sábado, março 05, 2016

Ainda refletindo sobre a conjuntura e a ameaça à nossa frágil democracia

O blog disponibiliza abaixo dois textos que avançam nas reflexões que entendo necessárias não apenas para a compreensão do tempo presente, como de suas consequências.

A questão é muito maior do que a defesa de um partido, ou um líder. Trata-se de uma ameça à democracia, com contornos nítidos de repetição da farsa, inclusive com os mesmos atores e interesses.

O primeiro foi publicado no Diário do Centro do Mundo e de autoria do professor da UFJF, Ignacio Godinho Delgado. Já o segundo é do portal Carta Maior, da jornalista Maria Inês Nassif.

Os textos se complementam nas abordagens e amplia a reflexão para além dos fatos em si. Evitar o olhar macro, nestas circunstâncias é quase o mesmo que deixar se perder nos labirintos das pontas das informações soltas e fragmentadas.

Com diferenças e críticas aqui e acolá, eu penso que elas trazem elementos que, mesmo centrado na mediação política, como não pode deixar de ser, os textos ajudam e avançam na compreensão de origens e consequências deste movimento presente.

"Desde o início a Lava Jato foi marcada por um propósito político. Por Inacio Godinho Delgado"

"O texto abaixo é de Ignacio Godinho Delgado. Ele é Professor Titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), nas áreas de História e Ciência Política, e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia-Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT-PPED). Doutorou-se em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1999, e foi Visiting Senior Fellow na London School of Economics and Political Science (LSE), entre 2011 e 2012".

"O impacto da Lava Jato no declínio do PIB em 2015 alcançou 2,5%, segundo a consultoria Tendências. Provavelmente este número é muito maior, se considerarmos sua centralidade na crise política brasileira. Julio Gomes de Almeida, do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), assinalou recentemente que “os impasses vividos pelo Brasil são, sobretudo, desdobramentos de uma crise de confiança que brota da economia, mas também de um sistema político-parlamentar que se desintegrou”. E acrescenta: “Como o que está por vir é visto por empresários e mercado financeiro como algo impossível de ser avaliado, torna-se também impossível o cálculo do retorno dos investimentos, paralisando as inversões”.

Faltou ainda considerar o papel da mídia na irradiação diuturna do pessimismo e da desconfiança. Se 2,5% da queda do PIB resultam diretamente da Lava Jato, dada sua incidência sobre dois setores fundamentais na economia brasileira – a cadeia de petróleo e gás e a construção pesada -, que modelo econométrico nos elucidará o impacto da crise política, e de sua ampliação e agravamento pela mídia, na disposição de investir do empresariado?

Além da influência no curto prazo, a Lava Jato vai produzir, ainda, efeitos provavelmente irreversíveis na trajetória futura da economia brasileira. Atingindo a Petrobrás, as grandes construtoras e o programa nuclear brasileiro, a operação do comandante Moro afeta atividades em que o Brasil ainda dispõe de empresas classe mundial, além de minar instrumentos importantes para a defesa do país e seu desenvolvimento tecnológico. Completar-se-á, então, o processo de internacionalização do espaço econômico doméstico no Brasil. Não é à toa que publicações das Organizações Globo usam a Lava Jato como argumento para liquidação do marco regulatório do Pré-Sal e em favor da participação de empresas estrangeiras em obras derivadas de investimentos públicos.

De passagem vale a pena lembrar que não existe um único país no mundo que tenha alcançado níveis elevados de desenvolvimento tecnológico – e de bem-estar – sem um conjunto expressivo de empresas nacionais inovadoras dominando seu espaço econômico nacional, com desdobramentos em sua capacidade para a projeção internacional. Não faz parte da estratégia das multinacionais exportar as fases mais sofisticadas dos processos de inovação.

Por seu turno, empresas domésticas, ocupando posições subalternas na estrutura econômica nacional, tendem simplesmente a absorver tecnologias já existentes, sem liderar as atividades de inovação. Desta forma, buscam ancorar sua competitividade em fatores como o custo do trabalho, resistindo às políticas de elevação da participação dos trabalhadores na renda. É o que se observa, no Brasil, com as objeções à política de valorização do salário mínimo e a defesa da terceirização em atividades fins pelo empresariado do país.

É preciso ficar claro. Se o horizonte da Lava Jato fosse investigar e punir os envolvidos em esquemas de corrupção constituídos no Brasil, associados a deformações de nosso sistema político, ela teria cumprido um papel histórico de relevo. Processos irregulares de apropriação de recursos públicos para custeio de campanhas eleitorais são sobejamente conhecidos no Brasil, mas raramente investigados e punidos. A Lava Jato poderia colocá-los a nu e subsidiar um conjunto de reformas na administração pública, no sistema eleitoral e nos arranjos que regulam a contratação de serviços privados por entidades públicas, colaborando para minimizar a ocorrência de processos de corrupção.

Mas não. Desde o início a Lava Jato foi marcada por um propósito político, que não se importou com as claras violações aos direitos individuais vinculadas aos seus métodos, condenados por boa parte do mundo jurídico e por entidades e órgãos de imprensa internacionais. Por que a operação do Sr Moro delimitou suas operações apenas ao período que se inicia em 2003? Qual o sentido de excluir reiteradamente nomes da oposição de seu alcance, mesmo que identificados através de seu principal procedimento de investigação, a delação premiada? Qual o sentido dos vazamentos e dos espetáculos de execração pública de pessoas investigadas, notadamente petistas? Por que a resistência às propostas de acordos de leniência, que garante a punição de executivos e de empresas, mas assegura a continuidade das atividades dessas, sustentando investimentos e empregos? O que justifica delegados e procuradores municiarem ações contra a Petrobrás nos Estados Unidos?

O Sr Moro, os delegados e procuradores da Lava Jato, poderiam mirar-se na experiência dos EUA, que parecem tanto estimar, onde existe clareza do papel estratégico de suas empresas para a economia nacional e existem acordos de leniência desde 1978, a partir do entendimento de que a punição a firmas e seus dirigentes não deve trazer prejuízos para a atividade econômica e o emprego. Ou será que a contaminação da economia pelas ações da Lava Jato é um dos objetivos da guerra que busca travar, para minar as forças do inimigo, como nas conflagrações que envolvem canhões e obuses?

Dos métodos da Lava Jato, e da espetacularização da justiça através da mídia, não se entrevê nenhuma herança institucional capaz de levar à redução da corrupção. Seu efeito mais visível é a estigmatização de um grupo específico de pessoas, os petistas e os que deles se aproximaram, subsidiando animadas campanhas midiáticas e um clima de perseguição fascista, cujo propósito imediato é o golpe, a erradicação do PT e a erosão da imagem de Lula.

Como se essa solução final fosse purgar o país de seus pecados e permitisse a afirmação de seres dotados dos atributos da lisura e da honestidade, santos de pau oco, próceres da hipocrisia e do cinismo. Junto a ela, uma inaudita regressão civilizatória e o envenenamento sem precedentes nas relações de convivência entre os brasileiros.

E no final, o que restará? Um país entregue, um povo cindido, o comprometimento talvez definitivo de qualquer possibilidade de desenvolvimento soberano".


"Manual para entender por que a Lava Jato tem motivação política, por Maria Inês Nassif"


O aparelho político-burocrático-midiático em que operação se sustenta é historicamente comprometido com o status quo.

"A literatura política brasileira está recheada de histórias que comprovam a máxima “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”. É uma tradição das elites brasileiras o uso da polícia e da Justiça como arma, quando o voto não é favorável aos seus interesses. A ofensiva contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a presidenta Dilma Rousseff e o PT não desmentem a história.

Antes da Constituição de 1988, o aparelho policial e Judiciário dependiam diretamente dos donos de votos nos Estados e no governo federal. Nos Estados, os oligarcas mantinham-se poderosos graças ao clientelismo; a uma Justiça a ele submisso; a uma polícia que era a extensão de seus interesses; e à mídia (jornais, rádios e televisões) que, se não era de propriedade do próprio chefe político, recebia dinheiro do governo suficiente para que apenas escrevesse o que fosse autorizado.

São inúmeras as histórias que se pode contar sobre esse tempo – como é o caso de um chefe político do Nordeste que, governador mandato sim, mandato não, mantinha os inimigos continuamente processados por um Tribunal de Justiça cujos desembargadores compareciam a uma reunião semanal em sua casa, para receber as ordens de como julgar os seus desafetos e os seus amigos.
Todas as mudanças promovidas na Justiça, na Polícia e no Ministério Público pela Constituinte não foram capazes, todavia, de imunizá-los contra a sedução que o poder econômico e político exerce sobre eles. A mídia tradicional é capaz de tornar um simples procurador ou juiz em rei da pátria, desconhecer as mazelas de aliados e manipular a opinião pública para aceitar uma condenação injusta. Os interpostos dos aparelhos policial e judicial, ao atuarem em favor do status quo, passam a ter direito ao ingresso nesse seleto grupo de pessoas muito poderosas que, se não estiverem no governo, têm instrumentos suficientes à disposição para inviabilizar o oponente que venceu as eleições – e voltar ao poder.

Esse é o maior poder de sedução que a elite exerce sobre o aparelho burocrático do Estado: os que ocupam o poder em oposição a eles são intrusos, o aparelho de Estado é deles, por direito divino e, quando a ele retornarem, o conjunto das forças que contribuíram para derrubar o inimigo com o uso da Justiça – e a ajuda inestimável da polícia e do Ministério Público -- estará no poder. O aparelho burocrático, se tiver algum sentimento de pertencimento, será esse: às forças que se juntam para evitar que a realidade social e política do país mude o menos possível, e manter os interesses historicamente estabelecidos. A burocracia é facilmente cooptável pelo status quo.

Nessa estrutura política, o voto é descartável. Duas louváveis leis para moralização das eleições, ao longo dos anos, por exemplo, têm se mostrado facilmente manipuláveis, sem que instrumentos efetivos de controle dos agentes que as executam protejam as vítimas de seus desmandos. A lei que proíbe o abuso do poder econômico, por exemplo, chegou a cassar o mandato do senador João Capiberibe (PSB-AP) por conta de uma única denúncia, da qual nunca se provou a veracidade, de que um único voto havia sido comprado por R$ 5. Assumiu no seu lugar o candidato que perdeu a eleição por muito mais do que esse voto. A Lei da Ficha Limpa, se pode livrar o país de corruptos comprovados, também tem o poder de inviabilizar políticos importantes na vida nacional que não tem respaldo dessa elite político-burocrático-midiática. A deputada Luiza Erundina (PSB-SP) quase perdeu o direito de se candidatar porque o Tribunal de Contas do Município (TCM), com quem teve sérias divergências quando prefeita, a condenou mais de uma década depois. As leis estão sujeitas aos agentes, e boa parte deles têm lado."

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