terça-feira, março 16, 2021

Plataformas digitais e Big Techs: inovação, financeirização e monopólio

Há algum tempo, ao abordar as plataformas digitais e o capitalismo de plataformas, eu venho tentando chamar a atenção para a relação entre inovação e financeirização no mundo atual.

Elas são almas-gêmeas e estão fortemente imbricadas e inter-relacionadas. Não existiriam as Big Techs sem a financeirização hegemônica no capitalismo contemporâneo. Assim, esse oligopólio da dominação tecnológica vai em direção ao desejo original de monopólio do capitalismo.

A financeirização apoiada pela tecnologia se aproxima da obtenção do monopólio de controle sobre o sistema que extrai o valor do trabalho e elimina, sem nenhum pudor, a concorrência de mercado.

 plataformização, as empresas-raiz-plataformas, não apenas transformam o Modo de Produção Capitalista (MPC), mas avançam com a força do poder de monopólio que manipula a política e controla o Estado.

As plataformas-raiz são as corporações que exercem a dominação tecnológica e avançam como predadores ou vampiros, capturando e engolindo as concorrências e promovendo aquilo que já foi amplamente estudado, só que como hipótese, que agora está prestes a ser realizar o antimercado. 

Essas primeiras leituras são partes das investigações científicas sobre dois movimentos que venho acompanhando mais de perto. Elas buscam compreender a extensão do fenômeno do capitalismo de plataformas ou do processo que venho chamando de “plataformização” ou “plataformismo”.

Trata-se de uma etapa mais recente do Modo de Produção Capitalista (MPC), que antes passa pelo taylorismo (fordismo) e pelo Toyotismo, mas sem deixar de conviver com estas fases anteriores, agora, sob novas roupagens, como o neo-taylorismo do trabalho precarizado e supervisionado pelos aplicativos. Já abordei esse assunto no artigo “Commoditificação de dados, concentração econômica e controle político como elementos da autofagia do capitalismo de plataforma”. [1]

 

E-commerce de varejo, meios de pagamento, rentismo e financeirização

Os dois processos a que me refiro, substantivando-o, passa ainda pela migração do comércio tradicional para o e-commerce de varejo e para a startupização. Assim, a inovação tecnológica e o empreendedorismo, estão sendo capturados pelo setor financeiro que desta forma elimina os custos e os riscos da inovação, ao mesmo tempo em que garante o controle dos “ativos vencedores” da economia real na atualidade.

De forma breve, é possível observar o movimento no comércio e circulação das mercadorias em que atuam as empresas-plataformas do e-commerce de varejo, tema tratado no meu artigo “Disputa no e-commerce de varejo no Brasil: Entre o intangível do digital e a materialidade da infraestrutura de logística” [2].

Em síntese, identifica-se nesse processo, uma migração da era do boleto, passando pelo cartão de fidelidade, chegando agora ao “superAPP”, os aplicativos que integram as vendas no e-commerce de varejo às operações financeiras decorrentes dos meios de pagamento.

Só para ter uma ideia, o Mercado Pago, um braço da empresa-plataforma de e-commerce de varejo, o Mercado Livre, hoje, movimenta duas vezes e meia mais dinheiro, do que a venda de mercadorias no shopping virtual, incluindo o marketplace. Em 2020, foram US$ 50 bilhões em transações financeiras contra US$ 20 bilhões na venda de mercadorias. Números da atuação do Mercado Livre nos 18 países em que está presente na América Latina.

Sem tomar muito tempo, vou citar dois outros exemplos que demonstram bem, como o rentismo entra no interior da economia real para extrair excedentes, promovendo um ciclo de acumulação financeira, ainda mais potente, a partir da base tecnológica das Big Techs (que ficam com sua parte).

O rentismo avança através da inovação dos meios de pagamentos digitais. Ele migra do esquema dos bancos tradicionais e é potencializado pelas fintechs (financeiras tecnológicas), com articulação dos fundos financeiros, que estão na base (background) deste movimento do capital junto aos fluxos financeiros que circulam no potente comércio do varejo hoje ampliado pelas vendas digitais.

Outro caso é do ramo da mídia corporativa. Enquanto a rentabilidade do grupo Folha de São Paulo patina com as suas várias empresas, a Pag Seguro (das maquininhas), teve um lucro líquido em 2020, ano da pandemia, de nada mais nada menos, que R$ 1,4 bilhão.

O terceiro caso empírico para explicitar a relação entre a economia real e a financeirização é de uma corporação do varejo, a Riachuelo através do seu braço financeiro, a Midway (em vias de ser oficializada como banco).

A Midway com o seu cartão (RCHLO) além de ser responsável por cerca de metades das vendas do grupo (nas lojas ou e-commerce), possuía em 2020, uma carteira de crédito com R$ 3,7 bilhões e ativos de R$ 6,2 bilhões. A Midway já possuía em 2020, uma das 10 maiores bases de clientes perante o Banco Central, sendo a maior entre as financeiras do segmento varejo, trabalhando com 32,4 milhões de cartão de crédito para vendas, empréstimos pessoais, cobranças digitais, etc.

Poderia citar vários outros exemplos em que lucros financeiros definem os lucros líquidos totais de grandes grupos e corporações. Os três exemplos acima (e-commerce, mídia e varejo) são ilustrativos para identificar como o rentismo e a financeirização foram se tornando parte dos negócios das empresas (o mais rentável) e não um setor à parte como antes. A digitalização e as plataformas estão aumentando a potência destes negócios imbricados ao esquema rentista-financeiro.

Por isso, a discussão sobre taxas de juros passa a ser uma questão mais complexa, que supera a dualidade que se fazia entre o setor bancário e financeiro e a economia real. Tema que gerava (e ainda gera) tantos debates, em termos de regulação financeira e políticas públicas desenvolvimento e que o movimento do capital foi superando.

 

Fundos financeiros, inovação tecnológica e startupização

A financeirização e o rentismo se tornaram partes integrantes e vinculadas à economia real. A fluidez disso tudo só se tornou possível no volume que é hoje, por conta do uso intensivo dos fundos financeiros que oferece uma hipermobilidade setorial e espacial ao capital. Trato disso, no meu livro “A ‘indústria’ dos fundos financeiros potência, estratégias e mobilidade no capitalismo contemporâneo”. (Imagem ao lado) [3]

Ainda sobre o movimento mais recente do capital vale ainda descrever uma outra linha de investigação que descrevo num texto “Inovação, financeirização e startups como instrumentos e etapas do capitalismo de plataformas” que está saindo no livro “Geografia da Inovação: Território, Redes e Finanças”. Neste texto, destaco a relação direta entre os fundos financeiros e o lançamento de startups (processo que chamo de startupização).

Em um processo paulatino, mas crescente, as gestoras de fundos financeiros passaram a controlar as ideias inovadoras, o lançamento de editais e aportes de capitais, deixando clara a forma e o processo como o capital passou a capturar todas as novas empresas inovadoras e de sucesso que despontam, sem os conhecidos riscos do mercado.

Segundo a Abstartups (Associação Brasileira de Startups) [4], em 2011, ano de criação da associação, o país contabilizava 600 startups instituídas. Em 2019, o Brasil já havia multiplicado em mais de 20 vezes esse número em relação a 2011, alcançando um total de 12.727 startups, a grande maioria (3/4) empresas-plataformas ou aplicativos digitais.

Em 2018, surgiram o que o mercado chama de primeiros unicórnios, startups cujo valor de mercado ultrapassa US$ 1 bilhão. Em 2020, já eram 12 unicórnios e previsão em 2021 (anos da crise econômica e pandêmica) desse número chegar a 20. Esses dados reforçam a interpretação da relação umbilical entre inovação e financeirização, através também do processo de startupização.

Segundo dados da consultoria Distrito, que atua fazendo essa intermediação entre capital e as startups – que chamam de “aceleração no ecossistema de startups” -, o volume de investimentos em startups no Brasil alcançou US$ 1,39 bilhões em 2018; US$ 2,96 bilhões em 2019 e chegaram a US$ 3,14 bilhões, em 2020, ano da pandemia. Sendo metade, apenas das Fintechs que receberam aportes de US$ 1,5 bilhão. Ainda segundo previsão da Distrito, em 2021, esse volume de investimentos deve chegar a US$ 5 trilhões [5] [6]. Assim, em apenas quatro anos (2018 a 2021), os investimentos em startups no Brasil somarão US$ 12,5 bilhões.

 

Considerações finais

Enfim, considerando a leitura mais totalizante deste processo e de suas estratégias, não há como analisar nenhum destes fenômenos da plataformização, financeirização e startupização de forma isolada. Eles só existem da forma conjunta e complementar e são responsáveis pelos maiores oligopólios da história da humanidade, num patamar acima do que foram as corporações do setor de óleo (Big Oil), as grandes siderúrgicas e as montadoras de automóveis nos primórdios do capitalismo.

A escala de concentração econômica é gigantescamente maior e com o agravante de agir de forma direta, ou transversal, sobre todos os demais setores da economia, ou frações do capital, na direção da dominação tecnológica e do rentismo num ambiente que já é de hegemonia financeira.

Tem-se aí um novo tipo de oligopólio que exerce um nível de domínio de mercado nunca visto antes, com poder anticoncorrencial e de certa forma, também como antivalor na leitura da Economia Política (Oliveira, 1988) [6] no que diz respeito ao desenvolvimento das forças produtivas, das relações no interior do MPC e entre as classes sociais e o Estado.

Os enormes oligopólios atuam como predadores com tendências ao monopólio e ao antimercado, sonho original do capitalismo. Assim, o capitalismo contemporâneo avança em termos de acumulação de capital e das relações de poder sobre o Estado, quando a regulação passou a ser apenas uma quimera, diante do processo de dominação total.

 

Referências:

[1] PESSANHA, Roberto Moraes. Commoditificação de dados, concentração econômica e controle político como elementos da autofagia do capitalismo de plataforma. Revista ComCiência do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e SBPC. 16 de setembro de 2020. Disponível em: <https://www.comciencia.br/commoditificacao-de-dados-concentracao-economica-e-controle-politico-como-elementos-da-autofagia-do-capitalismo-de-plataforma/>

[2] PESSANHA, Roberto MoraesDisputa no e-commerce de varejo no Brasil: Entre o intangível do digital e a materialidade da infraestrutura de logística. Revista ComCiência do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e SBPC. 2 de novembro de 2020. Disponível em: <https://www.comciencia.br/disputa-no-e-commerce-de-varejo-no-brasil-entre-o-intangivel-do-digital-e-a-materialidade-da-infraestrutura-de-logistica/>

[3] PESSANHA, Roberto Moraes. A ‘indústria’ dos fundos financeiros: potência, estratégias e mobilidade no capitalismo contemporâneo. Rio de Janeiro.  Editora Consequência. 2019.

[4] Associação Brasileira de Startups (Abstartup), criada em 2011 com o objetivo de promover e representar as startups brasileiras. Tem sede no município de São Paulo, e seu portal informa que possui mais de 1000 startups inscritas na associação: <https://abstartups.com.br/>.

[5] O Globo, 4 janeiro 2021, P.21. MATSUURA, Sérgio. Apetite para o risco – Após captação recorde de US$ 3,1 bi em 2020, start-ups seguem na mira de investidores. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/start-ups-batem-recorde-em-2020-com-us-31-bi-em-aportes-seguem-na-mira-dos-investidores-1-24821880>.

[6] O Globo, 7 de março de 2021, p.32. ROSA, Bruno. Brasil terá 20 unicórnios em 2021, prevê especialista. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/brasil-tera-20-unicornios-em-2021-preve-especialista-24913183>

[7] OLIVEIRA, Francisco de. O surgimento do antivalor: capital, força de trabalho e fundo público. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.11, p8-28, out.1988. Disponível em: < http://novosestudos.uol.com.br/v1/files/uploads/contents/ 56/20080623_o_surgimento_do_antivalor.pdf>

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