terça-feira, outubro 13, 2015

Soffiati defende que a Lagoa de Iquipari é parte do contexto de toda a restinga

O professor, historiador e ecologista Aristides Arthur Soffiati em mais um artigo escrito para o blog, defende que não se deve analisar as lagoas costeiras sem considerar toda a restinga.


A foz do Paraíba do Sul (I)
Arthur Soffiati
Formação geológica e aspectos ambientais
            Tanto Alberto Ribeiro Lamego (1945-54) quanto Martin, Suguio, Dominguez e Flexor (1997) explicam a formação da grande restinga na foz do Rio Paraíba do Sul como uma construção oriunda da ação das correntes marinhas associadas ao rio. A corrente marinha dominante, segundo as duas interpretações do complexo delta do Paraíba do Sul, desloca-se ainda hoje de oeste para leste-norte.

Figura 1- Primeira fase da construção da planície fluviomarinha do Paraíba do Sul. As linhas com setas indicam a direção da corrente marítima principal. A restinga estudada neste artigo será construída entre as ilhas alongadas e a linha pontilhada. Mapa concebido por Martin, Suguio, Dominguez e Flexor
           
            Para ambas as interpretações, uma restinga se forma pela existência de algum obstáculo sólido, natural ou artificial. Em 1940, Lamego enfrentou um dilema metodológico e empírico. Ele foi um ardoroso defensor das obras de dragagem e drenagem efetuadas primeiro pela Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense e depois pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), sucessor da primeira. Tecnicamente, não era difícil transferir as águas de enchente do Rio Paraíba do Sul para as lagoas da margem direita do rio. Como há uma ligeira declividade no terreno da margem direita, a abertura de canais poderia conduzir a água de cheia para as lagoas, como já acontecia naturalmente pelos drenos naturais. Os canais geométricos acelerariam o deslocamento de água do rio para lagoas e destas para outras. No final, poder-se-ia abrir canais para o escoamento das águas para o mar. No entanto, ponderava ele, as correntes marinhas são tão fortes na costa norte fluminense que a tendência era o fechamento das barras desses canais, a menos que a vazão deles fosse grande para mantê-las abertas, como demonstravam os Rios Paraíba do Sul e Itabapoana. Fixar a barra com estruturas construídas com material sólido contribuiria para reter areia de um lado, formando uma restinga, e provocando erosão do outro lado. Foi o que aconteceu com o espigão oeste de Barra do Furado, engordando a praia de Quissamã e erodindo a praia da Boa Vista do lado de Campos.

            Não havendo quem construísse uma estrutura de pedra na foz do Rio Paraíba do Sul, como uma tão extensa restinga poderia se formar? Para Lamego e os quatro geólogos, o jato do rio entrando no mar funcionou como um espigão líquido, retendo areia do lado sul e lançando o excedente arenoso para o lado norte.

            Examinando esta restinga em mapas e imagens de satélite, verifica-se que ela se formou em faixas paralelas ao litoral (processo de transgressão/regressão). No setor norte da restinga, a areia acumulada junto ao tabuleiro vedou antigos córregos, que se transformaram em lagoas perpendiculares à costa. O recuo progressivo do mar formou as Lagoas do Campelo, ligada ao Paraíba do Sul pelo Córrego da Cataia, e vários brejos entre os cordões arenosos da restinga, sendo o de Cacimbas o mais expressivo. Em direção à linha da costa, sucedem-se os Brejos dos Cocos, dos Farias e do Mangue Seco. Junto ao litoral, registram-se as Lagoas do Comércio, da Taboa e da Praia.


Figura 2- Setor norte da restinga do Rio Paraíba do Sul: 1- Rio Paraíba do Sul; 2- Lagoa do Campelo; 3- Córrego da Cataia; 4- Lagoa do Arisco; 5- Brejo de Cacimbas; 6- Brejo dos Cocos; 7- Brejo dos Farias; 8- Brejo Mangue Seco; 9-Canal principal do delta (Atafona); 10- Canal secundário do delta (Gargaú). Mapa: Alberto Ribeiro Lamego (1954)


Figura 3- Lagoas na margem esquerda do Rio Paraíba do Sul junto ao canal de Gargaú: 1- Lagoa do Comércio; 2- Lagoa da Taboa; 3- Lagoa da Praia. Imagem Google Earth

            Na margem direita, o processo de formação foi o mesmo: avanços e recuos progressivos do mar junto à planície aluvial, formando uma sucessão de imensas lagoas emendadas como pérolas de um colar. O sistema mais interno, entre a planície aluvial e a restinga, era constituído pelas Lagoas do Taí Pequeno, dos Jacarés, da Bananeira, do Pau Grande e Brejo do Riscado. Ao lado desse curso e paralelo a ele, outro era formado pelas Lagoas do Taí Grande, do Quitingute, do Camará, Salgada e da Ostra. Ambos os sistemas sugeriam dois grandes cursos d'água que ora se alargavam em lagoas, ora se estreitavam em córregos. Os dois ligavam os Rios Paraíba do Sul e Iguaçu. Este segundo reunia vários defluentes da Lagoa Feia, formando um curso d'água que, como era muito comum na baixada, alargava-se e estreitava. Dois alargamentos mais conspícuos constituíam a Lagoa do Lagamar, onde, por ocasião das cheias, a praia se abria para o mar e formava a Barra Velha, e o Banhado da Boa Vista. No estreitamento final, o Iguaçu projetava-se no mar.

            Nas enchentes, águas do Paraíba do Sul entravam nesses dois cursos e corriam para o Rio Iguaçu. Do segundo curso, partiam as Lagoas de Gruçaí e Iquipari, que funcionavam como braços do grande delta. Entre o Rio Paraíba do Sul e a margem esquerda da Lagoa de Gruçaí, havia um pequeno curso a ligá-las e formando a Lagoa da Barreira. Entre a barra da Lagoa de Iquipari e a foz do Rio Iguaçu, havia, íntegra, a Lagoa do Veiga, estreito sistema hídrico paralelo à costa, que se juntava ao Rio Iguaçu em seu desaguadouro. Havia ainda um canal natural entre o Rio Paraíba do Sul e a Lagoa de Gruçaí, conhecido pelos antigos como valão. Parte do que restou dele está assinada em azul na figura abaixo.


 Figura 4- Extinto valão de Gruçaí. Imagem Google Earth


Figura 5- 1- Rio Paraíba do Sul; 2- Lagoa do Taí Pequeno; 3- Lagoa dos Jacarés; 4- Lagoa de Bananeira; 5- Lagoa do Pau Grande; 6- Brejo do Riscado; 7- Lagoa do Taí Grande; 8- Lagoa do Quitingute; 9- Lagoa da Ostra; 10- Lagoa Salgada; 11- Lagoa de Gruçaí; 12- Lagoa de Iquipari; 13- Lagoa do Veiga; 14- Rio Iguaçu. Mapa: Alberto Ribeiro Lamego (1954)

Vegetação nativa
            Num solo arenoso, como o das restingas, as vegetações existentes nas formações geológicas de sua retaguarda são selecionadas pela salinidade existente no substrato e transportada pelos ventos. Estes são os dois fatores limitantes principais. Os ventos contribuem para a constituição de zonas de vegetação. A praia, sendo lavada pelas ondas do mar e pelas marés, não contém plantas. Logo a seguir, existe uma faixa de plantas herbáceas numa zona de 400 metros, mais ou menos, na restinga da foz do Paraíba do Sul. Os 300 metros seguintes são ocupados por plantas arbustivas. No final, há uma zona com árvores que podem alcançar grande porte. Nas depressões intercordões, acumula-se água e as plantas precisam se adaptar à umidade. A zonação decorre dos ventos, que vão perdendo intensidade à medida que se afastam da costa e pela redução causada pela própria vegetação. Uma análise mais detalhada mostra que estas grandes zonas podem ser divididas em menores.


Figura 6- Vegetação nativa de restinga, vendo-se as Lagoas de Gruçaí e de Iquipari correndo paralelas. Foto: Dina Lerner (1992)

            Nos pontos em que a água doce dos rios se encontra com a água salgada do mar, formam-se estuários, ambientes de água salobra propícios ao arraigamento de manguezais, formações pioneiras de influência fluviomarinha. O delta do Paraíba do Sul é formado pelo braço de Atafona - o principal - e o braço de Gargaú - secundário. Desenvolveu-se aí um dos dois maiores manguezais do Estado do Rio de Janeiro. Os manguezais são formados por espécies vegetais exclusivas desse ecossistema, como o mangue branco, o mangue vermelho e o mangue preto, e por espécies associadas. Existem também espécies animais exclusivas, como o caranguejo-uçá, e espécies associadas e visitantes. Formaram-se também manguezais na foz das Lagoas de Gruçaí, Iquipari e do Rio Iguaçu.


 Figura 7- Manguezal do Rio Paraíba do Sul (Riacho dos Macacos). Foto do autor (1992)

            Em linhas gerais, traçou-se o perfil da restinga do Rio Paraíba do Sul do que denomino terceira ecofisionomia da Ecorregião de São Tomé na época holocênica. Esta época tem cerca de 12 mil anos e já foi maior que a atual nos primórdios do Holoceno. Era, então a primeira ecofisionomia da ecorregião. Em seguida, o mar começou a subir e a invadir o continente. Essa elevação formou, então, a segunda ecofisionomia. Com o recuo do mar e o avanço do continente, agora formado por sedimentos transportados pelo Rio Paraíba do Sul, principalmente, constitui-se a terceira ecofisionomia, a que os europeus encontraram quando aqui chegaram e da qual existem ainda incontáveis remanescentes.

            Em conclusão a este artigo, o primeiro de dois, pode-se afirmar que:
1- É bastante artificial esquartejar a restinga em bacias ou em qualquer outro fragmento para estudos acadêmicos. Uma bacia, como a da Lagoa de Gruçaí ou do Veiga, pode ser estudada, mas sempre inserida no seu contexto maior. No máximo, pode-se dividir a restinga em norte e sul, setores já separados pelo grande rio.

2- Esta é talvez a mais úmida restinga do Estado do Rio de Janeiro por ter sido construída/destruída pela associação do oceano com o Rio Paraíba do Sul. Nas duas seções, ela abrigava rios caudalosos e lagoas expressivas.

3- A biodiversidade nos setores norte e sul era muito rica em plantas, invertebrados, peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos.

            No segundo artigo da série, analisaremos o processo de destruição da terceira ecofisionomia da Baixada dos Goytacazes e a construção da quarta ecofisionomia pela ação humana. Trata-se de uma intervenção no ambiente a partir do fim do século XVII que ainda está em curso e que tenta substituir a geometria fractal do território por uma geografia euclidiana.  

Nenhum comentário: