domingo, junho 07, 2015

Harvey: "Segregar espaços numa cidade equivale a destruí-la"

David Harvey nesta breve entrevista publicada no caderno Eu& Fim de Semana do Valor, fala mais sobre cidade e a questiona se o intuito não for o de unir e sim, o de separar para lucrar. Confira:

"Segregar espaços numa cidade equivale a destruí-la"
Aos 79 anos, o geógrafo marxista David Harvey dá uma guinada em sua carreira com o livro "Paris, Capital da Modernidade" (Boitempo). Ele se afasta da teoria e abraça a perspectiva histórica, e literária, buscando referências em Flaubert, Baudelaire e Balzac para analisar a profunda reconstrução urbana pela qual Paris passou no fim do século XIX. O livro será lançado com palestra em São Paulo no dia 12, na programação do seminário Internacional Cidades Rebeldes.

Valor: De que forma a Paris do fim do século XIX se relaciona com questões urbanas de 2015? David Harvey: Tanto naquele momento como no atual, o capital começou a afetar cidades de formas muito particulares. Por exemplo, o re-desenvolvimento de grandes áreas, a construção de projetos de larga escala, a desapropriação e o deslocamento de classes mais baixas, a absorção de grandes volumes de capital por meio de empreendimentos. A similaridade desses e de outros elementos, como o boom da indústria de construção e as lutas pelo direito à cidade, foi uma revelação para mim.

Valor: O senhor afirma que "nenhuma ordem social pode passar por mudanças que não sejam latentes à sua condição pré­-existente". Essa lógica não inviabiliza a possibilidade de rupturas políticas?
Harvey: É preciso partir do que já existe para promover transformações: dirigir elementos já existentes para transformá-­los à medida que se desenvolvem, por meio de novas tecnologias, por exemplo. Transformar a cidade para que seja mais justa do ponto de vista social e não apenas para incentivar certos tipos de crescimento econômico. Por exemplo: não há necessidade de megaprojetos, que causam o deslocamento forçado de populações inteiras e levam a um enorme desgaste social. É importante construir boas escolas, moradias sociais que sejam acessíveis financeiramente. Temos de criar cidades para a grande população, e não paraísos de consumo e de investimento para as classes mais altas.

Valor: O senhor atribui à burguesia o processo de extrema segregação de Paris. De que forma isso acontece?
Harvey: É uma mistura de fatores. Por exemplo, a burguesia quer manter intacto o valor de seus principais ativos, os imóveis. Então, tenta evitar mudanças sociais que possam causar a deterioração desse valor. Ambientes muito valorizados precisam ser defendidos de fatores externos, como a mudança de grupos de pessoas que possam ameaçar esse valor. Se o imóvel ao lado do meu está deteriorado, o valor do meu imóvel vai cair. Se eu deixar minha casa se deteriorar, o valor das casas ao seu lado sofrerá da mesma forma.

Valor: Como vê parcerias público-­privadas para criar mais espaço público?
Harvey: Na maioria das vezes, a iniciativa privada leva o lucro, e o Estado, o risco. Acaba funcionando mais como um subsídio para interesses privados. Há situações ­ particularmente, quando se trata de terrenos valiosos, nos quais a iniciativa privada quer por as mãos ­ em que um acordo pode ser funcional. É preciso prover espaços públicos, e é possível forçar o setor privado a proporcionar espaços públicos.

Valor: E quanto aos condomínios fechados? Como enxerga esse fenômeno?
Harvey: O crescente bloqueio dos espaços destrói o sentido de uma cidade. Para mim, cidades são lugares em que um certo nível de conflito é inevitável, dados os encontros entre diferentes classes e culturas. Segregar espaços numa cidade equivale a destruí-la. Você acaba transformando a cidade em uma variedade de mini-comunidades que não dialogam. É a destruição da entidade política que uma cidade deveria ser, unindo forças e liberdades em um ambiente criativo que promove encontros.

Valor: O Brasil passou por dois momentos de protestos nos últimos anos: um, alinhado à esquerda, contra o aumento das tarifas de ônibus e outro, à direita, contra a presidente Dilma Roussef e a corrupção. Como enquadrar politicamente movimentos tão diversos?
Harvey: No meio de tudo isso há um processo de alienação política. A qualidade de vida em grandes cidades é uma questão política fundamental. Muitas pessoas estão descontentes. A qualidade do transporte público pode ser um dos fatores, assim como a corrupção. Além disso, há fatores, como a estrutura do mercado de trabalho e a alienação da população em relação ao sistema político, resultando na sensação de que não há uma democracia plena. Esses fatores levam a movimentos políticos incoerentes, à direita, à esquerda e à estratosfera [risos]. Vimos processos semelhantes em Londres, em Estocolmo, em Paris. A Turquia, que não tinha um histórico de movimentos políticos, passou por uma experiência que ia além da qualidade de vida ou de um parque: tinha a ver com a qualidade da democracia em si. Contudo, esses movimentos são muito voláteis. Não há como saber de onde vêm, quando acontecem ou que forma vão tomar. Procuro entender as causas dessa alienação. Acredito que governos de esquerda podem fazer algo a respeito e dar uma vida significativa para a população por meio de um ambiente político saudável.

Valor: Que países o senhor enxerga como laboratórios políticos? Para onde olhar em busca de novos modelos?
Harvey: Os movimentos anti­-austeridade na Europa. O referendo escocês pela independência, que não era nacionalista, e, sim, anti-­austeridade. Apesar do resultado do referendo contra a independência, nas recentes eleições no Reino Unido o partido nacionalista escocês (SNP) levou todos os votos que antes pertenciam aos trabalhistas. Há movimentos anti-austeridade em Portugal, na Grécia, até na Itália, como uma alternativa em relação a partidos fascistas, fortes na França, Hungria e outros países europeus. É o grande conflito político do momento na Europa: os fascistas contra a nova esquerda. Também observo, por interesse pessoal, a Turquia, em especial o movimento dos curdos no norte da Turquia, próximo à fronteira com a Síria. Lá, há uma forma de socialismo confederado, um governo experimental fascinante. Sem contar que 80% de algumas de suas cidades foram destruídas e que estão cercados por inimigos, como o Estado Islâmico, sem o apoio do governo da Turquia.

"Seminário Internacional Cidades Rebeldes". De segunda a sexta, no Sesc Pinheiros, rua Paes Leme, 195, Pinheiros (SP)."

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