sexta-feira, outubro 25, 2019

O exemplo para a América Latina é o Uruguai. Nunca foi o Chile

Estou no Uruguai há nove dias. Passamos por três dos 17 departamentos (como chamam por aqui as províncias ou estado, mas na verdade cidades). O Uruguai tem pouca extensão territorial e baixa densidade demográfica. Possui área 50% menor que o Rio Grande do Sul e uma população de 3,5 milhões de habitantes, pouco maior que metade da população apenas da cidade do Rio de Janeiro.

Por coincidência chegamos aqui pouco antes de estourar as manifestações contra o governo no Chile. Os dois países são extremos. O Chile é o país mais desigual e injusto da América Latina, enquanto o Uruguai se transformou, nos últimos anos, na nação mais igualitária da América Latina e do Caribe.

As pessoas que vive em situação de pobreza passaram de 40% em 2004 para 8,6% em 2019 com a ampliação dos investimentos sociais que aumentaram 136% em 13 anos. Os investimentos em educação subiram seis vezes, em saúde subiram mais da metade, saindo de 4% para 6,8% do PIB e em assistência e segurança social saiu de 11,4% para 14,1% do PIB. O salário mínimo cresceu 300%. Foram criados cerca de 500.000 novos postos de trabalho. As aposentadorias cresceram 65% acima da inflação. Em resumo isso explica porque a opção de 3 mandatos da Frente Ampla do Uruguai, partido de centro-esquerda levou o Uruguai numa direção e o Chile em outra.

O Uruguai se vê uma relação harmoniosa entre as áreas rurais e urbanas e uma distribuição espacial equilibrada. Desde 2011, o PIB total do Uruguai cresceu 19%, período em que outras nações latinas começavam a perder força econômica. Mesmo nos quesitos fiscais o Uruguai melhorou. Entre 2004 e 2018, a dívida do Uruguai reduziu de 78% para 41% do PIB e deixou de estar relacionada a organismos internacionais como o FMI e hoje é considerada uma dívida soberana e mantida internamente. O déficit fiscal caiu para apenas 2%.

Assim como na Argentina, escolhi esse período para passar por estes dois países, não apenas para conhecer mais essa região do sul global, mas também para observar as movimentações políticas nos dois países que vivem, no mesmo dia, próximo domingo 27 de outubro, as eleições gerais no país para o executivo e legislativo nacional e regionais.

Da mesma forma, como comentei quando passamos pela Argentina, é difícil de forma pontual identificar questões que possam explicar a relação entre a política, a vida das pessoas num país com observações ligeiras.

Porém, algumas dessas observações são clarividentes. O Uruguai fez uma opção por um desenvolvimento mais igualitário depois que a centro-esquerda através da Frente Ampla (FA) chegou ao poder depois de um século de poder dividido entre o Blanco e o Colorado.

Hoje, o Uruguai tem mais partidos e candidatos. São nove ao todo. Aproveitando disso, assim como na Argentina que elegeu Macri e no Brasil Bolsonaro, no Uruguai depois de 15 anos de gestões de centro esquerda, bem sucedida, a direita planeja se juntar para retomar o poder, apesar de todos os resultados sociais obtidos. Os mecanismos parecem muito parecidos. A mídia comercial faz o mesmo trabalho a favor dos candidatos da direita e as redes sociais, com muito dinheiro, trabalham a todo vapor de forma semelhante ao que se viu no Brasil.
Na última semana, a Frente Ampla liderada pelo engenheiro Daniel Martinez, candidanto a presidente da República e por Graciela Villar a sua vice, e que tem ainda, o ex-presidente Pepe Mujica e sua esposa, a senadora Lucia Topolanski como candidatos ao Senado vem crescendo a empolgação com muito militantes nas ruas e grandes atos finais de campanha. 

A última pesquisa eleitoral (sondagem) divulgada ontem (24/10) indicam que ampliou a liderança do Martínez com 43,6% a favor da Frente Ampla que tenta vencer no primeiro turno (volta), para evitar a junção dos ricos candidatos de direita no segundo turno (volta). 

A votação para o congresso aqui é por listas fechadas. O principal adversário da Frente Ampla é o Luis Lacalle Pou do Partido Nacional que está com 24,5%. Talvi do Partido Colorado tem 15,8%. O candidato de extrema direita, similar ao Bolsonaro, é o Manini Rios do novo partido Cabildo Abierto está com 9,5%.

A crise na Argentina de Macri, a triste situação do Brasil e a convulsão social no Chile estão servindo de mote no debate político no Uruguai que assim tenta evitar o retrocesso no seus desenvolvimento com mais justiça social.

Apesar da dimensão menor, o caso do Uruguai merece ser melhor conhecido e estudado, tanto em termos econômicos, quanto em termos de desenvolvimento social, territorial e político. É um contraponto no extremo sul da América Latina.

Ao contrário do que os defensores do neoliberalismo vendiam, o exemplo para o continente, não é o Chile e sim o Uruguai. Gestões como a do Uruguai é que podem impedir o caos chileno.

Os uruguaios vivem uma politização interessante. Há uma polarização perceptível, mesmo com mais partidos na disputa.

Há ainda, como é natural, um desgaste para o grupo político que está no poder há 15 anos, porém há também hoje, exemplos dos riscos da população perder o que se conquistou. Aliás, esta ideia está muito bem refletida no bom tema da campanha da Frente Amplio: “No perder lo bueno, hacerlo mejor. Tus sueños siguen al frente!"

Que os uruguaios saibam escolher o melhor caminho neste domingo.


PS.1: Atualizado às 11:10:
Também há ricos no Uruguai, mas eles são em menor número e concentram um pouco menos riquezas, o que leva a uma maior distribuição de renda. Porém, a pressão por voltar a concentração é muito grande diante do sistema dominante no mundo com o qual o Uruguai é parte. Até por isso, o "case" se torna ainda mais relevante.
Está em curso no Uruguai uma Estratégia Nacional de Desenvolvimento 2050, portanto de longo prazo. Há um projeto muito interessante na área de Ciência e Tecnologia com desenvolvimento de Inovação e Indústria Criativa com um importante Laboratório Tecnológico (veja aqui) com apoio a pequenas e médias empresas, mas tudo sem deixar de lado a atenção às pessoas e à cultura.

PS.: No último dia 15 de outubro de 2019, eu também publiquei no perfil do blog no Facebook uma descrição sobre o processo político na Argentina naquele dia que pode ser visto aqui. Nele há textos e fotos que também reproduzo abaixo.

Estou na Argentina há uma semana e tenho visto de perto a condição de vida dos irmãos argentinos, depois de 4 anos de governo Macri.
Aqui os ricos continuam a viver bem, apesar das condições de violenta crise econômica e social no país.
A Argentina tem hoje uma inflação anual próxima de 60%. O dólar hoje ultrapassou 60 pesos. A Argentina vive hoje a sétima maior recessão do mundo com redução das atividades econômicas.
A pobreza atinge 35% da população. No desgoverno Macri mais 15 milhões de argentinos passaram a ficar abaixo da linha da pobreza, sendo 2,7 milhões só nos últimos meses.
Diz-se aqui que a Argentina que é um país das vacas, a população está deixando de comer carne e tomar leite. O consumo de carne e leite no país tem a maior queda em décadas. Nem no pico da crise (do “corralito”) em 2001, houve tanta redução do consumo de carne e leite.
Esse quadro estatístico se observa nas ruas, onde crianças, velhos e adultos estão pelas calçadas.
Pois bem, neste quadro, eu assisti no último domingo ao primeiro debate presidencial, agora obrigado pela legislação eleitoral (o que não acontece no Brasil) entre os seis candidatos, embora polarizado entre Alberto Fernandéz da oposição e o atual presidente Maurício Macri. Antes das eleições no dia 27 de outubro, haverá um segundo debate obrigatório no próximo domingo.
Difícil para quem é de fora avaliar todo o quadro político, a partir de algumas observações pontuais e um debate político televisivo de cerca de duas horas.
Porém, é possível observar que o neoliberalismo de Macri resultou num fracasso completo. Imagine, um candidato à reeleição defender dados e indicadores de seu desgoverno, tentando fazer crer à população que tudo que só fez pior em 4 anos, a partir de sua reeleição irá melhorar.
Nas ruas se diz que Macri agora está desesperado. Promete o que não fez. Atacou as pequenas empresas, os donos dos “kioskos”, agora diz que terá um programa para eles, embora se saiba que o seu cuidado é com as grandes corporações.
Fernandéz tem como lema de campanha “Argentina de pé” e parece que hoje já inicia uma articulação que parte do setor produtivo, mas deixando claro que é preciso acabar com a fome (fambre), cuidar dos pobres, dos trabalhadores e aposentados reduzindo as desigualdades sociais e promovendo inclusão social.
Após as prévias eleitorais que indicaram grande vantagem de Fernandéz, parece que essa diferença só aumenta. A segurança do opositor no debate demonstra uma direção.
Enfim, a Argentina tem pela frente um grande desafio. Porém, a coragem deste povo, em especial de suas mulheres guerreiras é algo de emocionar, que pude ver de perto em duas manifestações nesta última semana.
A politização do argentino é algo interessante e se poder ver isso nas ruas e bairros mais periféricos. Os liberais e neoliberais veem isso como um problema. Porque se põem como neutros para implantar um governo de ricos e para os ricos.

PS.: Ao lado e abaixo três imagens. Uma foto da manifestação dos movimentos sociais nas ruas centro de Buenos Aires no dia 10 de outubro. A segunda é da pintura “El hambre” (A Fome) de Diana Dowek (1942) que vi numa exposição no Museo de Arte Modernos de Buenos Aires e que retrata o quadro não apenas argentino, mas de outras nações sul-americanas, neste período de desastre neoliberal em nosso continente. A terceira imagem é de um velho e forte militante peronista que ao saber que éramos brasileiros gritou: Lula Livre! ao mesmo tempo que mostrava toda a sua indignação contra a mídia comercial.

 

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