quarta-feira, novembro 06, 2019

Entrevista com o geógrafo Paulo Soares que está no Chile e fala sobre a reação popular no país: "o neoliberalismo chileno não é apenas um modelo econômico, é um experimento de sociedade, toda uma construção ética e ideológica a partir do mercado, que está ruindo"

O Chile segue em forte convulsão social. Na sexta-feira passada este o blog contactou o geógrafo e pesquisador da UFRGS Paulo Soares que está em Santiago. O objetivo era ter informações sobre os acontecimentos políticos naquele país e propor uma entrevista para o blog. Na segunda-feira novos protestos se espalharam pelas grandes cidades chilenas.

Nesta terça-feira, a manutenção do quadro, fez com que a Conmebol decidisse por retirar a decisão da Copa Libertadores da América de Santiago para Lima, no Peru, considerando a insegurança para a realização da partida no próximo dia 23 de novembro.


Este blogueiro conheceu o professor Paulo Soares junto com outros pesquisadores geógrafos, sociólogos, urbanistas e sociólogos nos eventos acadêmicos nestes últimos anos.

Paulo Roberto Rodrigues Soares é professor do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduado e doutor em Geografia, atualmente realizando estadia como professor visitante e estágio pós-doutoral no Instituto de Geografia da PC-Chile. Pesquisador do Observatório das Metrópoles, abordando especialmente os temas da metropolização, financeirização, produção imobiliária e direito à cidade.

Segundo Soares, ele preferiu deixar passar o final de semana para acompanhar os acontecimentos e depois responder às questões. Ontem (terça-feira, 05/11) Paulo informou por email:

"Hoje foi chamada uma "super-segunda" de manifestações. Teve uma grande na Plaza Italia, mas nem perto da manifestação do 1 milhão, que acho será difícil ser superada. Como todo o movimento este já teve seu ápice, mas as manifestações continuam. Vamos ver até quando o movimento vai conseguir manter as mobilizações. Agora estou aqui no meu apartamento escutando o panelaço da noite. na semana passada também foram mais fortes."

Por tudo isso, vale conferir a entrevista do Paulo Soares, a quem agradeço pela entrevista e pela cessão e seleção das fotos que acompanham a publicação abaixo:


Blog Roberto Moraes: Professor Paulo Soares quando chegou e o que está fazendo no Chile?
Paulo Soares: Cheguei em Santiago no dia 2 de setembro, vim para estar por três meses (até o final de novembro) em uma estadia como professor visitante no Instituto de Geografia da PUC-Chile, bem como uma pesquisa de estágio pós-doutoral. Minha ideia é realizar uma pesquisa sobre a financeirização da produção imobiliária no Chile numa perspectiva comparativa com o processo de financeirização no Brasil. Evidentemente que estou tentando cumprir meu plano de pós-doutorado, mas os acontecimentos de Outubro em Santiago me obrigaram a abrir uma nova perspectiva de análise, desta verdadeira “revolução urbana” que está ocorrendo por aqui.

Foto 1:Ocupação Estação do Metrô. Fonte: Fonte: Latercera.cl
Blog: Como você pode classificar depois de décadas esse levante popular em todo o Chile que era considerado referência do neoliberalismo na América Latina?
Paulo Soares: Eu classificaria como um esgotamento do modelo neoliberal chileno. As pessoas, especialmente a classe trabalhadora, estão cansadas das estafas do modelo que promete o paraíso na terra, mas que na verdade está transformando a vida de muita gente em um inferno. O Chile se caracteriza como uma sociedade de consumo, Santiago, que concentra 1/3 da população do país, tem inúmeros shopping centers, grandes lojas de departamentos, mas este paraíso não está encaixando nos baixos salários, no custo dos serviços privatizados, na precarização do trabalho. Há um descontentamento geral e um grande endividamento das famílias. A juventude, grande parte universitária (o Chile, com 1,2 milhão de universitários, tem uma das taxas mais altas de jovens entre 18 e 24 anos na universidade da América Latina), também se encontra em um dilema, primeiro pelo custo da universidade, toda ela, inclusive as públicas, paga, o que exige esforço das famílias e endividamento dos jovens, segundo pela formação universitária que grande parte da população vai ter, mas que não vai encontrar correspondência em um mercado de trabalho cada vez mais flexibilizado, precarizado e que substitui postos de trabalho qualificados por tecnologia.

Assim, não fica difícil entender as razões deste “estallido social”, são anos de “abusos” como dizem aqui. Ao mesmo tempo os partidos políticos do establishment (incluindo a oposição de centro-esquerda) não dão conta das reivindicações nem de mudanças de fundo no modelo, apenas “ajustes” compensatórios. Como a progressiva introdução da gratuidade do ensino universitário, que avança lentamente e que não é para todos. E no outra ponta da pirâmide etária está o problema das aposentadorias e pensões, extremamente baixas, algumas com valor de metade do salário mínimo. Isso é o resultado dos 40 anos do sistema de capitalização implantado na ditadura. A geração de trabalhadores/trabalhadoras que está se aposentando é a que viveu toda sua vida laboral no sistema de capitalização e está percebendo valores baixíssimos de aposentadoria, muito aquém dos seus rendimentos no período de trabalho. É que o sistema de capitalização é individual e recai todo ele sobre o trabalhador, o que torna os recursos do sistema insuficientes para remunerar a todos.

"Eu classificaria como um esgotamento do modelo neoliberal chileno. As pessoas, especialmente a classe trabalhadora, estão cansadas das estafas do modelo que promete o paraíso na terra, mas que na verdade está transformando a vida de muita gente em um inferno..."
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"Eu diria que existem centenas de lideranças, inúmeras organizações de base, coletivos, movimentos sociais, que estão na “liderança” dos movimentos, entretanto não há uma personalidade, que dê cara ao movimento..."


Foto 2 – Passeata na “Alameda”. Autor: Paulo Soares. 
Blog: Como você responderia às informações e análises da situação chilena que interpreta que o processo no Chile não possui lideranças? Se possui quais são as instituições e lideranças desse processo?
Paulo Soares: Eu diria que existem centenas de lideranças, inúmeras organizações de base, coletivos, movimentos sociais, que estão na “liderança” dos movimentos, entretanto não há uma personalidade, que dê cara ao movimento. Nas mobilizações estudantis de 2011 se destacou a liderança de Camila Vallejo, estudante de Geografia da Universidad de Chile e líder da federação dos estudantes daquela universidade. Hoje Camila é uma atuante deputada federal pelo PC Chileno, ela tem se pronunciado sobre os acontecimentos, mas não tem nenhum papel de liderança, que por sinal não passa pelos tradicionais partidos da esquerda chilena (PS e PC) e até mesmo da Frente Ampla, um novo agrupamento de partidos e movimentos de esquerda. Movimentos integrantes desta última participam das manifestações, mas não tem o protagonismo e a liderança dos movimentos que é bastante difusa, configurada por um conjunto de organizações, movimentos e centrais sindicais. A plataforma Unidad Social, reúne grande parte destes movimentos e tem assumido o papel mais coordenador em algumas convocatórias e no chamado à discussões de base.

Blog: De forma, os primeiros dias do movimento popular no Chile, lembram processos similares à primavera árabe e o 2013 no Brasil. Em que essa reação popular chilena pode ter relação com um ou outro?
Paulo Soares: Lembram em três aspectos importantes a meu ver: primeiro no “estopim” que se deu pela elevação da tarifa do transporte. Que é um tema que afeta a grande maioria da população, ainda mais em uma metrópole de 7 milhões de habitantes. Ainda tem o agravante de que o metrô santiaguino, nos horários de pico é mais caro, o que onera ainda mais o trabalhador que se desloca para sua jornada. Segundo pela difusão pelo território. Iniciadas em Santiago, logo foram se espalhando por todo o país, além de irem agregando reivindicações, primeiro o transporte, logo as tarifas de luz e água, as pensões, os pedágios nas estradas, e culminando por uma assembleia nacional constituinte. Terceiro pela crítica ao establishment político e no rechaço aos partidos políticos, vistos como componentes do sistema, mesmo os da oposição.

Foto 3: Mapuches na manifestação de 1 milhão. 
Autor: Paulo Soares.
Blog: A manifestação da sexta-feira (25/10) que reuniu mais de 1 milhão de pessoas foi muito significativa e simbólica, considerando a população chilena e a força popular. Ela pode ser considerada uma evolução da organização popular?
Paulo Soares: Com certeza. O aumento das tarifas foi no dia 6 de outubro. O movimento se radicalizou e ganhou as ruas no dia 18 de outubro, o governo também radicalizou e decretou estado de emergência e toque de recolher. A resposta do movimento foi chamar novas manifestações. No dia 23 (quarta-feira) houve uma grande manifestação (umas 300 mil pessoas talvez) chamada pela CUT (Central Unitária dos Trabalhadores) e pelos sindicatos. Já na quarta-feira começaram os chamados para a sexta-feira, quando as manifestações completariam uma semana e anunciando a “marcha más grande de Chile”. Uma convocação ambiciosa e que realmente se configurou. Foi a maior manifestação da democracia, superando a grande manifestação pelo “Não” no plebiscito de permanência ou não de Pinochet no poder. No dia 25 pela manhã fui ao centro de Santiago, desde as horas finais da manhã já se via muitas pessoas na rua com bandeiras e cartazes. Ao longo da tarde as ruas e avenidas foram tomadas em passeatas rumo à Plaza Italia, o epicentro das manifestações. A Plaza Italia, junto à estação Baquedano do metrô é uma centralidade importante e o local tradicional das manifestações em Santiago.

A manifestação foi multitudinária, os próprios meios oficiais admitiram a participação de mais de um milhão de pessoas, evidentemente a maioria das classes populares e da classe média. Aqui cabe uma referência ao Brasil: enquanto em nosso país hoje em dia a classe média parece estar toda a favor do neoliberalismo e à política de direita (em temas, como por exemplo o “Escola sem Partido”, privatizações), aqui no Chile existe um segmento importante da classe média com pensamento progressista, o que contribui para uma capilaridade e apoio dos próprios meios de comunicação às manifestações.

O pós manifestação também foi interessante. Não ocorreram tantos atos violentos como no dia 18, e a população ficou nas ruas e praças celebrando e festejando a manifestação. Além disso no sábado e domingo (26 e 27) foram realizadas diversas assembleias populares, rodas de discussão, manifestações culturais em praças, centros comunitários, tanto no centro como nas periferias de Santiago. O mesmo tem ocorrido em outras cidades do Chile, especialmente em Valparaíso, sede do poder legislativo (o Congresso do Chile se localiza lá), onde grande número de atividades político-culturais está ocorrendo. A meu ver este é um novo momento de organização popular, horizontal, de baixo pra cima, a população discutindo e definindo os seus rumos.

Foto 4 – Assembleia Popular na Plaza Ñuñoa. Autor: Paulo Soares.

Blog: O presidente Piñera destituiu grande parte do seu governo, fez concessões em termos de algumas políticas sociais, mas o descontentamento prossegue. O que hoje esse movimento político pretenderia?
Paulo Soares: Eu diria que pretende “mudar para que tudo fique como está”. A jogada política foi: ele solicitou que todos os ministros colocassem seus cargos à disposição; posteriormente destituiu aqueles que ficaram mais expostos durante a crise, especialmente o Ministro do Interior e Segurança (que tem responsabilidade sobre a polícia). No final das contas foram trocados oito ministérios, mas apenas cinco ministros, pois houve também o que aqui estão chamando de “dança das cadeiras”, alguns mais expostos foram deslocados para funções menos polêmicas com o tema das manifestações.

Um dado importante, com relação ao Ministro de Interior, são as acusações de desrespeito aos direitos humanos nas detenções, com inclusive denúncias de tortura, prisões ilegais de menores, pessoas sem comunicação com familiares por vários dias, o que reacendeu o fantasma da ditadura. Inclusive com algumas “fake news” como as que diziam que havia presos no Estádio Nacional (uma alusão ao golpe militar de 1973). Mas é fato que houve graves violações aos direitos humanos e isto está pressionando o presidente Piñera por parte da oposição, inclusive como uma “acusação constitucional” (impeachment).

Mesmo com esta troca de ministros e a ascensão de “jovens ministros”, promissores na política (já conhecemos um pouco deste filme no Brasil, de uma geração de políticos “caras novas”, mas que aplicam as velhas políticas neoliberais), a aprovação de Piñera é risível, no momento cerca de 13% da população apoia o presidente. Poderíamos dizer que esta é a medida da elite chilena, dos ainda apoiadores do presidente. Sua rejeição já chega a 80% da população!

"A plataforma Unidad Social, reúne grande parte destes movimentos e tem assumido o papel mais coordenador em algumas convocatórias e no chamado à discussões de base."
"O neoliberalismo chileno não é apenas um modelo econômico, é um experimento de sociedade, toda uma construção ética e ideológica a partir do mercado, que está ruindo. Então a saída institucional creio que é a que os movimentos estão colocando: assembleia nacional constituinte, livre, democrática e soberana, que sepulte de vez a transição ditadura-democracia e refunde o país com um novo pacto social".


Foto 5: Cartazes nos muros de Santiago.
Blog: Há saídas institucionais para mediar essa insatisfação popular?
Paulo Soares: O governo está tentando através de paliativos, redução de tarifas, aumento de pensões e do salário mínimo, mas como disse são paliativos, não vão na raiz da questão, que é o próprio modelo econômico-social. Faço questão de colocar “econômico-social”, pois o neoliberalismo chileno não é apenas um modelo econômico, é um experimento de sociedade, toda uma construção ética e ideológica a partir do mercado, que está ruindo. Então a saída institucional creio que é a que os movimentos estão colocando: assembleia nacional constituinte, livre, democrática e soberana, que sepulte de vez a transição ditadura-democracia e refunde o país com um novo pacto social. É claro que este caminho é difícil, pois os donos do poder não irão ceder tão facilmente, dependerá do grau e da qualidade da mobilização da população.

Blog: Em termos de condições e ausências de políticas sociais que redundaram nessa situação, para além da questão previdenciária o que pode ser considerado como grandes questões e demandas populares? Habitação? Saúde? Educação?
Paulo Soares: Acredito que a questão das aposentadorias e pensões, os baixos salários médios, o elevado custo de vida, o custo dos planos de saúde, dos medicamentos, a educação universitária paga. Além disso a questão habitacional, como o alto custo da moradia e as opções colocadas: ou morar na periferia distante, com horas de deslocamento e custo de transporte, ou residir nas comunas centrais, com custo elevado e apartamentos minúsculos, de 17 a 25 m² como o mercado está oferecendo agora. Enfim, percebe-se que todo o conjunto da vida cotidiana está sendo questionado, as relações sociais e o sistema político.

Blog: A produção urbana, distribuição regional, a produção do território e concentrações metropolitanas têm relação com movimentos políticos e populares?
Paulo Soares: Sim, primeiramente porque o Chile é um país urbano e com população concentrada nas maiores áreas metropolitanas. Santiago, Concepción e Valparaíso concentram juntas cerca de metade da população do país. Por outro pelo modelo econômico extrativista, de exploração econômica do território, por parte de grandes corporações, de norte a sul do país. No norte a já tradicional mineração de cobre, salitre e outros minérios, no sul as grandes plantações de pinus para a produção de celulose e papel, as grandes fazendas salmoneras (de criação de salmão para exportação). Estes usos corporativos e extrativistas do território avançam sobre terras de populações tradicionais, povos originários, camponeses, em um processo de acumulação por espoliação. Este modelo também está sendo muito questionado.

"Todo o conjunto da vida cotidiana está sendo questionado, as relações sociais e o sistema político".


Foto 6: Cartaz nas ruas de Santiago. Autor: Paulo Soares.
Blog: Hoje, especialmente, o que os movimentos populares apresentam como demandas às instituições incluindo o executivo e o parlamento chileno?
Paulo Soares: Agora a principal é a elaboração e promulgação de uma nova constituição, uma assembleia nacional constituinte livre e soberana, uma constituição popular, que mude o modelo econômico e social chileno. Pesquisas dos meios de comunicação colocam que 87% da população apoia uma nova constituição.

Para isso Assembleias (cabildos) Populares estão sendo realizadas em todo o país, em todas as “comunas” (municipalidades) e bairros, locais de trabalho. Um movimento muito interessante de participação da população para a construção de propostas para o país sobre a vida urbana, mobilidade, habitação, questões sociais, visando uma nova constituição.

A meu ver este é o movimento mais interessante e inovador que está acontecendo, as pessoas sendo protagonistas da sua história.


PS.: O blog informa que além desta entrevista, Paulo Soares publicou na semana passada, na página do Observatório das Metrópoles, do qual é pesquisador, um interessante artigo-análise: Relato da primavera em Santiago: o outubro de 2019 que pode ser acessado aqui. De forma objetiva, mas também referenciada, o professor Paulo descreve fatos, agentes e processos sobre a crise chilena que complementa essa entrevista ao blog. 

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