domingo, abril 07, 2019

Venda de gasodutos e desregulação comprovam a entrega do setor de gás do Brasil aos oligopólios e fundos globais: fatos, agentes e processos

Há algum tempo, eu venho chamando a atenção para os fundos financeiros e seus apetites sobre os setores de infraestrutura e energia no Brasil. Especialmente os fundos hedge (multimercados), avançam para vários negócios de um Brasil que com a "crise" ficou baratinho, e assim entrega, a preço vil, as suas infraestruturas estratégicas.

Esse é o caso os pipelines (gasodutos). Trata-se de uma renda de monopólio, porque só há um duto para escoar a extração (produção), até à rede de distribuição e depois para entrega aos pontos de consumo.

Em agosto/setembro de 2016, esse blog comentou aqui sobre a absurda venda de 90% da malha de 2,5 mil quilômetros de gasodutos da região Sudeste, por cerca de US$ 5 bilhões. O comprador, na ocasião, foi consórcio liderado pelo fundo canadense Brookfield. Consórcio que tem ainda a participação dos fundos CIC Capital Corp, da China, e GIC Private, de Cingapura [clientes da gestora, Brookfield Asset Management], e do fundo de pensões de British Columbia, no Canadá.


Dutos de entregas das riquezas sem bases para os fundos
O resultado disso é conhecido no Relatório de Administração da própria Petrobras-2017, que indicou que com os valores pagos, a título de tarifas para o fundo financeiro, em cerca de dois anos, a estatal já terá devolvido, integralmente, o valor recebido pela venda da malha de gasodutos, ao consórcio de fundos. 

Em tudo isso se vê dutos de absurdos e fundos sem base lógica que chamam a atenção a qualquer um. Tem mais. É a própria Petrobras que continua operando e e mantendo a rede de gasodutos através da subsidiária TAG. 

Não menos importante, há ainda o fato dessa malha de gasodutos é a que escoa o gás natural extraído dos campos do Pré-sal, que são abundantes em gás natural. E sem a sua extração, também não se extrai petróleo, porque há um limite de queima de gás natural não escoado e que vem junto do petróleo de dentro do poço, uma característica de nossos campos de petróleo offshore.

Pois bem, se não bastasse isso, na última sexta-feira (05 abr. 2019), a diretoria da Petrobras decidiu vender (entregar) 90% da participação na Transportadora Associada de Gás S.A. (TAG).

Novamente o comprador é um fundo financeiro canadense, o canadense Caisse de Dépôt et Placement du Québec (CDPQ). A compra se deu também, por parte de um consórcio com a liderança da conhecida empresa franco-belga Engie, que opera várias infraestruturas de gás na Europa, depois de amplas privatizações em muitos países, na década de 80.

Essa venda vem sendo cogitada desde 2017/2018, pela Petrobras no governo Temer e foi depois suspensa, em liminar, no Supremo Tribunal Federal (STF). Ainda há questionamentos sobre essa legalidade do negócio da última sexta-feira no valor de US$ 8,6 bilhões. Com a negócio, a estrutura societária da TAG ficará da seguinte forma: Engie, 29,5%; Engie Brasil Energia (EBE), 29,5%; CDPQ, 31,5%; e Petrobras, 10%. A malha pode ser vista no mapa abaixo.

Assim como, no caso da venda da NTS (Nova Transportadora Sudeste), subsidiária da Petrobras que era dona dos 2,5 mil km de gasodutos da região Sudeste, o novo consórcio controlado pela Engie, também terá a Petrobras como operadora e mantenedora dos serviços de transporte de gás natural, através da TAG. O consórcio assim, fica com os lucros das altas tarifas, enquanto a estatal terá que arcar como nos outros 2,5 mil quilômetros, com o pagamento das altas tarifas pelo uso dos dutos que ela mesmo opera. 

Um acinte. Uma aberração. No máximo, em três anos, a estatal já terá pago para uso dos gasodutos, sob a aforma de tarifas o valor pago pela rede de gasodutos do Nordeste. 


Como foi montada e operada a estratégia para a desintegração do setor de gás natural no Brasil (e Petrobras) para entregar ao controle de um oligopólio global? 

Como se vê o crime de lesa-pátria é mais grave ainda. Além de ser uma renda de monopólio, pois não há outros gasodutos para se escoar a produção, o dinheiro do exterior não vem para construir novos ramais de gasodutos, que são necessários para escoar a grande produção dos campos da Bacia de Santos e do Pré-sal, mas para explorar a demanda de um cliente certo para esse transporte que é a própria Petrobras. 

Tudo isso já espanta muito a qualquer um que conheça minimamente o setor, é ainda interessante observar como há pelo menos três anos, o grupo Engie atua no Brasil, escancaradamente, com lobby no Congresso Nacional e na ANP para desenhar o chamado "novo marco legal do gás natural".

Na tese de doutoramento desse autor [aqui] analisou os interesses da companhia franco-belga Engie (ex-GDF Suez) no Brasil, através da fala de Marc-Leroy, diretor mundial da cadeia de Gás, quando este tinha vindo ao Brasil, participar da feira Rio Oli&Gas, em novembro de 2016. Leroy, além de dirigente da corporação global Engie era presidente da Gas Infraestructure Europe (GIE), associação que representa as empresas de infraestrutura de gás da Europa. [1]

Em entrevista ao Valor (3 nov. 2016. P.B3. POLITO, Rodrigo e RAMALHO, André, "Engie mira aquisições na área de gás natural: companhia companha de perto discussões regulatórias", Leroy fez declarações claras sobre o lobby que seus assessores já faziam no Brasil para garantir atuação no setor de gás natural no Brasil. [2]

Vale resgatar algumas dessa falas, para se entender como se dá o processo de desmonte e a desintegração do setor de gás natural da Petrobras e, automaticamente, o repasse simultâneo para o controle, re-verticalização e centralização de todo um setor, agora por parte das corporações globais e fundos financeiros (grandes players):
  • "No primeiro momento o principal foco é participar das discussões regulatórias do setor: estamos acompanhando o movimento [desinvestimentos] da Petrobras e olhando para este mercado [de gás no Brasil], mas de uma forma mais estratégica na parte regulatória, para termos o conforto de entrar neste mercado."
  • A empresa mira oportunidades em todos os segmentos da indústria de gás, incluindo a área de estocagem – setor onde a Engie já atua na Europa – mas ainda carece de regulamentação no Brasil [...] a questão está na precificação do setor [de estocagem] no Brasil. Precisa-se de estocagem para garantir a segurança de suprimento? Se precisar podemos precificar e desenvolver um modelo de negócios. No momento estamos na parte de avaliação técnica regulatória [...] Os terminais de regaseificação da Petrobras possuem “certa sinergia” com o “know how” da empresa, mas reiterou que a decisão sobre futuras aquisições dependerá dos avanços regulatórios.
As falas do diretor da Engie deixavam claro que a corporação atuava nas discussões sobre o novo marco regulatório do setor de gás natural no Brasil , com objetivos de obter garantias sobre o controle de tarifas, flexibilidade para entrar e sair do investimento na hora que quiser, e ainda o direito de fazer o encadeamento em diferentes etapas dessa cadeia de extração e suprimento de energia.

Curiosamente (ou não) a Engie conquista o contrário do que o novo marco legal faz, ao tirar da Petrobras uma atuação integrada. O argumento do mercado é que essa integração não permite competitividade ao setor. Porém, é exatamente essa integração e suas sinergias de ganhos que interessam à corporação global nessa cadeia produtiva. Além disso, a Engue entra no setor de gás no Brasil adquirindo infraestruturas já construídas e não realizando novos investimentos, seja com extração, extensão em malhas de gasodutos e ou redes de distribuição de gás natural.


A desintegração do setor de gás natural no Brasil para centralização do oligopólio global
O mais interessante ainda na entrevista do diretor mundial da cadeia de Gás da Engie, ao Valor é vê-lo defender, abertamente, a desverticalização e o desmonte do setor na Petrobras, sem ter como esconder a contradição que é a do interesse da sua corporação, em fazer a integração com o controle do setor por um oligopólio. Leroy ainda compara que a privatização e desverticalização do setor de gás no Brasil, poderia ser feita mais rapidamente que na Europa.
  • "O Brasil tem condições de consolidar seu processo de desverticalização num ritmo mais rápido que o da Europa. O processo de abertura [do mercado de gás] na Europa demorou cerca de 15 anos, mas as bases são muito diferentes, porque havia muitos países diferentes. Havia muitos stakeholders [partes interessadas]. No Brasil, o ponto de partida não é o mesmo. O Brasil pode fazer provavelmente mais rápido [processo de abertura]”.
Porém, a clareza de como a corporação global Engie atua no lobby (que faz desde 2016) para definir o novo "marco legal do gás", quando chega a afirmar que sua companhia estava "ajudando o governo brasileiro [Temer] a desenhar e definir esse novo processo regulatório". Dessa foma Leroy definiu quais seriam as três condições [pontos-chave] de interesse da sua corporação: acesso às infraestruturas (extração e gasodutos para escoamento), flexibilidade (para entrar e sair na hora que quiser dos negócios) e garantias de tarifas lucrativas:  
  • "A experiência europeia mostra que, para assegurar o processo de abertura, a regulação brasileira precisa garantir três pontos-chaves: transparência, acesso não discriminatório às infraestruturas e flexibilidade. [...] Flexibilidade quer dizer liquidez, com o aumento da comercialização do gás, cria-se um ambiente de flexibilidade."
Tudo é muito claro e evidente sobre a lógica como o mercado atua e defende a desintegração da cadeia estatal no setor e não impede esse controle por parte das players. Ao inverso. Uma contradição que não vem ao caso. Onde o mercado não quer o monopólio estatal, mas atua a favor do monopólio privado, quando não se pode ter tudo, que se tenha oligopólios, com apenas dois grupos controlando e decidindo tupo, por cima regulação do estado-nação. Que é como o Brasil ficou agora após a venda dessas duas principais malhas de gasodutos do país.

Ou seja, exigem a desintegração nacional, mudança do processo regulatório com abertura para as players, afrouxamento das exigências e facilitação para os ganhos em escalas, a favor das grandes corporações do setor (oligopólios). [3]

Este blog fez assim, uma longa narrativa com essa retrospectiva. Pretendeu, dessa forma, mostrar a lógica desse processo e comprovar como atuam as corporações e os fundos de investimentos globais, para ter o controle (quase total) sobre o setor, imune às regulações dos países onde decidem atuar. 

Em diversas outras postagens, eu já apresentei um infográfico que objetivou resumir esse processo de desmonte (desinvestimentos) do setor a nível nacional (estatal), com a desintegração da cadeia produtiva e captura das infraestruturas.

É a lógica que interessa aos oligopólios globais. Segue à desintegração nacional, um movimento espacial horizontal, apoiado pelos fundos globais, em direção ao centro do capitalismo financeiro. Nele, o setor é então re-verticalizado, por um oligopólio do setor, que cada vez mais são apoiados e/ou controlados, por fundos financeiros que conferem fluidez e mobilidade ao capital.

 Fonte: Tese de doutorado do blogueiro (p.205) cujo título é "A relação transecalar e muldimensional "Petróleo-Porto" como produtora de novas territorialidades". PPFH-UERJ, defendida em março 2017. P. 222.
Tudo muito claro e possível de ser compreendido por não especialistas, por pessoas que não precisam entender de macroeconomia, sistema financeiro ou geopolítica. Por isso, as interpretações aqui partem das falas sobre intenções e ações das corporações e de suas articulações com outros agentes do mercado e dos governos. 
  
Depois dessa entrevista em novembro de 2016, o CEO (presidente) da Engie Global, Maurício Bähr, disse novamente do interesse da companhia sobre o setor de gás natural no país, através da subsidiária Engie Brasil Energia (EBE). Novamente garantindo que a intenção é integrar o setor com o controle da sua corporação:
  • "O Brasil é um país que oferece oportunidades que têm escala. Você consegue fazer uma alocação de capital de porte, robusta. A Engie estava avaliando investir no setor de distribuição de gás natural no Brasil e diz que esse interesse faz parte da "estratégia da corporação de aumentar os investimentos no Brasil e de entrar em negócios que aproxime a empresa de consumidores finais com aquisição de distribuidoras estaduais de gás".
Assim, se observa como o desenrolar desse processo, desde 2016. Os fatos mostram como vários agentes atual: os consultores, lobistas e escritórios de advocacia foram contratos pela Engie - a preços milionários de comissões, horas de consultoria e contratos de famosos advogados-lobistas - para operar essa estratégia de desintegração do setor de gás natural no Brasil para entregar ao controle de um oligopólio global. 

É um trabalho minucioso e articulado. Os textos chegam prontos para os burocratas do governo e parlamentares. Lá, as corporações colocam as suas garantias de um lado e também as dificuldades para regulação por parte do estado de outro, no novo marco regulatório para o setor de gás. Também como é comum, nesses casos, deixarem filigranas, como as brechas (chamadas de flexibilidade), para que o mercado possa ditar regras, em questionamentos administrativos e jurídicos. No final, as aaltas tarifas definirão as colossais margens de lucro, assim como as possibilidades do player global sair do setor, vendendo lucrativamente, as suas participações, setor na hora que desejarem.

Aqui se descreveu fatos, agentes e processos que buscam explicar como toda essa lógica é construída e posta em prática no mundo real. 

É lamentável que uma nação do porte do Brasil, com suas riquezas e com o conhecimento de sua realidade, tenha aberto mão de um projeto de país, mesmo num mundo, sob a hegemonia do mercado e do regime capitalista. 

Por isso, esses fatos precisam ser registrados. É evidente que se trata de questões, relativamente complexas, com fatos cruzados em termos de dimensão (política, econômica e geopolítica), mas é possível [e esse é nosso esforço] tentar simplificá-los para uma compreensão mais ampla, buscando não perder a essência do que é real e contemporâneo. 

É triste, mas necessário esse registro. A mesma lógica está sendo reproduzida em outros setores econômicos no país [não apenas de infraestrutura e energia, mas também serviços e redes de comércio], onde a atuação dos fundos financeiros globais - enlaçados ao nacionais - é cada vez maior. Assinto que será objeto de uma publicação a ser disponibilizada em breve e que tem nessa descrição, apenas um caso. 


Referências:
[1] Tese do autor defendida em mar. 2017, no PPFH-UERJ. P. 76-77/560: “A relação transescalar e multidimensional “Petróleo-porto” como produtora de novas territorialidades”. Disponível no Banco de Teses das UERJ: http://www.bdtd.uerj.br/tde_busca/processaPesquisa.php?pesqExecutada=1&id=7433&PHPSESSID=5vd3hsifip5hdg3n1icb57l9m6

[2] Matéria do Valor (3 nov. 2016. P.B3. POLITO, Rodrigo e RAMALHO, André, "Engie mira aquisições na área de gás natural: companhia companha de perto discussões regulatórias". Disponível em: https://www.valor.com.br/empresas/4763855/engie-mira-aquisicoes-na-area-de-gas-natural

[3] Artigo do blog em 19 jan. 2019. Desverticalização nacional e re-verticalização global no setor de gás no Brasil: a contradição liberal. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2019/01/desverticalizacao-nacional-e-re.html

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