terça-feira, janeiro 03, 2023

A polarização não termina com a posse de Lula: nasceu com a tecnopolítica e é parte da disputa política e civilizatória contemporânea

Tenho visto seguidos textos de jornalistas e colunistas da mídia mainstream (corporativa) reclamando que o novo governo Lula mantém em seus discursos a polarização com a extrema-direita que deveria abandonar.

Cabem duas leituras nessa avaliação. Uma crítica que entende que essa avaliação desconsidera que os riscos do fascismo não estão encerrados com a saída do militarismo-bolsonarista do poder no país. E, portanto, entende-se que não cabe tréguas, nesse enfrentamento que continua disputando o poder com o regime democrático e a superação do neoliberalismo.

A outra leitura, mais compreensiva, que merece ser debatida, evidencia uma incompreensão sobre a tecnopolítica a que estamos inseridos. Essa incompreensão vai além da leitura desses colunistas e permeia a sociedade contemporânea, que ainda insiste em enxergar política dissociada da indústria tech, da plataformização e do neoliberalismo, que juntos e imbricados nos rodeiam, nos envolvem e produzem o mal-estar e as distopias que sentimos.

Por tudo que se percebe, essa ladainha que reclama da polarização não nos abandonará tão cedo. A busca pela racionalidade e contra a realidade paralela que convive bem com a extrema-direita parece salutar e desejável. Porém, não se deve deixar de lado a constatação da não linearidade com que a disputa política pelo poder hoje está imersa, no interior de uma imensa infraestrutura técnico-digital controlada pelas big techs, em que as redes e mídias sociais são partes importantes e indissociáveis.

No caso do Brasil, com Lula-3, a questão não é se deve ou não fazer revogaço de atos abusivos, absurdos, anticientíficos e anticivilizatórios do governo anterior, responsabilizar e pedir julgamento, sem anistia para nenhum dos atos genocidas e irresponsáveis dos agentes do militarismo-bolsonarista de extrema-direita. Só que isso não tem a ver com a polarização e, sim, com a disputa civilizatória da democracia contra o autoritarismo no Brasil e no mundo.

 A tecnopolítica segue junto do mal-estar que provoca entre indivíduos e o sistema social que estimula “padrões antiestruturais” que parecem buscar uma nova ordem. Os sujeitos e o sistema técnico-digital de algoritmos se imbricam, intermediados por plataformas digitais estruturadas como startups e financiadas pelos fundos financeiros.

Cesarino (2022, p. 89) diz que “os ambientes das novas mídias são construídos a partir do pressuposto inverso àquele que orienta a normatividade e o senso comum na modernidade liberal: o usuário humano não é o agente, mas o ambiente, para a agência de sistemas não humanos”. [1]

É desse imbricamento entre sujeito e máquinas da indústria tech que a política tem se desenvolvido. Esses sistemas técnico-digitais deixam evidentes, os vieses que ajudam a explicar porque a política vem sendo subjugada à técnica, ampliando suas características centralizadoras e autoritárias, em detrimento da propalada e desejada descentralização, flexibilidade e democracia.

O professor Rodrigo Nunes (2022) em seu bom livro “Do transe à vertigem: ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição” lembra que a construção do bolsonarismo, a ascensão global da extrema direita e as polarizações políticas da última década são objetos de estudo complexos, multifacetados, compostos de diferentes dimensões e temporalidades”. “Aquilo que estamos vivendo tem raízes suficientemente profundas para que uma simples mudança de orientação política no topo não baste para mudar o que ocorre na base da sociedade”. [2]

Nunes (2022, p.26) cita o sociólogo Gabriel Feltran que identificou três “matrizes discursivas” na composição do bolsonarismo: “militarismo policial” (apoio a políticas de lei e ordem e ao uso extrajudicial da força); “anti-intelectualismo evangélico” (rejeição da ciência e da educação formal em favor da religião e da experiência pessoal); “empreendedorismo monetarista” (um ethos de “empreendedor de si mesmo” no qual a precariedade equivale a autonomia).

A polarização, a tecnopolítica e o neoliberalismo avançam também a nível global, como fenômenos em curso, em meio à crise de legitimidade na política mundo afora. Esse processo se desenvolve junto da queda de crescimento da economia global que vem ampliando a temporalidade das crises, surgidas junto do avanço da hegemonia financeira no capitalismo contemporâneo.

Neste contexto é que o filósofo inglês, Mark Fisher se referiu, já em 2009, ao “realismo capitalista” questionando se era “mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, mas sobretudo criticando as contradições e inconsistências do neoliberalismo, que se impunha contra aquilo que é, efetivamente real. [3]

Para fechar, entendo que tudo isso expõe um debate maior que é a reação à essa realidade num mundo em transformação veloz, extensa e profunda. Aguardar que essas transformações fiquem mais claras para se intervir não seria aceitável. É nesse contexto que se deve olhar a importância do mandato Lula-3.

Assim, há que se refletir e agir com ambição transformadora dentro do que é possível. Porém, para isso é também necessário compreender melhor, os fenômenos estruturais, conjunturais, políticos, econômicos, sociais e geopolíticos em curso no Brasil e no mundo.

E nesse campo, nada indica que a polarização sairá de nosso quotidiano e do nosso horizonte mais próximo. Será nesse ambiente, que haveremos de intervir nos limites do possível (ou do impossível, em termos de utopia), em meio a todas as infraestruturas técnicas, gigantismo e concentração que buscam controlar os sujeitos, seu modo de ver o mundo, as pessoas, as coisas e o modo de agir politicamente.

 

Referências:

[1] CESARINO, Letícia. O mundo do avesso: verdade e política na era digital. Ubu Editora. São Paulo, 2022.

[2] Nunes, Rodrigo. Do transe à vertigem: ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição. Ubu Editora, 2022.

[3] FISHER, Mark. Realismo capitalista. Autonomia Literária, São Paulo, 2009 (1ª edição) e 2022.

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