quarta-feira, fevereiro 05, 2020

"A dita `financeirização´ não é uma deformação do capitalismo, mas um `aperfeiçoamento´da sua natureza", por Belluzzo

O professor Belluzzo (Economia da Unicamp) é uma das vozes coerentes que sempre faz boas interpretações sobre o movimento do capital e sobre a "evolução" do capitalismo, no Brasil e no mundo.

Em um dos seus livros Belluzzo se diz keynesiano e marxista, o que para muitos seria uma contradição. Porém, ele sustenta essa posição em termos de propostas e de análises, no campo da economia política. No texto abaixo Belluzzo mostra como se utiliza dos dois de forma complementar.

Belluzzo identifica nas desigualdades e na ampliação dos ganhos financeiros os riscos do sistema, da mesma forma que temos insistido aqui nesse espaço, em várias análises, inclusive na identificação do crescimento da utilização do instrumento dos fundos financeiros no capitalismo contemporâneo.

Portanto, uma economia mais monetária e financeira do que de trocas de mercadorias, quando ele aponta, uma das questões atuais que mostra como papel dos bancos e da intermediação financeira foi se alterando ao longo do tempo, quando a "máquina das dívidas" e dos créditos assumiu o controle do sistema. Neste contexto ele traz à tona a distinção pouco percebida entre dinheiro e moeda.

É um texto mais conceitual e denso, mas importante. Por isso e mais, vale conferir o seu último artigo, publicado ontem (04/02/2020), P. A11, no Valor, que reproduzimos abaixo. Os grifos são meus.


Schumpeter, o Dinheiro e a Moeda

Valor Econômico - Luiz Gonzaga Belluzzo - 04/02/2020

Reconhecido pelos senhores dos mercados depois da crise financeira de 2008, o economista keynesiano Hyman Minsky, falecido em 1996, escreveu em 1992 um artigo intitulado “Schumpeter and Finance”. O artigo narra a temporada de Minsky em Harvard na companhia de Paolo Sylos-Labini, então jovem economista italiano, mais tarde referência no mundo acadêmico ao escrever o clássico Oligopólio e Progresso Técnico.

Os dois chegaram a Harvard para a temporada 1948-49. Labini aportou a Harvard depois de algum tempo em Chicago. “Como completei minha graduação em Chicago, Labini e eu compartilhamos nossas opiniões sobre Chicago e Harvard em animada discussão”. Minsky graduou-se em matemática em 1941. Do mestrado (1947) ao PhD (1954), foi supervisionado por Schumpeter, Wassily Leontief e Alvin Hansen. Schumpeter morreu em janeiro de 1950.

Os alunos da pós-graduação de Harvard, em sua maioria, desdenharam as palestras de Schumpeter. Consideravam Schumpeter ultrapassado. Juntar-se a ele no estudo de economia seria considerado diletantismo. Na era da formalização matemática, o modelo de Schumpeter não era tratável.

A visão de Schumpeter concebe as economias capitalistas como sistemas em evolução, sistemas que existem em seu movimento histórico em resposta a fatores endógenos. As sociedades são bestas evolutivas que não podem ser congeladas no tempo e reduzidas a fórmulas matemáticas estáticas. “Nenhuma doutrina, nenhuma visão que reduza a economia ao estudo da sustentação de equilíbrio pode ter uma relevância duradoura”. Schumpeter lançou uma mensagem: “A história não leva ao fim da história”.

Na Teoria do Desenvolvimento Econômico Schumpeter chamou o banqueiro/financiador de ephor das economias de mercado. O ephor era um magistrado de Esparta que vigiava as atitudes e as decisões dos Reis. Em Schumpeter é a estrutura bancária de uma economia capitalista que controla e delineia o que pode ser financiado, e somente o que é financiado entra no reino do possível. Em nenhuma instância da evolução desse organismo complexo, a mudança e o empreendedorismo são mais evidentes que nos bancos e nas finanças.

Mas atenção crentes nos mercados eficientes, em um sistema evolutivo o poder e eficácia do ephor são endogenamente determinados. É indispensável perscrutar como a busca do lucro por empresários, banqueiros e gestores de portfólios promove a evolução das estruturas financeiras.

Joseph Schumpeter chamou a teoria que estuda a engrenagem financeira do capitalismo de Teoria Creditícia da Moeda e não Teoria Monetária do Crédito. Não se trata de uma troca de palavras, mas de uma transposição semântica. A expressão Creditícia da Moeda pretende subordinar a circulação monetária às relações credor-devedor, o que atribui ao portador dos títulos de dívida o direito de “apropriação” e, no caso de inadimplemento, de “expropriação” dos fluxos de rendimentos futuros ou do valor do estoque de capital existente ou em formação.

Para Schumpeter, assim como para Keynes e Karl Marx, a economia em que vivemos ou tentamos sobreviver não é uma economia simples de intercâmbio de mercadorias. É uma economia mercantil, monetária e capitalista. Nela as decisões de produção envolvem inexoravelmente a antecipação de dinheiro agora para receber mais depois.

A mobilização de recursos reais, bens de capital, terra e trabalhadores depende de adiantamento de liquidez e assunção de dívidas. Para que o crescimento seja possível, disse Schumpeter, o estoque de crédito deve crescer além do requerido para operação corrente da economia capitalista.

O economista italiano Riccardo Bellofiore estabeleceu uma instigante distinção entre Dinheiro e Moeda. Dinheiro, diz ele, é a forma geral da riqueza, poder de adquirir os elementos indispensáveis à produção de mercadorias: trabalhadores assalariados, equipamentos e materiais. No capitalismo, o Dinheiro, uma vez atirado à circulação por quem dispõe de patrimônio rentável para acessar o crédito, cria a Moeda, o fluxo monetário que paga salários, fornecedores e credores.

Sem a passagem da Potência ao Ato, diria Aristóteles, ou seja, sem a precipitação do Dinheiro no mercado com o propósito de gerar mais Dinheiro, a Moeda não gira e a economia patina. Se patina, as mercadorias não circulam, os ativos reais e financeiros avaliados “dinheiristicamente” nos balanços de bancos, empresas, famílias, padecem o risco de “perder valor” porque os mercados exigem sua “marcação em Dinheiro”. O Dinheiro de Crédito, antes riqueza potencial, circula como Moeda e reaparece nos balanços como Dinheiro-Riqueza realizado, mensurado e escriturado.

O grande economista austríaco antecipou as peripécias fáusticas dos que se entregam ao Demônio Dinheirista. Schumpeter compreendeu que o Demônio invadiu a carcaça de Fausto com dois Ânimos: o Espírito inquieto do mercado de capitais para ações, títulos, hipotecas, imóveis e terrenos e a boa Alma do Dinheiro circulante no setor de mercadorias, emprego e renda. Seguiu Marx, que no Capítulo 30 do III volume de O Capital intitulado “Capital-monetário e capital real” faz uma distinção entre o 1) “o crédito, cujo volume cresce com o crescente valor da produção”, e 2) “a infinitude do capital monetário - um fenômeno que ocorre ao lado da produção industrial”. Da mesma forma, Keynes escreveu sobre os desencontros entre o “Dinheiro na circulação financeira” e o “Dinheiro na circulação industrial”.

A dita “financeirização” não é uma deformação do capitalismo, mas um “aperfeiçoamento” de sua natureza. Na incessante busca da “perfeição”, ou seja, na busca de dinheiro a partir do dinheiro, o capitalismo excita esperanças de enriquecimento e solapa as ilusórias realidades da “economia real”.

O mundo das finanças viveu uma relativa calmaria nas três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Há quem sustente que a escassez de episódios críticos deve ser atribuída, em boa medida, às politicas de “repressão financeira”. Nascidos da Grande Depressão, esses controles impuseram a separação entre os bancos comerciais e os demais intermediários financeiros, direcionamento do crédito, tetos para as taxas de juro e restrições ao livre movimento de capitais entre as praças de negócios de moedas distintas. Tentaram disciplinar o Espírito Dinheirista para dar curso à Boa Alma Moedeira. O Espírito escapou.

5 comentários:

Anônimo disse...

Permita-me discordar concordando, caro Roberto.

Sim, a "financeirização" é uma etapa de especialização do capital, mas devemos chamar esse processo de pós-capitalista.
Embora o capital fictício tenha guardado alguma relação com a geração de valor através da acumulação capitalista (mais-valor) no passado, ela já não guarda mais nenhuma relação com esse processo, senão para soterrar ainda mais os processos produtivos (que geram valor) com a dupla exploração de mão-de-obra (relativa, pela tecnologia, e absoluta pelo achatamento de renda), e depressão dos sistemas públicos de gestão pela imposição de teorias de "equilíbrio fiscal".

Essas teorias "de equilíbrio" atacam justamente aquilo que o Estado fez historicamente pelo capitalismo, que é arcar com os prejuízos sociais da interminável fábrica de desigualdades que é o modo produtivo em questão, como um cachorro atrás do rabo.

O que eu discordo é o termo "aperfeiçoamento", porque esse processo de geração de capital fictício só tem o condão de gerar novas bolhas, e a cada rompimento dessas bolhas o capitalismo vai erodindo suas bases produtivas, e pior, sua bases sociais de produção, levando ao inexorável fim do próprio capitalismo, e que já percebemos pela liquidez e derretimento dos seus mecanismos de ajuste e controle social, que chamamos de instituições (como imprensa, judiciário, eleições, etc).

Aperfeiçoamento sugere o surgimento de algo melhor e mais eficaz.

Não é o caso.

Marx previu o fim desse modo de produção pelas contradições e superações propostas pela luta de classes. Errou, pois o fim do capital virá do acúmulo do próprio capital. O que é muito mais sombrio de qualquer cenário que imaginamos.

Ainda bem que nos resta 30 ou 40 anos de vida (risos).

Douglas da Mata.

Roberto Moraes disse...

Tem razão.
Belluzzo usa a expressão aperfeiçoamento dentro dos interesses do capitalismo, ou melhor dos capitalistas. Nesse sentido esta etapa da financeirização ela é mais eficiente ao capital, porém, ela não prescindirá nunca da produção material. O que se tem hoje é a vampirização cada vez maior da renda do trabalho, sob a forma de rendas variadas que seguem para o andar de coma das altas finanças e menos para o trabalho que se torna mais precarizado. Esse esgarçamento tem limites.

Trato disso, no livro sobre a indústria dos fundos financeiros. Abs

Roberto Moraes disse...

Me passe em off seu endereço para lhe enviar um exemplar. Abs

Anônimo disse...

Nossa discordância é simples:
Você acredita que o capital fictício não ptescinde da acumulação material.

Eu, como marxistas da crítica do valor, acredito que essa ligação já foi rompida e a acumulação fictícia já sufica a material.

Abraço.

Roberto Moraes disse...

Trato disso no livro que te enviarei. Este é o debate que venho fazendo desde 2017, para além das discussões sobre as frações do capital do setor de petróleo e infraestrutura portuária. Sendo dois setores intensivos em capital, eu resolvi ir mais a fundo na origem e movimento deste capital vinculado ao mundo das finanças.

Exatamente baseada nesta crítica me escudando no Arrighi, Harvey e na crítica de MARX no campo da Economia Política é que argumento, com base também na teoria do valor que a captura da riqueza pelo valor fictício, se dá sempre sobre o trabalho e a produção material de onde se vampiriza cada vez mais a renda. Isso caminha para um esgarçamento, porque a vampirização chupa o sangue do corpo levando à inanição do sistema.

Este é sempre um bom debate.

Abs.