio a esse processo, como complemento, mas nunca de substituição.

As máquinas cibernéticas têm mais habilidades para analisar e processar enormes volume de dados. Elas podem dar ao sujeito opções de escolhas, para os quais os educandos precisam ser preparados para decidir e escolher caminhos.

Ninguém quer ser comandado por aplicativos e algoritmos, muito menos os professores e os nossos alunos. Os donos de plataformas e startups estão em sua maioria desenhando sistemas para extrair mais valor de interfaces cibernéticas que incluem o ML, IA e ChatGPT como modelos sofisticados de linguagem.

Além de tudo isso, não é admissível a covardia em submeter os estudantes desta mesma geração, que acabou de sair de um longo período de isolamento e com diversos problemas de aprendizagem, socialização e pressões mentais e transforma-los num depositário de experimentos tecnológicos a serviço do capital. Deve-se ter a clareza que os aplicativos e as plataformas digitais não são um problema em si. Não se deve repetir os ludistas que tentaram quebrar as máquinas no início da revolução industrial, a saída agora também não é quebrar os computadores e jogar fora os celulares. O grande problema é o uso da tecnologia controlado por grupos empresariais e financeiros que sob uma lógica neoliberal, passam a querer dirigir os sistema de educação.

O papel da ESCOLA tem que ser cada vez mais, o de preparar o SUJEITO para desenvolver o pensamento crítico. Pensamento crítico significa conhecimento e habilidades para manter o protagonismo e a capacidade de escolhas do ser humano (educando). Os sujeitos podem receber e se interagir com as máquinas cibernéticas e com os algoritmos, em vez de apenas receberem ordens destes. Assim, coletivamente é possível entender que ao contrário do que se pode imaginar, o papel do ESCOLA se amplia e deve ser ainda mais essencial, ao invés dessa visão de descarte paulatino do educador e da escola, quase que apenas para certificação. Outra plataformização inclusiva, participativa e com ideário coletivo, solidário e transformador é possível, assim como um outro mundo também é possível. Sigamos na luta e em frente!

 

Notas e referências:

[1] Encontro temático “Tempos Digitais" com mesa-redonda intitulada “Plataformização na Educação”, organizado pelo Laboratório Formação em Docências no Ensino Superior (GIZ-PROGRAD-UFMG) e Pró Reitoria de Graduação da UFMG, em 21 de maio de 2021. O encontro temático teve a abertura da pró-reitora de Graduação, professora Benigna de Oliveira e a mesa-redonda foi mediada pelo educador Marcos Vinícius Tarquínio (UFMG), coordenador do LabDocências-UFMG e contou com a minha participação e dos professores-pesquisadores, Marcos Alves (UFMG) e Leonardo da Cruz (UFPA). A gravação do evento pode ser vista neste link: https://www.youtube.com/watch?v=vOYlyQWbfF4

[2] Um texto com a síntese da minha participação e título Plataformização da Educação foi publicado no meu blog e no Portal 247 no dia 25 de maio de 2021. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2021/05/plataformizacao-da-educacao.html

[3] PESSANHA, Roberto Moraes. Inovação, financeirização e startups como instrumentos e etapas do capitalismo de plataformas. In. Geografia da Inovação: territórios, redes e finanças. P.433-468. Rio de Janeiro. Consequência, 2020.

[4] CASTELLS, M. A sociedade em rede. Paz e Terra: São Paulo. 2002.

[5] A expressão “vampirismo digital” representa a substantivação de fenômenos observados em que se pretende apreender e debater os significados desses processos e fenômenos em curso e não a construção de conceitos e/ou categorias para uma análise teórica mais profunda, embora igualmente válida. A expressão “vampirismo digital” aparece no ensaio como símbolo da extração de renda e valor exercida pela tecnologia digital. O termo é mais comentado num outro texto:

PESSANHA, Roberto Moraes. Commoditificação de dados, concentração econômica e controle político como elementos da autofagia do capitalismo de plataforma. Revista ComCiência do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e SBPC. Disponível em: <http://www.comciencia.br/commoditificacao-de-dados-concentracao-economica-e-controle-politico-como-elementos-da-autofagia-do-capitalismo-de-plataforma/>.

[6] PESSANHA, R.M. Disputa no e-commerce de varejo no Brasil: entre o intangível do digital e a materialidade da infraestrutura de logística. In: Marcas da Inovação no Território, Vol. II (P.45-71). Editora Letra Capital. Rio de Janeiro. 2020.

[7] GROHMANN, Rafael. Plataformização do trabalho: características e alternativas. In: Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. BoiTempo. São Paulo, 2020.

[8] SRNICEK, N. Valor, renda e capitalismo de plataforma. Revista Fronteiras – estudos midiáticos. Vol. 24 Nº 1. Janeiro-abril 2022. Disponível em: https://revistas.unisinos.br/index.php/fronteiras/article/view/24920

[9] THOMPSON, E. Costumes em comum: estudos sobre cultura popular tradicional. Companhia das Letras. São Paulo, 1998

[10] HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: BoiTempo, 2005.

[11] Artigo de Giuseppe Luca Scafiddi publicado em 17 fev. 2020, no portal Outras Palavras. Cronofagia: O roubo do tempo, sono e ideias. Disponível em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/cronofagia-o-roubo-do-tempo-do-sono-e-das-ideias/

[12] CRARY, Jonathan. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. Ubu. São Paulo, 2016.

[13] CRARY, Jonathan. Terra arrasada: Além da era digital rumo a um mundo pós-capitalista. Ubu. São Paulo, 2023.

[14] MOROZOV, Evgeny. Big Techs: A ascensão dos dados e a morte da política. Ubu Editora. São Paulo, 2018.

[15] ABSTARTUPS. Associação Brasileira de Startups. Disponível em: https://abstartups.com.br/

[16] Distrito. Consultoria em startups. Disponível em: https://distrito.me/startups

[17] Pesquisa da UFMG/CNTE sobre o trabalho docente da rede pública pela via digital aponta precariedades, intensificação e baixa participação dos estudantes. Divulgada no Portal 247, em 16 de julho de 2020 com o título: Ensino digital na pandemia: precariedades e baixa participação dos estudantes. Disponível em: https://www.brasil247.com/blog/ensino-digital-na-pandemia-precariedades-e-baixa-participacao-dos-estudantes. Em meu blog, 16 de julho de 2020, comentei alguns dados e indicadores dessa pesquisa com um texto com o título: Pesquisa da UFMG/CNTE sobre o trabalho docente da rede pública pela via digital aponta precariedades, intensificação e baixa participação dos estudantes. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2020/07/pesquisa-da-ufmgcnte-sobre-o-trabalho.html

[18] A expressão skinnerização é a leitura de um processo deriva das ideias do psicólogo behaviorista americano Burrhus Frederic Skinner. B. F. Skinner foi professor na Universidade Harvard de 1958 até sua aposentadoria, em 1974. Skinner considerava o livre arbítrio uma ilusão e ação humana dependente das consequências de ações anteriores. Para Skinner a educação devia ser planejada passo a passo, de modo a obter os resultados desejados na "modelagem" do aluno. Em síntese, Skinner acreditava na possibilidade de controlar e moldar o comportamento humano.

[19] CGI. COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL – CGI.br. Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR - NIC.br. Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação – Cetic.br. Disponível em: https://cgi.br/publicacao/pesquisa-sobre-o-uso-das-tecnologias-de-informacao-e-comunicacao-nas-escolas-brasileiras-tic-educacao-2021/

https://cgi.br/media/docs/publicacoes/1/20220929112852/educacao_em_um_cenario_de_plataformiza%25C3%25A7ao_e_de_economia_de_dados_problemas_e_conceitos.pdf

https://cgi.br/media/docs/publicacoes

 [20] Mapeamento das Ed Techs 2022: https://abstartups.com.br/wp-content/uploads/2022/11/MAPEAMENTO-EDTECH-1.pdf

[21] BRITO, Carina. Revista Pequenas Empresas e Grandes Negócios (PEGN), em 05 Julho 2023. Edtech Teachy capta R$ 8 milhões em rodada pré-seed. Investimento foi liderado pela NXTP e teve participação da Roble Ventures. Plataforma lançada neste ano tem o objetivo de facilitar o trabalho dos professores. Disponível em: https://revistapegn.globo.com/startups/noticia/2023/07/edtech-teachy-capta-r-8-milhoes-em-rodada-pre-seed.ghtml

[22] DOWBOR, L. O capitalismo se desloca: novas arquiteturas sociais. Ed. Sesc. São Paulo, 2020.

[23] DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: BoiTempo, 2017.

[24] SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Record. Rio de Jan


[1] Pesquisador e professor titular aposentado do Instituto Federal Fluminense, doutor pelo Programa de Políticas Públicas e Formação Humana, PPFH-UERJ.

segunda-feira, maio 29, 2023

"A Margem Equatorial Brasileira: uma região em disputa", por Francismar Cunha

 

A Margem Equatorial Brasileira: uma região em disputa

Francismar Cunha Ferreira[1] 


Um debate que vem sendo pautado nas últimas semanas consiste na nova fronteira petrolífera brasileira na região da chamada Margem Equatorial do Brasil. Uma região que parte do litoral do Amapá até ao Rio Grande do Norte formada pelas bacias Foz do Amazonas, Pará-Maranhão, Barreirinhas, Ceará e Potiguar (ver mapa abaixo) indicada como o “novo pré-sal brasileiro” em função das possíveis volumosas reservas de petróleo.

A exploração de Petróleo e gás na Margem Equatorial não é nova, desde a década de 1970 tem-se o desenvolvimento de atividades exploratórias na região. Foram centenas de perfurações em águas rasas (profundidade d´água entre 0 (zero) e 300 metros) realizadas pela Petrobras e também por petroleiras privadas como BP, Esso (ExxonMobil), Devon Energy, entre outras. Com exceção das bacias do Ceará e Potiguar, as demais não apresentaram descobertas de petróleo em escala comercial e com isso, muitos poços acabaram sendo abandonados.

Entretanto, novas pesquisas exploratórias, agora em águas profundas (águas oceânicas situadas em áreas com lâmina d’água, em geral, entre 300 metros e 1.500 metros) e ultraprofundas (águas oceânicas situadas em áreas com lâmina d’água, em geral, acima de 1.500 metros), indicam a possibilidade de novas descobertas na região. Essa hipótese é reforçada com a descoberta feita em 2013 pela Petrobras na bacia Potiguar no chamado poço Pitu (o poço atingiu a profundidade final de 5.353 metros e constatou uma coluna de hidrocarbonetos de 188 metros) bem como as descobertas recentes em águas profundas na Guiana, Suriname e Guiana Francesa.

Por outro lado, no interior da Margem Equatorial tem-se uma série de ambientes vulneráveis e singulares como o grande sistema de recifes da Amazônia, o Atol das Rocas, Fernando de Noronha, manguezais nas áreas costeiras, além de grande diversidade marinha e de proximidade com terras indígenas, em especial no Amapá e no Ceará (ver mapa abaixo). Toda essa singularidade e vulnerabilidade ambiental e territorial acaba, de certo modo, sendo ameaçada pelos avanços da indústria petrolífera na região.

Pelo fato se tratar de uma região ambientalmente frágil é que os processos de licenciamento ambiental na região voltados para a exploração de petróleo e gás são complexos e cercados de acalorados debates acerca da viabilidade ou não de exploração de petróleo na região. É nesse contexto que se tem a discussão recente entre Petrobras e IBAMA acerca do processo de licenciamento para a perfuração exploratória na bacia Foz do Amazonas. Essa discussão parte de duas frentes básicas, uma primeira ligada a dimensão econômica que parte do princípio do aumento das reservas brasileiras o que seria estratégico para o país bem como acarretaria em rendas petrolíferas destinadas a Estados e Municípios da região. A segunda dimensão é a ambiental que indica que a exploração na região é inviável em função da preservação de um ambiente singular e vulnerável e também que não se justifica a busca por mais petróleo em um contexto em que o mundo acena para a transição energética, menos dependente do petróleo.

O que se tem até o momento é o indeferimento do processo de licenciamento ambiental da Petrobras por parte do IBAMA para a realização de perfurações na bacia da Foz do Amazonas. O órgão indicou, dentre outras coisas, que a Petrobras não teria apresentado garantias suficientes de atendimento adequado em caso de acidentes com derramamento de petróleo. Decisão semelhante, em certa medida, já havia sido realizada pelo órgão em relação à petroleira francesa Total Energies que também operava blocos exploratórios na região até 2020.

A Petrobras manifestou, no último dia 24/05, que irá recorrer da decisão do IBAMA e que irá buscar protocolar ‘medidas adicionais’ para tentar a liberação da exploração junto ao órgão e assim realizar perfurações nas águas profundas e ultraprofundas no litoral do Amapá (ver mapa a seguir). Contudo, o que chama a atenção é que a Petrobras não é a única operadora presente na região. Na Margem Equatorial encontra-se atualmente além da Petrobras, outras sete operadoras que são: as multinacionais Shell, BP, Murphy e Chariot, além das brasileiras Prio (antiga PetroRio), Enauta e 3R Petroleun (Ver mapa a seguir). Além dessas petroleiras, tem-se ainda outras que compõem consórcios com as operadoras citadas que são: Total Energies que possuiu percentual de participação em blocos operados pela Petrobras na bacia da Foz do Amazonas, a Galp que detém participações em blocos operados pela Petrobras na Bacia de Barreirinhas, a Sinopec que possui participações em blocos operados pela Petrobras na Bacia Pará-Maranhão e por fim, a Mitsui e a Aquamarine Exploração que compõem parceria em blocos operados pela Shell na bacia de Barreirinhas.

 


Sendo a região uma nova fronteira petrolífera, as pressões de caráter econômico, político e até mesmo geopolítico deverão ser intensas a fim de possibilitar a exploração na região. Abrir para uma petroleira que venha identificar grandes reservatórios poderá ser o caminho para outras também se aventurarem nessa empreitada, o que aumenta os riscos de impactos irreversíveis na região uma vez que se trata, conforme indicado, de uma área ambientalmente singular e vulnerável.

Nesse contexto, não se trata somente de permitir ou não a exploração na região, o debate necessita ser maior por parte de todos os agentes envolvidos na região da Margem Equatorial que são basicamente a Petrobras, o Estado, as petroleiras privadas, as comunidades locais, os pesquisadores, entre outros.

Por parte da Petrobras o que seria mais viável no momento? Buscar mecanismos para remontar a companhia após a desintegração da mesma promovida pela privatização de ativos estratégicos (transporte, refino e distribuição) de modo que a torne novamente uma companhia integrada de energia ou buscar novas reservas e reafirmar a condição direcionada pela gestão anterior em fazer da Petrobras somente uma exploradora de petróleo? Por parte do Estado (governo Federal, ANP, IBAMA e outros órgãos e instituições públicas) deve ser debatido se o atual aparato regulatório ambiental e do setor de petróleo e gás é adequado e seguro o suficiente para ser utilizado em uma área que é ambientalmente singular e sensível. Além disso, faz-se necessário garantir que decisões e ações de fiscalização e controle que crivam sobre as atividades petrolíferas na Margem Equatorial não tenham exceções e flexibilizações que possam eventualmente beneficiar as petroleiras e colocar em risco as riquezas ambientais, territoriais e até mesmo culturais da região. Cabe ainda por parte do Estado, não somente deliberar acerca da exploração de petróleo na região, mas desenvolver um plano robusto para alavancar a transição energética.

Por fim as petroleiras privadas que se encontram na região, muitas multinacionais inclusive. Essas empresas realmente possuem preocupação com o meio ambiente ou apenas querem acesso às possíveis reservas para valorizar seus capitais? A segunda possibilidade parece ser, em um primeiro momento, prioridade, afinal, se essas empresas tivessem reais preocupações com o meio ambiente e o território, buscariam atender minimamente as condicionantes determinadas pelo IBAMA nos processos de licenciamento, por exemplo. Entretanto, o que foi percebido ao longo do tempo é que elas acabam cedendo o direito de exploração para outras petroleiras ou até mesmo devolvendo os blocos exploratórios para a ANP, pois até o momento, se mostram incapazes de apresentar em um processo de licenciamento as condições que garantam a proteção ao ambiente em geral. Esse movimento pode ser exemplificado pelos casos da BHP, Total Energies e a BP que desistiram da condição de operadoras em blocos exploratórios na região por não atenderem as condições determinadas no processo de licenciamento junto ao IBAMA, além disso, têm-se os casos da antiga OGX e da colombiana Ecopetrol que acabaram devolvendo seus blocos porque não conseguiram licenciar as áreas.

Em resumo, trata-se de um processo amplo e complexo que faz da Margem Equatorial uma região em disputa. Seu debate não pode se restringir ao campo discursivo restrito a dualidade pode ou não explorar. Existem múltiplas dimensões ambientais, políticas, econômicas, energéticas, territoriais, culturais que carecem de aprofundamento. É uma equação de difícil equilíbrio e que sua resolução não deve ser resolvida de maneira apressada. De todo modo, o que se espera é que não ocorram flexibilizações e exceções de nenhuma natureza que possibilitem a exploração na região de maneira irresponsável, que possa comprometer o meio, seja em favor das petroleiras privadas que buscam somente se apropriar de rendas petrolíferas, seja para Petrobras. Aliás, essa última, apesar de ter uma gestão empresarial, ainda é majoritariamente controlada pelo Estado, esse que deve ter, no mínimo, compromisso com seu povo, seu território e seu meio, logo, necessita considerar toda a complexidade e sensibilidade envolvida no contexto da Margem Equatorial bem como o contexto econômico, político e ambiental em que estamos inseridos atualmente.


[1] Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Desenvolve pesquisas na área de geografia econômica com ênfase na indústria do petróleo.

quarta-feira, maio 24, 2023

As artérias digitais escancaradas da América Latina

Estou fechando uma etapa de pesquisa (com texto encomendado) que analisa a infraestrutura digital no Brasil e AL, especialmente, entre cabos submarinos e datacenters, cujos indicadores contribuem para reforçar a interpretação sobre a potência da materialidade da digitalização e sua ação sobre a construção social no território.

Aquilo que no senso comum acaba sendo mais conhecido por uma falsa virtualidade imaterial da conectividade e sociabilidade digital das redes sociais, com informações online, entretenimentos com usos de streamings; fake news que geram a manipulação política, etc. há uma colossal e potente infraestrutura material controlada por grandes corporações e capitais de riscos dos fundos financeiros.

É nesse campo que tem se desenvolvido o fenômeno, que junto a outros pesquisadores, tenho chamado de dominação técnico-digital em aliança à hegemonia financeira e sob a égide do neoliberalismo, como "tripé do capitalismo contemporâneo".

Hoje, o mundo tem cerca de 5 centenas de ramais de cabos ópticos submarinos que hoje duram em torno de 25 anos, após instalados. Há quase 3 décadas 50% da comunicação e transmissão de dados era 50% por satélites e 50% por cabos. Hoje, esse percentual de uso dos cabos subiram para 95%.

Sobre a expressiva infraestrutura digital que controla esse processo de dataficação na AL, existem atualmente quase 7 dezenas de sistemas (ou ramais) de cabos submarinos, a maioria interligando aos EUA. 40% do tráfego da AL é internacional sendo 90% para os EUA, enquanto a conectividade inter-regional na AL é de apenas 20% e na Europa e Ásia de cerca de 50%.

Espanta ainda, o fato que entre 15 ramais de cabos submarinos que atendem o Brasil, 8 entraram em operação últimos 6 anos, metade tem destino dos EUA e seus donos são Big Techs (Google e Facebook). Um 16º ramal do cabo Firmina de propriedade da Google terá 14,5 mil km de extensão interligando Brasil, Argentina e Uruguai aos EUA e entrará em funcionamento até o final desse ano. Processo e estratégias de um colonialismo digital e de um extrativismo Hi-Tech.

A centralidade dos EUA só não é maior por conta da decisão da Dilma, depois do caso da espionagem digital da NSA, denunciada por Snowden, que fez surgir 3 ramais de cabos diretos para Europa, passando pela África.

Outro destaque nessa pesquisa (com texto sendo finalizado) é a condição de Fortaleza, no litoral do Ceará como o principal hub nacional de cabos submarinos, que em função de sua localização, está servindo de base (território de passagem) para 11 dos 15 ramais de cabos ópticos que hoje atendem o Brasil e dali segue para outros países e continentes.

Extrativismo Hi-Tech, apropriação, dependência e subordinação que se expandem com a digitalização e a dataficação e se somam ao extrativismo anterior dos minerais e recursos da natureza, repetindo a leitura feita pelo grande escritor Eduardo Galeano, há mais de meio século, agora, não mais pelos portos, mas através das "artérias digitais escancaradas da AL".

PS.: Em breve estará disponível o texto na íntegra.

sexta-feira, maio 05, 2023

O caos na acessibilidade, trânsito e transporte público de Campos,RJ tem história

Fiquei cerca de três meses fora de Campos, RJ e voltei há uma semana. Ao retornar encontrei o trânsito nas ruas da cidade ainda bem mais tumultuado que antes. A origem não parece simplesmente os problemas de recapeamento de algumas ruas principais, incluindo 28 de março e da interrupção prolongada do trecho da avenida 15 de novembro ou Beira-Rio. Vai também bem para além dos horários de pico e de regiões da área central. Há claramente questões estruturais acumuladas ao longo de décadas na questão urbana que cada vez produzem mais desgastes e cobram uma conta maior.

Avenida 28 de Março. Crédito: PMCG.

Tudo isso me fez recordar o longo ano de 2005. Na ocasião, estive por um período como vice-presidente do Conselho Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo (CMMAU) do município, como representante da sociedade civil. Nessa condição os membros do CMMAU foi conversar com o prefeito, recém-eleito, Carlos Alberto Campista em seu gabinete.

A pauta envolvia várias questões de planejamento urbano e ambiental, preocupações de curto e médio prazo e necessidades, tanto de revisar alguns arcabouços legais que cabem ao município, quanto propor uma intervenção mais corajosa do Executivo usando recursos dos royalties, para dar conta daquilo que parecia não estar sendo percebido pelas autoridades.

Um desses pontos apresentados era sob o fato que no município de Campos dos Goytacazes, naquele distante ano de 2005, já sofria um aumento anual no número de carros registrados da ordem de 5 mil novos veículos e tinha acabado de superar a marca dos 100 mil licenciados junto ao Detran para transitar. Os números espantavam. Eu já havia tratado dessa estatística num dos artigos que escrevia semanalmente em jornal local.

O prefeito Campista, como era de seu costume, sempre muito direto e objetivo, me indagou de chofre: Roberto, de onde você tira esses números? Eu respondi, ora, prefeito se tratam de dados oficiais do Detran-RJ que, já naquela época, como órgão público estadual, tinha começado a disponibilizar suas estatísticas, a despeito de outros problemas. Era um período, em que a economia do país começava a crescer e deslanchar, o que indicava que o problema tendia a aumentar.

Na ocasião falei que esses números de veículos registrados em Campos não conseguiam alcançar os carros novos vendidos nas concessionárias e que saíam emplacados (na maioria das vezes de forma irregular) no estado vizinho do Espírito Santo, por conta da alíquota menor do IPVA. Na época, em pesquisa informal, em algumas concessionárias, gerentes me diziam que quase 70% dos carros novos eram emplacados no ES.

No diálogo com o prefeito Campista, falamos de forma geral e numa espécie de tempestade cerebral de várias alternativas possíveis. Aberturas de vias de escoamento nos entornos (perimetrais do núcleo urbano mais central), a necessidade de aperfeiçoar o transporte coletivo e público que não era bom, mas estava longe do caos que vem tombando nesses últimos anos no município e ainda a abertura de ciclofaixas nas avenidas urbanas, para além daquela primeira e única - infelizmente no canteiro central - da avenida 28 de março.

Campos, já vivia uma espécie de dupla centralidade comercial e bancária: a área histórica e outra na região da Pelinca. Assim, já se intuía que elas se interligariam, tendo a rodoviária e o antigo mercado municipal ao meio. Áreas ligadas por ruas estreitas e difícil de serem ampliadas. A nova ponte para Guarus, já tinha começado e jogar o trânsito de boa parte de Guarus também nesse centro nevrálgico e como imaginado o atravancamento do tráfego foi se adensando.

Duas décadas depois perdemos oportunidades e ampliou-se o problema  

Pois bem, muitas coisas se passaram nesse ínterim de quase duas décadas. O prefeito Campista, se mostrou disposto a tentar avançar em alguns destes desafios, mas logo depois foi retirado do cargo. Deu tempo de dar início à revisão do Plano Diretor, com debates públicos, mas o plano foi depois muito retalhado, a partir de instruções do Executivo da época e acabou bastante alterado na Câmara Municipal.

Nesse período o município recebeu mais de R$ 30 bilhões de royalties do petróleo. Algumas iniciativas saíram das intenções, como a da ligação da perimetral da avenida Artur Bernardes entre o trevo do índio, cruzando a avenida 28 de março e indo até à Uenf. Os prolongamentos das ruas Saldanha Marinho (Caldas Viana) e Formosa – Tte. Cel. Cardoso – Raul Escobar que ligaram os bairros do Turfe e Jóquei como alternativas paralelas à estratégica 28 de março. Uma nova ponte foi construída sobre o Rio Paraíba do Sul. Novas demarcações de ciclovias para além do centro urbano, mesmo que algumas limitadas e estreitas.

Porém, nada disso, está dando e dará conta, diante do crescimento do número de carros que circulam no município e que não para de crescer. Em abril de 2023, esse número em Campos já passou dos 254 mil, embora quase 30% disso sejam de motocicletas, o que reduz um pouco os impactos. Mas, de outro lado, o transporte público piorou demais ao longo desse tempo em Campos. Se formos considerar só o número de automóveis, exceto, ônibus, vans e caminhões, esse número é de cerca de 1 para cada 3 moradores do município.

Além disso, cresceu muito o número de vans, que se por um lado atende à demanda de transporte público, nas ausências absurdas e criminosa dos ônibus (um assunto que há muito vem sendo apontado). As vans também circulam de forma desordenada e em número crescente, assim como surgiram e circulam por todo o canto da cidade, os carros de aplicativos que também não param de crescer e entopem as vias centrais, reproduzindo demandas não atendidas do transporte público, mas também drenando uma renda local para uma empresa-aplicativo fora do país.

Quem sofre mais com tudo isso é a população mais pobre que precisa chegar às áreas centrais. Esses moradores foram sendo empurrados para morar em lugares cada vez mais distantes do trabalho e do estudo, que geralmente está localizado no miolo central da cidade.

Se, em 2005, esses trabalhadores, estudantes e moradores levavam 30 minutos para chegar ao centro dessa cidade de médio porte, hoje levam em torno de uma hora. Se moram nos distritos, muitos chegam a gastar uma hora e meia ou mais para vir e outra tanta para voltar. Sofrem também os moradores dos bairros mais próximos a essa região central caótica que deixam no trânsito o tempo que seria dedicado ao convívio da família, ao estudo, ao lazer, etc.

A melhoria do recapeamento nessas vias centrais e estratégicas, pode ser necessária, mas não enfrenta o problema crucial que depende de várias ações que ao longo do tempo - e ainda hoje -, vai sendo empurrada, a despeito do novo crescimento das receitas dos royalties do petróleo nesse município petrorrentista.

A Pandemia, escondeu durante dois ou três anos esses problemas. Porém, o desejado fim da Pandemia trouxe à tona - de forma ampliada e com mais vigor - o nosso grave problema da acessibilidade, do transporte público e do quase insuficiente planejamento urbano num município situado em região de planície e com uma longa história de vida na urbe.

Não sou e nem nunca fui técnico e especialista na área, mas ouvia sugestões de quem estudava o assunto e gostava de acompanhar soluções de políticas e planejamento urbano em outros municípios. Com o tempo, passei a me dedicar a estudos sobre outros temas, menos locais e/ou regionais, mas mesmo em que apenas nesse texto e no contexto de uma sociedade muito fragmentada (mais que polarizada), como cidadão resolvi provocar o assunto.  

Penso que a sociedade em sua totalidade precisa pressionar com maior veemência o poder público, para produzir ações estruturais e também aquelas mais urgentes. Essas devem atender prioritariamente à população que mais precisa dos governos, ou seja, às populações de baixa renda.

Não sei se o Conselho Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo ainda funciona. Há outras institucionalidades, organizações e movimentos sociais que poderiam atuar e se aprofundar nesse tema, saindo apenas da atuação em suas áreas de interesse, na medida que esse é um tema que, mesmo que de forma assimétrica, atinge a todos os setores e moradores do município.

Trata-se de um problema que afeta a economia, o ambiente e a sempre falada e relegada “qualidade de vida”, sendo, portanto, um problema de todos. O que faz também me recordar das duas conferências da cidade, realizadas com grande energia, debates e ainda um quê de utopia, no município de Campos dos Goytacazes em 2003 e 2005, sob o slogan “Uma cidade para todos” estipulado pelo Ministério das Cidades que tinha à frente Olívio Dutra e a professora Ermínia Maricato. Há que se enfrentar esse o desafio. Com a bola, os movimentos da sociedade, as universidades e as autoridades do município.

sexta-feira, abril 28, 2023

Perspectivas energéticas dos EUA, análise da consultoria Rystad Energy

A consultoria norueguesa, Rystad Energy, uma das mais conceituadas do setor global de O&G disponibiliza mensalmente um boletim com análise sobre a área. O review do mês de abril foi enviado hoje (28/04/23) e se trata de um artigo de autoria dos especialistas Claudio Galimberti e Emily McClain.

Os autores analisam o cenário do setor para os EUA e traz elementos interessantes para a compreensão da questão da transição energética em meio aos combustíveis fósseis (óleo e gás natural, o shale - xisto), a energia renovável e a re-eletrificação, os impactos na questão climática e o imbricamento financeiro global desta chamada transição energética.

Abaixo o blog disponibiliza o texto traduzido automaticamente.


Perspectivas energéticas americanas enquanto Biden busca um segundo mandato

A indústria de energia americana se encontrava na frente e no centro da corrida presidencial anterior. Com base em mercados de petróleo e gás muito mais calmos e equilibrados, o então candidato presidencial Joe Biden propôs reformas abrangentes que visavam afastar os EUA dos combustíveis fósseis para tornar o país um líder em fontes mais limpas e renováveis. Poucos meses depois de assumir o cargo, os mercados mundiais viraram de cabeça para baixo quando a Rússia invadiu a Ucrânia, colocando em questão a confiabilidade das rotas de abastecimento tradicionais em vigor há décadas.
Como o presidente Joe Biden anunciou formalmente seu plano de buscar a reeleição, o setor será novamente uma questão central, já que o Partido Republicano destacará o aumento nos preços da gasolina na bomba e tentará vinculá-lo às políticas do atual governo para o setor. Faltam aproximadamente 20 meses para as eleições federais, e a Rystad Energy acompanhará e analisará de perto as políticas econômicas de cada candidato líder à medida que a temporada de campanha começar. Mas, por enquanto, é muito seguro presumir que as mensagens de Biden sobre o setor serão muito mais sutis, dado o papel fundamental que o setor desempenhou em ajudar a equilibrar a oferta e a demanda globais, já que a Europa evitou os volumes russos.

A candidatura de Biden para um segundo mandato nos ofereceu o cenário perfeito para destacar nossa apresentação na recente audiência do Senado dos EUA sobre energia, na qual fomos convidados como peritos. Abaixo está um resumo do testemunho apresentado ao comitê, reaproveitado para a REview deste mês, nossa série mensal de liderança de pensamento.


Uma abordagem pragmática para a transição
A indústria global de energia está em um ponto de virada. Uma transição está ocorrendo em muitos de seus setores. Em algumas áreas – como veículos elétricos, energia solar fotovoltaica, energia eólica e baterias – o ritmo da mudança foi rápido e está ganhando força. Em outros, ainda não surgiram alternativas comercialmente competitivas ao petróleo e ao gás. O efeito líquido é que ainda não sabemos quão rápido e profundo será o processo de transição energética. Mas de uma coisa sabemos com certeza: a mudança já em andamento é implacável e não será como sempre.

Quinze anos atrás, a revolução do xisto levou a um ressurgimento da produção americana de petróleo e gás, desempenhando um papel crucial na satisfação da demanda doméstica e global de hidrocarbonetos. Isso ajudou a manter a oferta estável e, como resultado, os preços sob controle durante convulsões geopolíticas, como a Primavera Árabe. Nos últimos tempos, a invasão da Ucrânia pela Rússia foi talvez a ilustração mais poderosa de como as rotas de abastecimento de petróleo e gás podem ser interrompidas em questão de dias. Mais uma vez, o petróleo e o gás dos EUA têm sido essenciais para manter o mercado equilibrado e os preços sob controle.

De maneira semelhante, quando o petróleo começou a substituir o carvão como principal fonte de energia no século XX, os avanços tecnológicos foram lentos, mas seguramente integrando fontes de combustíveis renováveis ​​e não fósseis nos EUA e nos sistemas de energia globais. Assim como o carvão foi substituído pelo petróleo e pelo gás, as energias renováveis ​​e as tecnologias limpas emergentes estão posicionadas para retirar grande parte da pressão dos combustíveis fósseis nos próximos anos e décadas.

A transição energética é uma oportunidade única em uma geração para os EUA. Com movimentos estratégicos, como a Lei de Redução da Inflação – com seus incentivos direcionados para acelerar a formação de indústrias-chave de tecnologia limpa, como hidrogênio e CCUS – os EUA podem consolidar sua posição como uma superpotência energética. Inovações de ponta que fornecem energia limpa, acessível e confiável a residências e fábricas também contribuem para as metas líquidas zero dos EUA. Acreditamos que este é o momento para a América apostar na próxima evolução energética, impulsionada por energias renováveis, captura, armazenamento e utilização de carbono, hidrogênio e bateria e armazenamento de energia.

No entanto, a demanda por petróleo e gás não vai desaparecer no curto prazo. O estoque de capital associado ao consumo de energia leva tempo para ser reposto, enquanto os países emergentes buscam aumentar seu consumo per capita de energia com base em sua urbanização e industrialização. Os EUA são atualmente o maior produtor mundial de petróleo e gás, respondendo por 16% da oferta mundial de petróleo e 20% do gás natural. É também um dos fornecedores mais limpos e baratos. A produção dos EUA está no quartil inferior da intensidade de carbono upstream globalmente e na metade inferior em termos de custos de equilíbrio.

Portanto, se desinvestíssemos muito rapidamente no petróleo e no gás, o preço de ambos aumentaria. Ao focar nos EUA, também é essencial pensarmos nas implicações do mercado global. A Rystad Energy desenvolveu três cenários de transição usando modelagem proprietária: uma transição rápida, chamada –Sigma/1,6 DG, que limitaria o aumento da temperatura global a 1,6 DG; uma transição lenta, +Sigma/2.2 DG; e um meio-termo, Mean/1.9 DG.

Qualquer um desses cenários ainda é possível. A rápida implantação de energias renováveis ​​e VEs nos últimos cinco anos pode nos levar a pensar que estamos em uma transição rápida. No entanto, a extrapolação de tendências pode não conseguir compreender as restrições da cadeia de suprimentos, a necessidade de aperto regulatório para atingir essas metas e os prováveis ​​custos mais altos associados à transição rápida. Além disso, o domínio atual da China em alguns nós da cadeia de suprimentos de energias renováveis ​​pode ser um fator de risco se ocorrer uma redução drástica no comércio global. Da mesma forma, a atual falta de alternativas competitivas ao petróleo em setores-chave de demanda, como petroquímico, transporte rodoviário pesado e aviação, pode nos levar a pensar que o petróleo está em lenta transição, enquanto o avanço tecnológico pode rapidamente derrubar essas suposições.

Atualmente, pensamos que o cenário Médio talvez seja aquele com maiores chances de se concretizar para o petróleo. Nesse caso, o xisto dos EUA continuará sendo uma fonte de energia essencial pelos próximos 10 a 15 anos, mantendo os níveis atuais de produção de petróleo e aumentando o gás natural. Na transição lenta, a produção de xisto precisaria aumentar drasticamente para atender à demanda global. No entanto, se ocorrer uma transição rápida, a produção de xisto diminuirá rapidamente em resposta aos baixos preços de mercado.

Em conclusão, a transição é altamente incerta e as perspectivas para o petróleo e gás dos EUA podem ser drasticamente diferentes após 2030, dependendo do ritmo de desenvolvimento tecnológico e aceitação. Assim, agora é a hora de os EUA adotarem uma abordagem pragmática para a política energética, que aproveite a flexibilidade do óleo e do gás de xisto, ao mesmo tempo, em que defendem as energias renováveis, os prováveis ​​vencedores na futura ordem energética. Ao fazer isso, os EUA podem manter seu lugar como líder mundial da energia.


PS.: Este artigo mensal é conduzido por dois de nossos principais especialistas regionais, Claudio Galimberti e Emily McClain. Juntos, eles trazem insights profundos sobre os mercados de petróleo e gás para fornecer uma visão macro holística do setor e dos associados a ele. Claudio, Head of Americas Research, é especialista em previsão de demanda de petróleo, modelagem de preços de petróleo e transição energética, com mais de 20 anos de experiência em empresas como S&P Global Platts e Shell. Emily, vice-presidente de mercados de gás, oferece um profundo conhecimento dos mercados e preços de gás norte-americanos e globais. Sua experiência técnica em cargos anteriores na IHS Market, Williams e Shell oferece um histórico abrangente para nosso artigo de opinião mensal. Esta peça é apoiada pelos dados abrangentes e poderosos da Rystad Energy, mas os pontos de vista e opiniões são dos autores. Um de nossos principais autores, Claudio, foi acompanhado por um autor colaborador na edição deste mês:

Manash Gosvami
Vice-presidente, Analytics da Rystad Energy.

PS.:. Atualizado às 14:04 de 29/04/23.

sábado, abril 08, 2023

Além da era digital? Por Jonathan Crary.

Conheci o crítico americano Jonathan Crary em 2020, a partir do conceito de “cronofagia” como roubo do tempo de sono realizado pelas plataformas digitais com seus inúmeros aplicativos. Essas e outras reflexões do Jonathan já estavam no seu livro “24/7: Capitalismo tardio e fins do sono” que citei em alguns dos meus textos, sobre a plataformização no mundo contemporâneo. Crary é um crítico radical do uso indiscriminado da internet.

Na introdução de seu novo livro “Terra arrasada: Além da era digital rumo a um mundo pós-capitalista”, Jonathan defende um mundo off-line e a retomada da sociabilidade que não envolva a mercantilização em quaisquer de suas formas. Crary contesta a suposição generalizada de que as tecnologias de rede que dominam e deformam nossas vidas vieram para ficar e insiste no fato de que a chamada era digital e o capitalismo tardio são sinônimos e nenhum dos dois pode ser concebido sem o outro”.

Crary afirma mais: “uma ´internet socialista´ é tão impossível quanto o oximoro do ´capitalismo verde´... muitos esquecem que o socialismo de verdade depende do florescimento de relações não monetizadas ou instrumentalizadas entre as pessoas, ele não pode existir em meio às formas de separação, isolamento, competitividade e individualismo tóxico que são estimuladas on-line".

Independente de concordar - no todo ou em parte - com a radical crítica de Crary, a leitura deste livro vale muito. Estou ainda no início, mas garanto que suas análises e reflexões permitem ir mais a fundo na interpretação em várias dimensões e escalas sobre o fenômeno da digitalização e do capitalismo de plataformas.
 
Digitalização de quase tudo como nova etapa da reestruturação produtiva em que a ´fábrica´ no on-line do celular e/ou do notebook segue invadindo nossas casas e, de forma crescente e agressiva, vai tomando conta de nossas vidas. Entrelaçada e imbricada à financeirização (hegemonizada) e baseada no neoliberalismo, passam a constituir as três bases daquilo que tenho chamado, junto com outros pesquisadores, de “tripé do capitalismo contemporâneo”.

PS.: imagens: capa do livro editado pela UBU e (abaixo) entrevista com o autor publicada na P.1 e 2 do 2ª Caderno de O Globo, 08/04/2023. Para ver as imagens em tamanho maior clique sobre elas.

PS.: atualização às 23:24 de 09/04/2023:
Eu não comentei para ser uma breve resenha, mas o livro anterior do Crary, além da cronofagia, as análises radicais dele, me fizeram pensar no avanço que o capitalismo produz na apropriação do "tempo morto", conceito de Marx. A captura de dados (dataficação do extrativismo high tech) realizada durante o tempo de lazer (não trabalho), ou mesmo do sono (controlado pela supervisão digital dos smarphones), representa uma maior apropriação de valor e de acumulação, que só são possíveis pelo "regime 24/7 online" dos sujeitos. Nesse sentido, a cronofagia, possibilitada pelo capitalismo de plataformas (Appficação) é parte do processo de maior acumulação que se amplia com a digitalização de quase tudo, etapa contemporânea da reestruturação produtiva (em que a fábrica adentra nossas casas, lazer e vida), e que não deve ser analisada desgarrada da financeirização (que também amplia sua hegemonia), sob a égide da concepção neoliberal.




terça-feira, março 28, 2023

Globo S.A. um grupo cada vez mais financeiro

Os resultados da Globo S.A. 2022 confirmam que o grupo não retomou resultados de antes do golpe e continua uma holding financeira: lucro líquido=R$ 1,2 bi, inferior aos R$ 1,8 bi de 2017. Receita financeira=R$ 2,1 bi - Despesas financeiras R$ 1,48 bi= Resultado financeiro R$ 627 milhões.

Receita de publicidade cresceu 5%, ancorada publicidade digital e streaming Globoplay (+27% assinantes +30% receitas)+ R$ 2,7 bi de direitos exibição e transmissão. A Globo S.A. Reduziu o nº trabalhadores de todo o grupo para 13 mil (já teve 15 mil); pagou total de R$ 1,1 bi de salários e encargos, apenas 6% acima de 2021.

Evolução de resultados (lucro ou prejuízo) da Globo Comunicação e Participações S.A. entre os anos de 2017 e 2022:

2017 R$ 1,8 bi;
2018 R$ 1,2 bi;
2019 R$ 752 milhões;
2020 R$ 167 milhões;
2021 - R$ 173 milhões (prejuízo)
2022 R$ 1,2 bilhão.

domingo, março 19, 2023

Esquerda francesa tem chances de polarizar com Macron que radicalizou rigor fiscal

O embate político francês merece um olhar atento. A radicalização de Macron embutida na decisão de mexer nas regras da Previdência Social passando por cima das representações políticas eleitas tende a uma polarização.

Polarização diferente das que temos assistido, ultimamente, em diversas outras partes do mundo, puxada por uma extrema-direita que tende a um ultraliberalismo, mas antes de tudo levada por ressentimentos e por uma orientação antissistêmica, pautada mais por valores conservadores que por questões econômicas que ficam em plano inferior isolando a esquerda.  

Assim, parece que a chave [para um usar uma expressão em voga] da atual questão da França é que a decisão do Macron trouxe de volta, como essência e para o centro do debate, a pauta econômica e dos direitos sociais, abrindo um espaço enorme espaço para a esquerda.

A extrema-direita mundial, puxada pela alt-right americana, nesses últimos anos veio ganhando adeptos de forma crescente, basicamente, pela pauta dos valores que se vincula mais a um sentimento antiestrutural e antipolítica que atribui, de forma genérica, tudo de muito ruim ao sistema político, que por isso precisa ser alterado, gerando uma polarização assimétrica com a esquerda que passou a perder espaços.

A luta pelos direitos previdenciários e contra o arrocho dos direitos sociais é uma pauta concreta, fácil de explicar, e dá potência às forças progressistas, em especial no caso francês, quando nas últimas eleições, a direita alcançou "cerca de 57% dos votos dos assalariados e 67% dos votos dos trabalhadores braçais".

Nesse, sentido, numa primeira e ainda superficial leitura, a atual disputa na França, que deve chegar ao clímax nessa semana, tende a colocar novamente, frente a frente – e de forma polarizada - o discurso único do mercado e do neoliberalismo conservador e do outro lado a esquerda, deixando num plano secundário, a extrema-direita.

Sim, de um lado, os neoliberais que já internalizaram o dogma neoliberal de que os governos podem (ou devem) sacrificar a população para manter a questão fiscal, ao considerar que o problema crucial se trata do equilíbrio econômico, mesmo que as pessoas percam direitos e sofram mais. No outro lado e num embate coletivo e menos assimétrico, a esquerda com a defesa da proteção dos direitos dos trabalhadores e do estado de bem-estar. Ao contrário do que muitos dizem e pensam, essa polarização não é ruim, só rejeitado pelos neoliberais.

Nesse atual embate, a esquerda francesa será testada em sua capacidade de polarizar, junto à população, com o debate e o “discurso econômico único e sem alternativa”, algo que a extrema direta vinha assumindo não com a pauta econômica – até aderindo a ela e indo além em defesa de um ultraliberalismo -, mas ganhando adeptos com a pauta conservadora, argumentando que todos os problemas econômicos estavam na conquista de direitos das minorias, imigração, da igualdade de gênero, LGBTQIA+, cotas, etc., permitida pelos governos.

O discurso da extrema-direita, emulado pela tecnopolítica das plataformas digitais e mídias sociais, vem sendo o que esses “novos direitos permitidos” pelo sistema político, seriam a causa principal da deterioração das condições da classe média trabalhadora (sua base principal) que leva à redução de seus direitos em direção à base da pirâmide e não à ampliação da captura de renda e os ganhos crescentes dos bilionários e trilionários do andar de cima das finanças.

A esquerda francesa terá que ter a habilidade para, no interior do sistema político, trabalhar essa pauta econômica concreta, sem deixar de lidar com essas outras questões contemporâneas presentes em suas bases, mas fundamentalmente se diferenciando da extrema-direita, enfrentando e buscando soluções para as causas principais das desigualdades sociais atuais: a financeirização desregulada e desenfreada e a lógica neoliberal que busca o controle total do mercado.

domingo, março 12, 2023

A quebra do banco americano (SVC) é uma ironia antes de ser um paradoxo: feitiço e feiticeiro!

A quebra deste banco americano (Silicon Valley Bank) é uma ironia antes de ser um paradoxo. Como grande financiador de startups de tecnologia, não conseguiu usar a Inteligência Artificial (IA) e outras tecnologias digitais para identificar os riscos de suas intermediações financeiras.

O uso de IA pelos grandes fundos e bancos têm exatamente foco em complexa infraestrutura (TIC e dados) para, entre outras funções, exatamente, identificar e calcular riscos de seus movimentos de capitalização, especialmente a pirâmide de capital fictício. Usam simulações, modelagens, modelagens sobre modelagens, etc., mas, os algoritmos falharam! (sic)

O comentário de que os algoritmos falharam é uma ironia, porque os algoritmos seguem a direção de quem os programa. Mal ou bem.

De outro lado, o grau de abstração dessas modelagens tendem afastar, cada vez mais, a programação desses algoritmos e plataformas digitais, da gestão dos fundos financeiros e bancos no mundo real. Tudo isso se dá por conta do grande número de "inovações financeiras-tecnológicas" (papéis, títulos, derivativos, etc.).

Esses processos e estratégias usados pelos grandes financistas (donos dos dinheiros) aumenta a distância entre as bases da pirâmide do capital, sobre o que restou de economia real e o andar superior das altas finanças, exatamente onde se acumula o capital, hoje, em sua maioria, fictício.

Na prática, mais uma contradição do capitalismo que lembra a fábula entre o feitiço e o feiticeiro, nesses tempos em que está em curso, o "Tripé do capitalismo contemporâneo": reestruturação produtiva (fase da digitalização de tudo); a financeirização (já hegemonizada) e o neoliberalismo (avançando suas garras) com ampliação do controle do mercado sobre a política e a economia.

segunda-feira, janeiro 23, 2023

O ciclo de desemprego nas Big Techs: tecnologia, plataformização e captura do valor do trabalho

Ao contrário do que muitos pensam, a redução expressiva de funcionários das Big Techs que deve superar uma centena de milhares em todo o mundo, não retirará delas, o poder que exercem como empresas de infraestrutura digital. A Forbes fala (23/01) em quase 60 mil demitidos e diz que "as demissões nas big techs afetam mais de 200 mil pessoas nos Estados Unidos". [1]

Como tudo no capitalismo, trata-se de um ciclo que alterna suas fases de expansão (boom) e colapso. Nestas ocasiões ocorrem fenômenos que já são mais ou menos conhecidos, em especial me refiro aos Ciclos Sistêmicos de Acumulação (CSA) explicado por Giovani Arrighi desde 1997, a partir da Economia Política. [2]

Os altíssimos investimentos que as Big Techs receberam nos últimos anos, oriundos, em sua maioria, de grandes fundos financeiros, possibilitaram a expansão que a digitalização vista de forma mais clara na Pandemia.

O aumento do valor de mercado, que se quintuplicou neste curto período, antecipou a fase de sobrevalorização e sobreprodução dos serviços que elas oferecem a todos os setores da economia e à sociedade na totalidade.

Nesta virada de fases do ciclo da "indústria tech", essas “big companies” mantiveram e ampliaram a sua hegemonia em relação às demais, até porque elas conseguiram concentrar os aportes de capital dos investidores, sobre possíveis concorrentes, ampliando a concentração e o processo de dominação que exercem em todo o ocidente.

A partir desta fase de corte de investimentos, as Big Techs enxugarão seus custos (farão a famosa reengenharia, sic), mas certamente, manterão, ou até ampliarão, as suas taxas de lucro, mesmo que com isso estejam levando milhares de trabalhadores superqualificadas ao desemprego. Além das Big Techs, os setores de tecnologia da informação (TIC) de grandes corporações também estão sofrendo fortes demissões. Um corte transversal e similar à atuação deste setor na economia.

No médio prazo, a tendência é que parte desse pessoal de alta qualificação em TIC, desenvolva outras ideias (não nas garagens, sic) para lá adiante (nem tanto assim, pois os ciclos hoje são mais curtos) atraírem novos investidores de risco (venture capital), dentro dos processos hoje chamados de startupização. Aí estaremos seguindo o vaticínio do Lampedusa que dizia que algo precisava ser mudado para que, ao final, tudo permaneça do jeito que está.

O caso da "indústria" tech tem especificidades, em relação a outros setores da economia, mas no geral obedecem aos movimentos cíclicos do regime capitalista. Não esqueçamos disso.


A intensa relação entre dominação tecnológica-digital e a hegemonia financeira   
A tecnologia é transversal e com a digitalização de tudo, a demanda por essa infraestrutura continuará a crescer, mas em velocidade um pouco menor. Esse capital, que agora tende a ser atraído para outros setores, de alguma forma continuará a depender dessa gigante infraestrutura digital e assim voltará a puxar a "indústria tech" para nova fase de expansão, em um novo ciclo.

A valorização e a capitalização das empresas de tecnologia já cresciam e se multiplicaram, mas foi com a Pandemia, que houve uma explosão, que acelerou no tempo o ciclo de expansão levando a um pico sequer imaginado. No final de 2021, nove das dez corporações globais com maior de mercado, nove eram do setor de tecnologia e apenas uma do setor petróleo. [3]

Assim, na média, nos últimos cinco anos se pode dizer que o valor de mercado delas se quintuplicou, número aproximadamente igual ao fator multiplicador observado na contratação de empregados. Neste mesmo período, nas maiores Big Techs o número de trabalhadores do setor digital aumentou cerca de 600% e hoje estaria entre 150 mil e 200 mil funcionários em todo o mundo.

No atual "freio" de contratações derivado da redução de investimentos e do valor de mercado destas corporações, já se contabiliza que suprimirá mais que seis dezenas de milhares de empregos. Algo superior a um terço da mão de obra (ou braços e mentes de tecnologia), hoje, a serviço de todo o setor.

É um erro tentar investigar esse fenômeno desgarrado de outros no processo histórico e sem a leitura da Economia Política. Porém, é um equívoco ainda maior - e hoje cometidos por muitos – analisar esse processo sem considerar, a relação entre o desenvolvimento da tecnologia e a financeirização. A utilização do instrumento dos fundos financeiros (capital de risco e startupização, ou capitalismo sem risco) e numa lógica individualista, meritocrática e neoliberal. [3] [4]

Essa leitura mais totalizante permite que se compreenda melhor o que passei a chamar de dominação tecnológica que contribui para o avanço da hegemonia financeira e do ideário neoliberal.

Para aqueles que desejarem entender um pouco mais esse processo da intensa relação entre o avanço das Big Techs e a financeirização e as estratégias dos donos dos dinheiros nessa hegemonia, vou sugerir três séries que estão aí nos streamings, também empresas- plataformas e com dinheiro de investidores.

Em que pese o ar triunfalista dos roteiros - e às vezes caricatural -, mesmo com alguma crítica, os roteiros dão pistas claras de como foi se construindo essa relação entre a inovação, startupização e financeirização, em especial, a partir do Vale do Silício nos EUA: 1) Super Pumped: a batalha pela Uber (roteiro a partir do livro "A guerra pela Uber" de Mike Isaac, 2019, Intrínseca); 2) Som na caixa: a história do Spotify; 3) Batalha Bilionária: o caso do Google Earth.


Plataformização, IA e captura rentista do valor do trabalho
A redução do número de empregos nas grandes corporações de tecnologia e empresas-plataformas de mídias sociais é expressivo, e seus controladores seguem testando limites de cortes. O Twitter recentemente comprado pelo polêmico e direitista, Elon Musk, já está trabalhando com menos de um terço do número anterior de empregados, sem que ainda se perceba alterações maiores, a não ser no direcionamento feito pelos seus algoritmos que agora seguem novas orientações ideológicas.

Muito do trabalho dos trabalhadores demitidos é hoje executado pelas máquinas que eles mesmo programaram. O aprendizado de máquina e a Inteligência Artificial (IA) reprogramam os sistemas e exigem menor número de trabalhadores reais nestas empresas-plataformas. Aqui vale lembrar que tudo isso não deixa de ser criação e trabalho humano, porque as tecnologias sempre têm origem a partir do trabalho humano.

O desenvolvimento destas tecnologias, incluindo o “machine learning” (aprendizado de máquina) ou, o “deep learning” (aprendizado profundo), na prática, são forças produtivas e relações de produção "recheadas de geleias de trabalho humano" (Grohmann, 2020). [5]

Observando esse desenvolvimento em termos sistemas e numa perspectiva de totalidade, é possível afirmar que a plataformização do trabalho e das empresas vieram para ficar, independente da velocidade da implantação da tecnologia e de seus efeitos. Porém, o que não mudará será a necessidade de organização de quem a desenvolve, de forma a similar a quem dirige esse processo a partir do capital. Só a organização dos trabalhadores poderá fazer algum enfrentamento a esse processo e as estratégias nele embutido.

Ao dono do capital (investidores, donos dos dinheiros) e destas empresas-plataformas interessa a extração e captura do maior valor possível de todo esse trabalho desenvolvido pelo humano (trabalhador), que nos faz relembrar da existência permanente das classes sociais, dividida entre os proprietários e os trabalhadores.

Isso na essência não se transformou, a despeito do uso que todos fazemos da tecnologia como Infraestrutura transversal que atravessa as várias dimensões da vida em sociedade, assim como da economia e da política, como partes do regime que nos aprisiona.


Referências:

[1] Forbes em 23 jan. 2023. Quase 60 mil demitidos pelas bigs techs e os cortes continuam. Disponível em: https://forbes.com.br/forbes-money/2023/01/demissoes-pelas-bigs-techs-e-os-cortes-continuam/  

[2] ARRIGHI, G. A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis, Editora Vozes, 1997.

[3] Pessanha, Roberto Moraes. Inovação, financeirização e startups como instrumentos e etapas do capitalismo de plataformas. In: GOMES, M.T.S., TUNES, R. H. OLIVEIRA, F.G. Geografia da Inovação: território, redes e finanças. Consequência. Rio de Janeiro. 2020. P.433-468.

[4] MACIEL, Fabrício (org.) Ficção meritocrática: executivos brasileiros e o novo capitalismo. Eduenf. Campos dos Goytacazes. 2022.

[5] GROHMAN, Rafael. Plataformização do Trabalho: características e alternativas. In: ANTUNES, Ricardo. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. BoiTempo. São Paulo. 2020.

segunda-feira, janeiro 09, 2023

"Lula, assuma o comando!", por Manoel Domingos Neto

O professor Manoel Domingos Neto em texto publicado há pouco, em seu perfil no Facebook, cobra ação de Lula contra a tentativa, ainda em curso, de golpe político com planejamento e direção militar. Três refinarias (RJ, PR e RS) e rodovias (PA e MT) estão bloqueadas por golpistas. Abaixo republico o texto.


Lula, assuma o comando!

Manuel Domingos Neto
08.01.2023

Não foi invasão nem ocupação, foi quebra-quebra, puro vandalismo.

Os objetivos: acabar com a alegria da vitória, meter medo no povo, desgastar o governo, desmoralizar o presidente, alimentar o caos, animar a ultradireita, formar clima para ruptura institucional, projetar a guerra civil.

Não adianta apenas acusar o governo do Distrito Federal e as forças policiais. Não adianta apenas acusar os vândalos e seus financiadores: nada disso teria acontecido sem o apoio ostensivo e encoberto das Forças Armadas, em particular, do Exército.

Integrantes da “família militar” que animam os acampamentos criminosos devem ser investigados e responsabilizados na forma da lei.
 
O general Gonçalves Dias, responsável pela Inteligência, deve ser sumariamente demitido. Se não soubesse da armação seria um incompetente. Mas ele sabia e não tomou providências. Que passe por uma severa investigação.
 
A depredação do Palácio do Planalto foi possível porque o Batalhão de Guardas não se mexeu. É tropa de pronto-emprego, encarregada de proteger a presidência da República. Seu comandante, não tendo cumprido com seu dever, deve ser preso e toda a cadeia de comando superior, até o general Arruda, demitida e investigada.

O Ministro da Defesa, que tem amigos nos ajuntamentos criminosos diante dos quartéis; que apostou na boa vontade dos terroristas; que não compreende suas atribuições, deve ser substituído e investigado.
A Segurança Pública não cabe no Ministério da Justiça. Deve ser pasta específica, encarregada de conceber e executar uma política nacional que garanta a cidadania e a ordem pública.

Lula, não decline de suas obrigações. Assuma o comando supremo das Forças Armadas. Não se deixe intimidar pelas fileiras. Não admita chantagem de generais. Não desrespeite o soberano, o povo que te elegeu. Mostre autoridade.
 
Chame todos os governadores para um entendimento sério. Se as Forças Armadas quiserem te derrubar e assumir o poder pensarão duas vezes antes de enfrentar as polícias estaduais.
 
Terás apoio internacional como nunca se viu. Nenhum chefe de Estado estrangeiro apoiará um golpe de Estado no Brasil.

Se preferires o caminho do apaziguamento com os neofascistas, estimularás os que têm sede de sangue.
Lula, basta de contemporização. Você prometeu cuidar do povo brasileiro. Não permita uma nova ditadura!

domingo, janeiro 08, 2023

O miltarbolsonarismo perdeu hoje mais uma vez. Fascistas não passarão!

Os generais que estão por trás desse movimento golpista de hoje parecem desesperados. Jogam os tais "radicais bolsonaristas" na linha de frente na sua guerra híbrida contra Lula, na esperança de serem vistos como "poder moderador". Esse é o único erro que Lula não pode cometer.

Superado os solavancos, esses generais, almirantes e coronéis, junto de empresários patrocinadores do golpe, caminham para situação similar a de seus similares argentinos, como consequência da guerra das Malvinas, processo conhecido como "malvinização".

O militarbolsonarismo fica menor depois de hoje. Se tem um lado positivo diante de tudo isso é que a frente para ganhar a eleição vai se ampliar em defesa da democracia. Como previ em texto, há cinco dias, a polarização não cessará. Ela é parte da realidade contemporânea, da tecnopolítica e do avanço do neoliberalismo. [1]

Lula precisará de muita habilidade política, mas sobretudo firmeza para avançar nesse quadro e assim tentar evitar que isso afete (demais) a economia, que depende da democracia e da política, para produzir resultados que a maioria da população espera. Fascistas não passarão!

PS.: Artigo no blog em 3 de janeiro de 2023. A polarização não termina com a posse de Lula: nasceu com a tecnopolítica e é parte da disputa política e civilizatória contemporânea. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2023/01/a-polarizacao-nao-termina-com-posse-de.html

terça-feira, janeiro 03, 2023

A polarização não termina com a posse de Lula: nasceu com a tecnopolítica e é parte da disputa política e civilizatória contemporânea

Tenho visto seguidos textos de jornalistas e colunistas da mídia mainstream (corporativa) reclamando que o novo governo Lula mantém em seus discursos a polarização com a extrema-direita que deveria abandonar.

Cabem duas leituras nessa avaliação. Uma crítica que entende que essa avaliação desconsidera que os riscos do fascismo não estão encerrados com a saída do militarismo-bolsonarista do poder no país. E, portanto, entende-se que não cabe tréguas, nesse enfrentamento que continua disputando o poder com o regime democrático e a superação do neoliberalismo.

A outra leitura, mais compreensiva, que merece ser debatida, evidencia uma incompreensão sobre a tecnopolítica a que estamos inseridos. Essa incompreensão vai além da leitura desses colunistas e permeia a sociedade contemporânea, que ainda insiste em enxergar política dissociada da indústria tech, da plataformização e do neoliberalismo, que juntos e imbricados nos rodeiam, nos envolvem e produzem o mal-estar e as distopias que sentimos.

Por tudo que se percebe, essa ladainha que reclama da polarização não nos abandonará tão cedo. A busca pela racionalidade e contra a realidade paralela que convive bem com a extrema-direita parece salutar e desejável. Porém, não se deve deixar de lado a constatação da não linearidade com que a disputa política pelo poder hoje está imersa, no interior de uma imensa infraestrutura técnico-digital controlada pelas big techs, em que as redes e mídias sociais são partes importantes e indissociáveis.

No caso do Brasil, com Lula-3, a questão não é se deve ou não fazer revogaço de atos abusivos, absurdos, anticientíficos e anticivilizatórios do governo anterior, responsabilizar e pedir julgamento, sem anistia para nenhum dos atos genocidas e irresponsáveis dos agentes do militarismo-bolsonarista de extrema-direita. Só que isso não tem a ver com a polarização e, sim, com a disputa civilizatória da democracia contra o autoritarismo no Brasil e no mundo.

 A tecnopolítica segue junto do mal-estar que provoca entre indivíduos e o sistema social que estimula “padrões antiestruturais” que parecem buscar uma nova ordem. Os sujeitos e o sistema técnico-digital de algoritmos se imbricam, intermediados por plataformas digitais estruturadas como startups e financiadas pelos fundos financeiros.

Cesarino (2022, p. 89) diz que “os ambientes das novas mídias são construídos a partir do pressuposto inverso àquele que orienta a normatividade e o senso comum na modernidade liberal: o usuário humano não é o agente, mas o ambiente, para a agência de sistemas não humanos”. [1]

É desse imbricamento entre sujeito e máquinas da indústria tech que a política tem se desenvolvido. Esses sistemas técnico-digitais deixam evidentes, os vieses que ajudam a explicar porque a política vem sendo subjugada à técnica, ampliando suas características centralizadoras e autoritárias, em detrimento da propalada e desejada descentralização, flexibilidade e democracia.

O professor Rodrigo Nunes (2022) em seu bom livro “Do transe à vertigem: ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição” lembra que a construção do bolsonarismo, a ascensão global da extrema direita e as polarizações políticas da última década são objetos de estudo complexos, multifacetados, compostos de diferentes dimensões e temporalidades”. “Aquilo que estamos vivendo tem raízes suficientemente profundas para que uma simples mudança de orientação política no topo não baste para mudar o que ocorre na base da sociedade”. [2]

Nunes (2022, p.26) cita o sociólogo Gabriel Feltran que identificou três “matrizes discursivas” na composição do bolsonarismo: “militarismo policial” (apoio a políticas de lei e ordem e ao uso extrajudicial da força); “anti-intelectualismo evangélico” (rejeição da ciência e da educação formal em favor da religião e da experiência pessoal); “empreendedorismo monetarista” (um ethos de “empreendedor de si mesmo” no qual a precariedade equivale a autonomia).

A polarização, a tecnopolítica e o neoliberalismo avançam também a nível global, como fenômenos em curso, em meio à crise de legitimidade na política mundo afora. Esse processo se desenvolve junto da queda de crescimento da economia global que vem ampliando a temporalidade das crises, surgidas junto do avanço da hegemonia financeira no capitalismo contemporâneo.

Neste contexto é que o filósofo inglês, Mark Fisher se referiu, já em 2009, ao “realismo capitalista” questionando se era “mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, mas sobretudo criticando as contradições e inconsistências do neoliberalismo, que se impunha contra aquilo que é, efetivamente real. [3]

Para fechar, entendo que tudo isso expõe um debate maior que é a reação à essa realidade num mundo em transformação veloz, extensa e profunda. Aguardar que essas transformações fiquem mais claras para se intervir não seria aceitável. É nesse contexto que se deve olhar a importância do mandato Lula-3.

Assim, há que se refletir e agir com ambição transformadora dentro do que é possível. Porém, para isso é também necessário compreender melhor, os fenômenos estruturais, conjunturais, políticos, econômicos, sociais e geopolíticos em curso no Brasil e no mundo.

E nesse campo, nada indica que a polarização sairá de nosso quotidiano e do nosso horizonte mais próximo. Será nesse ambiente, que haveremos de intervir nos limites do possível (ou do impossível, em termos de utopia), em meio a todas as infraestruturas técnicas, gigantismo e concentração que buscam controlar os sujeitos, seu modo de ver o mundo, as pessoas, as coisas e o modo de agir politicamente.

 

Referências:

[1] CESARINO, Letícia. O mundo do avesso: verdade e política na era digital. Ubu Editora. São Paulo, 2022.

[2] Nunes, Rodrigo. Do transe à vertigem: ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição. Ubu Editora, 2022.

[3] FISHER, Mark. Realismo capitalista. Autonomia Literária, São Paulo, 2009 (1ª edição) e 2022.