quinta-feira, março 17, 2011

“Devemos colocar a sociedade para ser ouvida e juntos acharmos a melhor solução” entrevista com o produtor rural João Siqueira

Em função de um comentário feito numa nota deste espaço, o blogueiro trocou alguns e-mails com o nosso entrevistado, João Gomes Siqueira e percebeu que ele tinha opiniões e percepções que valiam ser trazidos à tona.

A relação da sociedade regional com os produtores rurais tem sido sempre envolvida em polêmicas e debates que olha muito mais o passado do que os cenários futuros. É possível perceber que o nosso entrevistado valoriza o associativismo, o papel dos conselhos comunitários e se mostra disposto ao debate e à interlocução na busca de soluções interessantes para a nossa região e o nosso povo.

João Gomes Siqueira é produtor rural em SFI, onde nasceu, quando ainda era o sertão do município de São João da Barra. Lá estudou até a quarta série do Ensino Fundamental. É ex-aluno da Escola Técnica Federal, do final da década de 70, contemporâneo deste blogueiro, na nossa antiga Federal.

Depois de 15 anos atuando como produtor rural João Siqueira resolveu voltar a estudar e prestou o primeiro vestibular para a Universidade em 1993, aos 33 anos de idade, vindo a integrar a primeira turma da Uenf formando-se médico veterinário, depois mestre em Produção Animal em 2001 e doutor, na mesma área, em 2006, também pela Uenf, onde atua, desde 2002, como técnico de nível superior e pesquisador na área de Veterinária do Laboratório de Reprodução e Melhoramento Genético Animal (LRMGA) do Centro de Ciências e Tecnologias Agropecuárias (CCTA).

Neste processo, João Siqueira criou e é o presidente da Associação de Produtores Rurais da Margem Esquerda do Paraíba do Sul (APROMEPS), o que lhe credenciou a ser também membro titular do Comitê do Baixo Paraíba do Sul, desde sua formação em 2008.

Por estes caminhos, o nosso entrevistado, João Siqueira, tem atuado nas discussões sobre as estratégias e as ações ligadas a recursos hídricos, tanto na margem esquerda quanto direita do Rio Paraíba do Sul, aí incluída a Baixada e a Lagoa Feia. Por este trabalho tem se articulado com pescadores, governo, e outros usuários, no Comitê uma entidade colegiada e plural na busca de projetos consensuados e, assim também acompanha a movimentação sobre a implantação Complexo Logístico-industrial do Açu.

Por estas referências e por um comentário seu neste blog é que tomamos a iniciativa de ouvi-lo a respeito de alguns assuntos que envolvem a questão ambiental, os produtores rurais e projeto industrial de maior vulto previsto para a nossa Baixada:

Blog: Quando e como funciona a Associação de Produtores (APROMEPS) que preside?

João Siqueira: Em virtude das grandes enchentes de 2007 e 2008 e de conflitos antigos entre pescadores e produtores rurais, eu e um grupo de produtores localizados à margem esquerda do Rio Paraíba cansados de sofrer com as cheias do rio decidimos fundar uma associação e lutar de forma democrática e legal por nossos direitos. Assim fundamos a APROMEPS e em seguida passei a acompanhar de perto as ações do ETEC (embrião do Comitê de Bacias do Baixo Paraíba do Sul), criado pela antiga SERLA em 2007, e consegui, com isso, que a nossa associação fosse eleita para uma vaga de membro titular do Comitê, recém formado, em 2009.

Blog: Comente sobre o Comitê de Bacias Hidrográficas e o alcance de sua atuação.

João Siqueira: Em função da nova legislação foram implantados em todo o Brasil os Comitês de Bacias Hidrográficas para que por meio deste fórum, a sociedade possa se manifestar de forma oficial sobre todas as questões referentes a esse tema. Os Comitês são entidades colegiadas formadas por representantes da sociedade. Somente no Encontro Nacional de Comitês de Bacia (ENCOB), ocorrido em Uberlândia (2009) e Fortaleza (2010), é que tive a noção clara do alcance dessa entidade. Nada se faz hoje sem consulta e participação dos comitês, por isso o interesse dos governantes. No Estado do Rio ele é formado por três representantes do governo (federal, estadual e municipal), três da sociedade civil (entidades de pesquisa, universidades), e quatro do setor de usuários, onde está a maior parcela da população, as associações de classe, as ONGs, etc. O comitê tem o poder de legislar e definir todas as ações a serem executadas pelos governos envolvidos na área de recursos hídricos dentro de cada bacia hidrográfica. O nosso comitê compreende 24 municípios (estadual) e atua desde Pádua até São João da Barra.

“Fui me apaixonando pela causa de recursos hídricos que é um problema que afeta a todas as pessoas e afetará muito mais daqui em diante”

Blog: Como aconteceu sua atuação no Comitê do Baixo Paraíba do Sul?

João Siqueira: À medida que eu participava do ETEC e depois do Comitê fui me apaixonando pela causa de recursos hídricos, da qual conhecia alguma coisa em função da atividade rural que é influenciada diretamente pelo rio Paraíba. Mas, hoje, vejo que há muito mais do que isso, recursos hídricos é um problema que afeta a todas as pessoas e afetará muito mais daqui em diante. Acho que por essa paixão e por ser um dos mais atuantes nos debates durante as reuniões do comitê convidaram-me para ser coordenador da Câmara Técnica, recém criada, e também representar o Sindicato Rural no Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERHI), com sede no Rio (INEA).

Blog: Como tem sido tratadas as divergências e quais os consensos que tem sido possível construir neste Comitê?

João Siqueira: Com as crises é que se desenham as soluções. As divergências foram se dissipando à medida que os problemas se avolumaram e formou-se a consciência de que todos perdiam se ela continuasse a existir. Com isso, sentam-se à mesa, hoje, pescadores, produtores, usineiros, governo (estadual, municipal e entidades como EMATER e SEEAPA), dentre outros. Existem muitos consensos que foram formados depois das cheias de 2007/2008. Até o governo do estado foi obrigado a olhar para essa região e conseguiu uma verba federal de 97 milhões para limpeza dos canais que estavam abandonados desde 1990, coisa impensável antes de 2007. Além disso, no início do ano anunciou destinar mais recursos para recuperação e manutenção das estruturas hidráulicas (comportas) que dão suporte aos canais. Essas estruturas mantêm os mesmos cheios para que possam alimentar as lagoas na seca e, também, impedir a entrada das águas quando o rio sobe muito durante as chuvas de verão. Esse processo é o ajuste fino de todo o sistema que mantém a baixada.

Blog: Como avalia o trabalho de macrodrenagem e de prevenção às enchentes nos canais da Baixada Campista?

João Siqueira: O excelente projeto de saneamento feito pelo DNOS baseado em estudos do grande campista o engenheiro Saturnino de Brito e outros fez dessa região um lugar mais salutar. Diferente do que alguns pensam esse projeto não foi criado para acrescentar terras aos agricultores e sim para sanear a região assim como outras do Brasil (Vale do Itajaí, Baixada Fluminense, etc). Existem documentos que comprovam isso, não estou defendendo a minha classe, até porque, depois que entrei no Comitê minhas decisões são baseadas em julgamentos imparciais. Se não existir esse sistema (macrodrenagem) funcionando entramos em colapso. Ou seja, falta d’água na seca e enchentes alagando áreas urbanas e rurais nas chuvas. Se não existirem as comportas do Canal das Flechas a Lagoa Feia fica seca, assim como as do Canal de São Bento que permite a entrada de água para manter os canais e lagoas cheios durante todo o ano. Os diques (prevenção às enchentes nas margens esquerda e direita, baseado no Estudo Gallioli- 1968) impedem que todos os anos as cheias do Paraíba entrem na cidade e nas áreas rurais, deixando milhares de desabrigados e causando destruição na agropecuária (vide 2007 e 2008).

“As divergências foram se dissipando à medida que os problemas se avolumaram e formou-se a consciência de que todos perdiam se ela continuasse a existir”.

Blog: Sendo esta macrodrenagem um elemento importante na implantação do Complexo do Açu, e considerando ainda, a tomada d água que o empreendimento sugará na já debilitada vazão na foz do Paraíba, como você avalia o quadro?

João Siqueira: A macrodrenagem em função da implantação do Porto vai recuperar parte do sistema já existente que será adaptado para fornecer água ao Complexo do Açú e será feito em sistema de contrapartida aos impactos gerados pelo complexo, ou seja, sem recursos públicos, pelo menos em tese. Acho que é assunto de amplo estudo e debate a nível de Comitê para que se possa ampliar o tema a todos os atingidos, agropecuária, pesca, urbanização, etc. Essa retirada de água vem se somar a mais uma que é a grande transposição do Paraíba, feita desde meados do século passado em Barra do Piraí, onde são desviados 160m3 por segundo (3/4 da vazão do rio) para o Guandú a fim de saciar a sede de milhões de cariocas. Infelizmente não recebemos nenhuma compensação por isso e continuamos a conviver com os seus impactos, como a destruição de Atafona, assoreamento do leito do rio que agrava as enchentes, etc.

Blog: Qual a visão dos produtores rurais (agricultores e pecuaristas) sobre todo este processo que se avizinha de compra de terras e ocupação do solo para atividades diferentes por aquelas tradicionais?

João Siqueira: É um assunto polêmico. Você mesmo se rendeu ao crescimento econômico quando disse que o nível de emprego subiu no Brasil nos últimos anos. Por outro lado é justo retirar de forma não democrática pessoas que têm profundas raízes com o local em questão, com a terra onde sempre viveram? É mais uma decisão em que devemos colocar a sociedade para ser ouvida e juntos acharmos a melhor solução para esse impasse.

Blog: Quem são hoje os maiores predadores dos recursos hídricos e do ambiente nesta área da Foz do Rio Paraíba do Sul? Como mudar este curso?

João Siqueira: Segundo estudos, até os anos 70/80 os maiores poluidores eram a indústria e a agricultura. Nos anos recentes mais de 80% da poluição vem das cidades com o esgoto lançado in natura nos corpos hídricos e o lixo que contamina o lençol freático. Aqui na nossa região gasta-se milhões para recuperar os canais por causa do crescimento desenfreado de vegetação adubada pelo esgoto lançado neles, fora as lagoas que recebem todo esse mal. A crise futura não é ambiental é de água potável. Devemos parar de lançar esgoto nos rios e canais e eliminar de vez sacos plásticos e outros lixos que se acumulam por todo lado.

“Temos que nos preparar para as mudanças que certamente virão e aprender a buscar soluções de forma verdadeiramente democrática e que representem a vontade de todos”

Blog: Como tem sido as conversas entre estas partes e os empreendedores?

João Siqueira: Ainda muito tímidas. O trabalho é enorme. Não só os empreendedores como toda a população precisa começar a mudar seus hábitos. O setor econômico e o governo precisam assumir seus papeis na pauta da compensação ambiental. Assim poderemos obter recursos para recuperar parte do que foi feito de errado, visando não só o meio rural bem como o crescimento desordenado das cidades.

Blog: Há expectativas e planejamento para que os produtores rurais possam ampliar seus mercados com o propalado crescimento populacional da região?

João Siqueira: Essa é uma questão de suma importância para a região. Não podemos achar que podemos viver somente de royalties do petróleo. O setor rural de nossa região está em falência. Não podemos deixar esse patrimônio que é nosso desaparecer. A produção de alimentos é imprescindível para a sobrevivência da população. Podemos produzir sem agredir o meio ambiente, podemos reativar o nosso parque sucroalcooleiro, a exemplo de todo o Brasil, pois temos tecnologia para fazermos isso de forma sustentável. Apenas isso ainda não interessa aos governantes, pelo menos enquanto não retirarem nossos royalties.

Blog: Use o espaço para tratar de algum tema que considere importante e que não tenha sido abordado nesta entrevista.

João Siqueira: Acredito ser a primeira vez que a sociedade está inserida nos processos decisórios para aplicação dos recursos destinados à nossa região. Precisamos aproveitar essa oportunidade e fazer dela a nossa redenção. Pelo menos nos assuntos que afligem há muito o setor rural, a pesca, a indústria e todos os moradores de nossa baixada. Temos que nos preparar para as mudanças que certamente virão e aprender a buscar soluções de forma verdadeiramente democrática e que representem a vontade de todos. Sei que é difícil esse caminho, mas é o que nos dará a sustentabilidade de que necessitamos para vivermos com a dignidade que merecemos. Por falar em dignidade, penso que o estado do Rio precisa desenvolver o seu interior, de forma ordenada, sadia e igualitária. Acredito estar sendo utópico, mas é o que eu gostaria de ver, meu interior com recursos maiores que a cidade maravilhosa, porque para mim cidade maravilhosa é CAMPOS DOS GOYTACAZES.

3 comentários:

Anônimo disse...

Enfim uma voz sem partidarismo e alicerçada na prática. Parabéns João Siqueira.
Luciana Portinho

Luiz Felipe Muniz disse...

É preciso muito mais do que boa vontade, pragmatismo e conhecimento de causa, as carências regionais são profundas e estão no campo político sim.

As questões socioambientais urgem, particularmente com relação à água, e, não é de agora que muitos vem tentando adestrar o analfabetismo ecológico reinante por aqui e acolá...

De qualquer forma sinceros parabéns, João Siqueira pelo seu esforço e dedicação!

Edmundo Siqueira disse...

Fico muito feliz e orgulhoso de ver a sociedade civil organizada mostra-se cada vez mais forte no Brasil e cada vez mais se torna uma via para obter resultados mais imediatos, palpáveis e alinhados ao bem coletivo.

E mais orgulhoso ainda por ser meu PAI esse aí!! rsrsrs