quarta-feira, outubro 21, 2015

Entrevista com Jessé de Souza, presidente do Ipea: "Demonização" do Estado ameaça ganhos sociais"

Muito boa esta entrevista com o cientista social Jessé de Souza presidente do Ipea com a jornalista Flavia Lima, do Valor.

É uma entrevista com um pessoa com posições claras, densas que vai além do debate acadêmico e se insere no debate político contemporâneo com coragem.

Valem registros duas passagens: uma em que ele que questiona o sentido da concepção de meritocracia no sentido de valorizar o esforço individual eliminando o processo social implícito que perpassa o esforço do grupo familiar e mesmo de núcleos sociais mais amplos e de classe.

O segundo registro eu chamo a atenção porque é assunto frequente do blog, quando insisto em mostrar as fragilidades do "mercado" para tratar de políticas públicas, de superação de desigualdades e mesmo da corrupção e sonegação, sem no entanto deixar de reconhecer, como faz o entrevistado Jessé de Souza, de que o setor privado, no sistema capitalista em que vivemos, é ainda a forma mais eficaz de produção de riqueza. A mediação e regulação destas duas questões é tarefa do estado para que a civilização supere o cada um por si e possa se apropriar melhor dos esforços coletivos.

Enfim, vale conferir a entrevista publica hoje, no Valor, P. A12:
"Demonização" do Estado ameaça ganhos sociais, diz presidente do Ipea"
"Para Jessé de Souza, crise é passageira e as ´melhoras´do país sempre defenderam do governo"

O cenário político e econômico atual é passageiro. O que coloca realmente em risco o enorme grupo que ascendeu socialmente nos últimos 15 anos são os esforços de "demonização" do Estado, frequentemente visto como corrupto e ineficiente, enquanto a virtude fica com o mercado. Essa é a preocupação central do sociólogo Jessé de Souza, desde o início do ano à frente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Cuidadoso ao falar sobre o momento atual e buscando sempre separar os papéis de acadêmico e presidente do Ipea, Souza ressalta que não houve, no Brasil, nenhuma melhora nas condições das classes populares que não tenha vindo do Estado. Para ele, as críticas a um possível inchaço estatal servem a uma minoria que "joga água no moinho do esquecimento e do abandono da maioria".

Aos 55 anos, Souza, graduado em direito, tem mestrado em sociologia pela UnB, doutorado na Alemanha e pós-doutorado na New School for Social Research, de Nova York. Em meio à fixação nacional com o tema da corrupção, diz que, obviamente, a ética é uma virtude republicana importante, mas não se resume a alguns partidos e políticos. Fundamental mesmo, ressalta, é fortalecer do Estado como instância principal no processo de eliminação de desigualdade.

Souza está convencido de que Dilma Rousseff conclui o seu mandato. Reforça, no entanto, que a questão que mais o preocupa no momento não é a política nem a economia, mas a social. Após "Batalhadores Brasileiros", de 2010, seu próximo livro sai neste mês e busca ampliar o debate sobre a noção de classe social baseada em renda - algo que o sociólogo refuta. O nome é sugestivo: "A tolice da inteligência brasileira". A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: O sr. é próximo do Mangabeira Unger. Com a saída dele da SAE, o sr. segue à frente do Ipea?
Jessé de Souza: Não muda nada. Tive sempre uma relação muito profissional com ele. E isso tem a ver especialmente com a pesquisa que fiz sobre o grupo que chamo de "batalhadores" - uma nova classe trabalhadora precária. A minha relação com ele se deu no âmbito da realização dessa pesquisa, ele foi um dos estimuladores. Aí ele me fez o convite quando assumiu a SAE.

Valor: Os cortes no orçamento do governo têm afetado o Ipea?
Souza: Tivemos um corte no começo do ano e obviamente fomos afetados pela crise. A maior parte tem a ver com pagamento de pessoal e o nosso orçamento efetivamente discricionário está por volta de R$ 45 milhões.

Valor: O sr. enfrentou reservas ao assumir o Ipea por não ser economista?
Souza: Não sou o primeiro sociólogo, e o Ipea no decorrer dos últimos anos têm mais pesquisas na área social do que econômica. Não é só o mundo da economia. A área social é muito forte e vem aumentando nos últimos anos.

Valor: No começo do ano, o sr. disse que um dos projetos mais caros à sua gestão seria a chamada "Radiografia do Brasil Moderno". Em que pé está?
Souza: É a nossa agenda mais importante. Envolve temas que têm a ver com o equilíbrio fiscal, aumento da produtividade, os impedimentos para inovação tecnológica. Estamos montando estudos com sugestões e aconselhamentos de um marco legal em que essa produtividade pode avançar. Outros temas fundamentais nessa agenda são a infraestrutura no Brasil. Outro tema importante é o da capacidade das estatais. Como a gente pode tornar o Estado ainda mais eficiente e ágil.

Valor: O sr. vê avanços importantes na questão social nos últimos anos? 
Souza: Se pensarmos a história do Brasil no século XX temos o uso do Estado e de seus recursos para beneficiar a maioria da população brasileira, especialmente as classes populares e trabalhadoras, antes de tudo com Getulio Vargas e 60 anos depois com Lula. Houve também Jango que tinha série de questões importantes, mas não houve tempo para que ele pudesse colocar em prática a sua agenda. Pelo contrário: o golpe efetuou um corte muito óbvio nesse tipo de preocupação e o Brasil que passa a ser construído depois do golpe é o Brasil para 20% [da população]. Monta-se uma classe média de padrão americano e europeu, mas para 20% [da população]. Monta-se uma classe média de padrão americano e europeu, mas para 20%. O Brasil foi um país que teve taxas de crescimento econômico das maiores do mundo do século XX, mas com mudanças que não foram significativas no padrão de desigualdade. Isso comprova que o desenvolvimento econômico per se não é distribuidor, não é fator de justiça social. O fator de justiça social é, antes de tudo, a vontade política, e foi isso que aconteceu nos últimos 15 anos. A questão mais importante do Brasil é a desigualdade. É o que separa o Brasil de todos os países que mais admiramos. E foi uma inflexão importante quando dezenas de milhões de pessoas conseguiram melhorar seu salário, aumentar seu poder de compra, ter acesso a empregos formais. Não conheço uma mudança mais importante para o Brasil nos últimos 50 anos.

Valor: Ao mesmo tempo, o sr. refuta a ideia da emergência de uma "nova classe média". Por quê?
Souza: A classe média é uma classe privilegiada desde o nascimento e tem muito mais oportunidades de educação e reprodução destes privilégios. E estes setores que ascenderam não têm esse tipo de privilégio, de nascimento. Eu fiz uma pesquisa antes de minha vinda ao Ipea e vi que essas pessoas precisam combinar trabalho e estudo na adolescência. Mas a denominação não é o fator mais importante. O mais importante é que houve efetivamente uma diminuição da desigualdade brasileira como não havia desde meio século e essa me parece ser a grande herança digna de ser mantida.

Valor: O que não é digno de ser mantido pelos últimos governos? A questão ética seria um exemplo?
Souza: Acho que a questão da ética na política não se refere apenas a alguns partidos e alguns políticos. É uma questão extremamente difícil em todos os lugares. O Brasil tem ganhos importantes na tentativa de tornar isso cada vez mais transparente, o que não acontecia antes. O ganho principal nessa questão é exatamente o aumento da transparência dos negócios públicos. Ninguém está pondo nada debaixo do tapete. E essa questão não está ligada a partidos específicos, é uma questão muito mais complexa, que lida com as relações entre economia e política. E é uma questão problemática em todo lugar e o Brasil está no meio de um aprendizado em como lidar melhor com isso.

Valor: O sr. citou que nossa questão mais importante desde sempre é a desigualdade, mas o foco atualmente está na corrupção...
Souza: Obviamente é uma virtude republicana fundamental a transparência, não apenas nos negócios públicos, mas também nos negócios privados. Mas como cientista social não posso deixar de dizer que existe uma contraposição entre uma demonização do Estado - como se apenas o Estado fosse corrupto ou ineficiente - e o mercado visto como a virtude. Isso é algo que está nas ciências sociais brasileiras e depois passa pela escola, pela imprensa, etc. Uma questão importante nesse particular é que o Estado é fundamental para ajuda das classes populares. Sempre que houve alguma melhora nas condições das classes populares, essa melhora sempre veio do Estado. Então, uma demonização do Estado enquanto corrupto e ineficiente pode também ser uma leitura da defesa de que o Estado seja usado para uma minoria, o que eu acho preocupante. O fortalecimento do Estado como instância principal no processo de eliminação de desigualdade é fundamental. Acho preocupante esse tipo de polarização, pois não ajuda a ninguém e nem e nem que se avance no processo de eliminação da desigualdade e miséria, em que se precisa de um Estado forte e atuante.

Valor: O sr. é um crítico à visão patrimonialista do Estado, tema inclusive que o ministro Joaquim Levy escolheu para falar em sua posse...
Souza: É um tema para o debate acadêmico, não vem ao caso fazer a discussão do discurso do ministro. A única coisa que me preocupa é que, no jogo político, existem legitimações para amparar o fato de que o Estado seja enfraquecido e eu não acho que isso seja uma boa. Em minha opinião, o Estado é um instrumento absolutamente fundamental para a própria vida econômica - na Alemanha, França e inclusive nos EUA, o Estado tem um papel impor como indutor da produtividade. E num país como o nosso, assolado pela desigualdade, o Estado é fundamental a para continuar o trabalho que começou nos últimos anos. Acho que o debate principal entre nós não é o patrimonialismo, mas a desigualdade. Obviamente que o Estado sempre pode ser mais eficiente, mais enxuto, mais ágil e isso é sempre bom, mamas deve servir antes de tudo para eliminar desigualdade e garantir a todos oportunidades iguais.

Valor: A quem interessaria essa demonização?
Souza: São as opções políticas contrárias a isso. Opções que a meu ver jogam água no moinho do esquecimento e do abandono dessa maioria que, no fundo, foi a regra da história brasileira.

Valor: O sr. não acha curioso que as massas menos favorecidas incorporem tão bem esse discurso do Estado ineficiente?
Souza: Existem processos de aprendizado político. A democracia no Brasil é muito jovem ainda. Especialmente essa nova classe trabalhadora é a grande novidade social, econômica e política dos últimos 50 anos. O futuro do Brasil depende para onde essa classe apontar. Ela é, obviamente, objeto de disputa política, pois é uma espécie de fiel da balança. Essa classe foi a que mais foi beneficiada pelos programas sociais, como crédito a pequenos produtores, o Minha Casa, Minha Vida, e o aumento de vagas nas universidades. Para mim, o debate não está decidido, está em andamento e exige uma melhor compreensão desta classe, que é extremamente heterogênea.

Valor: Essa classe pode estar se sentindo traída pelo governo em razão do ajuste fiscal e da suspensão de programas importantes?
Souza: Não vejo desse modo. Tanto o presidente Lula quanto a presidente Dilma focaram o seu governo em programas de benefícios às classes populares. E o Brasil atravessa uma fase que é temporária e tem a ver com circunstâncias internacionais. Não temos mais a mesma pujança da China, que foi o nosso grande mercado. Há uma retração que é muito geral e eu acho que esse é um fator muito marcado no tempo. Acho que depois de um ajuste, como está sendo feito, voltaremos a ter condições favoráveis ou até mais do que tínhamos antes.

Valor: Estamos mais conservadores ou sempre fomos?
Souza: A sociedade brasileira sempre teve resquícios conservadores e isso tem a ver com o passado escravista e com outras funções também. Aceitou-se no Brasil, secularmente, o abandono de classes inteiras. Essas pessoas foram condenadas ao esquecimento e isso é, obviamente, um dado conservador, a meu ver, inadmissível. Ninguém escolhe ser pobre ou humilhado. E acho, então, que o grande conflito histórico brasileiro sempre foi uma sociedade para poucos, onde os recursos de que o país dispõe são monopolizados por uma pequena minoria.

Valor: Como o sr. avalia as manifestações mais recentes contra o governo, que mobilizaram gente por todo o país, especialmente nos grandes centros? 
Souza: Há efetivamente um dado aí que precisa ser mais bem estudado. Uma acusação que diga que a classe média em sua totalidade é conservadora é falsa. Porque a classe média, como todas as outras classes, é muito heterogênea. Existem frações na classe média que são inclusive de pessoas comprometidas com um Brasil mais igualitário. Só uma pesquisa empírica, qualificada, pode responder.

Valor: O sr. também usa um conceito importante de divórcio entre interesse público e privado. A quantas anda essa separação?
Souza: Historicamente, não há forma mais eficaz de produção de riqueza do que o mercado. Ou seja, se estimula a competição, a inovação, etc. Ao mesmo tempo, em todo lugar, o mercado produz desigualdades. Ele não produz justiça social nunca, em nenhum caso historicamente. Daí a importância do Estado. Essas pessoas não são os menos capazes, mas os que não tiveram as mesmas condições de ter igualdade de oportunidade desde o berço. Em todos os casos históricos onde se construiu sociedades mais igualitárias, como Suécia, Alemanha, França, em todos os casos foi uma ação política patrocinada e dirigida a partir do Estado, algumas vezes em articulação com o poderio econômico. Mas em países como o nosso a ação do Estado é simplesmente decisiva. Historicamente, sempre que houve melhoria das classes populares, ela sempre veio do Estado. E note-se que essa ajuda é muito mais investimento, pois gera emprego, extraordinário dinamismo econômico, além da melhoria da relação entre as pessoas, segurança social. Isso mostra não só que não é uma ajuda de caridade, mas o imperativo da inteligência.

Valor: E por que, na avaliação do sr., uma parte da sociedade ainda se prende a essas percepções de caridade, de (falta de) esforço, de meritocracia...  
Souza: Meritocracia não existe enquanto tal. Porque não existe nenhum mérito individual que não tenha sido constituído socialmente. Quem imagina que conseguiu unicamente por si deve aos pais, mas não só aos pais, deve à classe. São privilégios de classe que algumas crianças cheguem aos cinco anos já como vencedoras na escola. Não existe nenhum mérito que seja milagroso. Sempre se deve a certa estrutura social. E aqui eu acho que o esforço que o governo vem fazendo é de exatamente minimizar essa perda de origem que as classes populares têm entre nós, com mecanismos de transferência de renda e maiores oportunidades de educação. Quando digo 'perdas de origem', me refiro à falta de privilégios de origem como os que a classe média tem. Não é só menos dinheiro. É a reprodução de um passado marcado por carência e necessidade.

Valor: Nessa equação, o que mais o preocupa hoje, a economia ou a política?
Souza: A situação tanto econômica quanto política sempre me interessa apenas na medida em que ela pode ser viabilizadora de uma melhora do social. Obviamente lamento o grau de polarização atual. As questões não estão sendo discutidas com serenidade, tem um acirramento de ânimos que é até novidade entre nós. Eu tenho 55 anos e não me lembro de ter vivido uma época com tanta polarização. Mas acho que ela tem que dar espaço a uma discussão que tem que ser argumentativa e racional. Para que aí a gente possa ver onde está o interesse da maioria da população.

Valor: A presidente termina o mandato?
Souza: Estou convencido que sim.

Valor: Como o sr. avalia as tentativas de emplacar o impeachment?
Souza: O princípio básico da democracia moderna é um só: a soberania popular. Violar esse princípio é violar a ordem democrática no seu âmago. Não tem saída para isso. O voto e a soberania popular têm que ser respeitados. Acho que isso é extremamente importante para o Brasil hoje, para que não se reviva coisas do passado e que acho que ninguém tem na memória como fato positivo. Falo da tradição de golpes de Estado e a tradição de solapamento da ordem democrática.

Valor: Corremos o risco de retroceder em termos sociais?
Souza: A chance existe, mas eu não acredito nela. Eu acredito que esse instante político é um instante político é um instante breve, que está perto de uma resolução de modo que a gente possa se ater as questões essenciais - a pauta social, inclusiva. Precisamos ver como vamos tornar mais produtivo o trabalhador que vem dessas classes. Não só a produtividade tem a ver com a inovação tecnológica de empresas, questão extremamente importante, mas também esse outro lado de ver que nenhuma nação se moderniza se não capacita o seu povo. Esse é o grande desafio social, político e econômico brasileiro agora.

Valor: O sr. veio de uma família de classe média, de batalhadores?
Souza: Acho que minha família é mais de batalhadores.

Valor: Que conselhos o sr. daria para este grupo neste momento?
Souza: Quem sou eu para dar conselhos a essas pessoas que conseguiram avançar enormemente na sua vida mesmo enfrentando situações adversas? O título que dei a minha pesquisa sobre batalhadores foi justamente uma homenagem a esse esforço hercúleo, de pessoas que trabalham e estudam e quem já fez isso sabe o quanto é difícil. Se eu puder me atrever a dar uma sugestão e um conselho é que o instante não é de desesperança. É temporário. Acho que o Brasil volta em breve ao ciclo virtuoso em que ele viveu nos últimos 15 anos.

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