sexta-feira, fevereiro 14, 2020

Capitalismo de plataformas e a falsa economia do compartilhamento: 99 e Uber somam hoje mais de 1 milhão de motoristas ativos no Brasil enriquecendo seus investidores globais

Tenho tratado com alguma frequência deste tema, que hoje está no centro dos meus estudos e pesquisas que visa, entre outros objetivos, identificar com maior profundidade a relação das plataformas digitais, a inovação tecnológica com a financeirização (fundos de investimentos) neste "capitalismo de investidores".

No Brasil, em 2019, a Uber tinha 600 mil motoristas cadastrados e ativos. Já uma de suas concorrentes, a 99 tinha alcançado 700 mil motoristas ativos trabalhando em sua plataforma. [1]

Juntando as duas plataformas de aplicativos pode-se estimar que o quantitativo de trabalhadores (sim, trabalhadores e não empreendedores) estão em torno de 1 milhão, considerando que muitos atuam em uma ou outra plataforma. Não está nesta conta os trabalhadores que atuam em plataformas similares para entrega de comida, como UberEats, IFood, Rappi e outras.


A 99 atua em 1,6 mil municípios do Brasil e em 2019, dobrou o número de viagens no país. Desde 2012, a 99 já passou de 1 bilhão de viagens no Brasil. Em pesquisa do IBGE (PNAD Contínua) divulgada em 18 de dezembro de 2019, indicou que a população brasileira que trabalha em veículos cresceu 29,2% em 2018, atingindo 3,6 milhões de pessoas, entre motoristas de aplicativos, táxis, ônibus, além de trocadores. O que reforça e explica os dados das plataformas Uber e 99 no Brasil. [2]

A Uber nos nove primeiros meses de 2019 teve uma receita de US$ 649 milhões no Brasil, o que permite estimar uma receita anual - com o movimento maior em dezembro - em torno de US$ 1 bilhão. No câmbio de hoje, seriam R$ 4,35 bilhões. Sabendo que 25% das receitas são retidos pelo dono do aplicativo, fica-se sabendo que a plataforma Uber tem um lucro que é retirado da economia nacional equivalente a mais de R$ 1 bilhão. No mundo todo a Uber teve uma receita global de US$ 14,15 bilhões.

O mais interessante disso tudo e que serve para identificar a relação destas plataformas com o setor financeiro, é observar que as plataformas são concorrentes, mas possuem em boa proporção, os mesmos acionistas (e investidores de fundos). Um deste caso é o banco japonês Softbank. A Uber tem 17,7% da chinesa Didi, dona da plataforma 99, que investiu pelo menos US$ 1 bilhão no Uber.

Outros grandes investidores que hoje dominam o aplicativo da Uber é o banco Goldman Sachs, o fundo soberano Qatar Investment Authority (QIA) e o Saudi Arabian Monetary Agency (Sama) fundo soberano da Arábia Saudita, entre outros, como os que tinham capitalizado a plataforma Uber com US$ 70 bilhões (PESSANHA, 2019, p.57). [3]

Do lado do consumidor este tipo de demanda parece que dá status de modernidade a quem o solicita por estar "antenado" e por ter o conhecimento sobre o uso destas plataformas digitais, hoje acessíveis por quase todos os celulares, além de propiciar economias, como também no caso da entrega de  refeições feitas nos restaurantes, mesmo que self-service, onde o trabalho do garçom já foi sendo abolido. [4]

Para os trabalhadores destas plataformas digitais, alguma renda é melhor que nenhuma. Para aqueles que produzem os alimentos, o argumento é que sem a entrega barata dos pratos, não há como sobreviver no mercado, numa época que a chamada comodidade e um novo modus de vida dos tempos atuais "brotaram nas pessoas" chamadas quase permanentemente de consumidores. 

Para os donos das plataformas digitais, estes dois argumentos servem para apresentar sua conta e os seus ganhos, onde a modernidade e o conhecimento digital justificariam a vampirização da renda em proporções absurdas. [4]

Neste processo, os donos das plataformas digitais (vampiros tecnológicos) já avançaram em suas atividades. Além de conectar produtor, consumidor e trabalhador das entregas, eles já estão usando as informações que possuem de todo o processo para interferir nos negócios destas pontas, aumentando ainda mais os seus ganhos e buscando a massificação (oligopolização), exigindo em troca destes agentes uma fidelização, assim como fazem aos consumidores com descontos para quem mais utiliza as plataformas.

A chamada economia do compartilhamento que nasceu com o discurso de ampliação da sociabilidade e da cooperação, serve hoje para o capturar as rendas locais para o andar superior das finanças que hoje controlam essas plataformas digitais.

Isso é o que pode ser entendido como capitalismo de investidores. Hoje, os investidores controlam boa parte da produção material mundial, as grandes corporações desde as indústrias, como os serviços, comércio e intermediação financeira ampliam a captura de renda através de um uso ampliado das plataformas digitais.

As plataformas digitais ampliam cada vez mais os seus usos. Os mais conhecidos são estes de transportes e os entregas de comida e vendas online. Agora já está em fase de implantação experiências também para a “uberização” para a área de energia elétrica, num processo que passa ter e denominação por conta do nome da plataforma de transportes Uber que foi fundada oficialmente em 2010. [5]

O "capitalismo de plataformas", se sustenta no processo de verticalização a partir das redes redes digitais e permite um maior controle das demandas antes vinculadas às corporações estatais de infraestrutura que estão sendo transferidas para o capital privado. Os negócios vão se tornando vinculados e controlados por grandes oligopólios em relação estreita com a fração financeira do capital.

Trata-se de um processo com ampla utilização da ideia da gestão do território e da intermediação entre os agentes do sistema para aspirar – como vampiros digitais – as rendas geradas pelos fluxos de dinheiros, promovendo ainda enorme concentração de renda e ampliando as desigualdades sociais. O capital necessita fazer imersão no território, através de agentes locais, para articular os negócios e assim aspirar e desenraizar as rendas regionais até o andar de cima das finanças. Seguimos investigando.


Referências:
[1] Matéria do Valor em 12 Fev. 2020. P.B6. BRIGATTO, Gustavo. `Não queremos crescimento a qualquer custo´, diz  diretor da 99. Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/02/12/nao-queremos-crescimento-a-qualquer-custo-diz-diretor-da-99.ghtml.

[2] Matéria da Agência de Notícias em 18 Dez. 2019. CRELIER, Cristiane. Número de pessoas que trabalham em veículos cresce 29,2%, maior alta da série. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/26424-numero-de-pessoas-que-trabalham-em-veiculos-cresce-29-maior-alta-da-serie

[3] PESSANHA, Roberto Moraes. A ´indústria´ dos fundos financeiros: potência, estratégias e mobilidade no capitalismo contemporâneo. 2019. Editora Consequência. 

[4] Artigo, postado no blog em 14 de dez. 2019. "A economia do compartilhamento e o capitalismo de plataformas nascem à luz da modernidade, mas caminham para o subterrâneo das cavernas (underground capitalism)". Disponível em: https://www.robertomoraes.com.br/2019/12/a-economia-do-compartilhamento-e-o.html

[5] Postagem no blog em 13 de jan. 2020. O mundo das plataformas digitais programa venda de energia elétrica por aplicativo. Disponível em: https://www.robertomoraes.com.br/2020/01/o-mundo-das-plataformas-digitais.html


PS.: Atualizado às 21:56: Para pequeno ajuste no título.
PS.: Atualizado às 01:02: Para alguns ajustes no texto original.

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