quarta-feira, julho 15, 2020

"Os mitos ocidentais da Democracia da liberdade de empresa e da liberdade de imprensa", por Douglas da Mata

Douglas Barreto da Mata, avança em relação ao artigo anterior sobre os mitos ocidentais da democracia, agora oferecendo uma leitura nesse mesmo contexto, sobre a "liberdade de imprensa" e já promete uma nova trilogia, com um novo texto sobre o "mito da democracia e o judiciário". Vale conferir!


Os mitos ocidentais da Democracia da liberdade de empresa e da liberdade de imprensa, frente a realidade do totalitarismo da expressão

Se ontem já concebemos um texto que desafia a noção de convívio de Democracia com capitalismo, vamos aprofundar um pouco mais o tema.

As empresas de mídia são um dos pilares da construção ideológica de que o capitalismo é, por excelência, um sistema que melhor se ajeita a Democracia, chegando ao ápice de reificar a própria concepção democrática apenas dentro dos limites daquele modo de organização da produção.

Por óbvio, se compararmos com os períodos absolutistas anteriores ninguém negará esta percepção, mas ela é falsa, porque se baseia em premissas falsas: 
A base de comparação de momentos históricos distintos, neste caso, é impossível, e o capitalismo não é a última etapa evolutiva da Humanidade, logo não pode resumir em si uma noção (Democracia) que o antecede e que, certamente, o ultrapassará.

É irônico notar que este processo de convencimento de que não existe Democracia fora do capitalismo, apesar das ditaduras se adaptarem tão bem a ele, se deu simultaneamente a outro processo:
O que nos fez crer que a comunicação social se resume às empresas de mídia, e que estas confinam em si a própria noção de liberdade de imprensa, e por fim, a própria noção de liberdade de expressão.
A ironia é trágica.

Como já mencionamos em vários outros textos, a produção empresarial de notícias e conteúdo dedicado a comunicação social de massas é fenômeno que surge, praticamente, com a ascensão burguesa pós Revolução Francesa.

Naquela época, fora dos círculos intelectuais da elite, com baixa instrução popular, além da hipossuficiência econômica para consumir notícias ou livros, o mercado da informação ficava a cargo dos camelôs, que veiculavam panfletos apócrifos, misto de cordel com tabloides, onde a população pobre lia sobre os costumes da corte (geralmente com fofocas e escândalos) e algo de política.

Antes esta atividade era quase sempre anônima, amadora, artesanal e atomizada, e talvez hoje pudesse ser (mal) comparada a explosão de blogs nos primórdios da internet.

Tanto naquela época como agora, esse modelo anárquico foi gradualmente incorporado e apropriado pelos grandes meios.

Não poderia afirmar com precisão de no pós 1789 aqueles meios foram solapados com normatizações jurídicas, mas é possível que ao mesmo tempo que a atividade de comunicação se profissionalizou, tenham surgido junto os limites legais que favorecessem a concentração de poder das empresas em detrimento da ação atomizada.

A partir daí, para atender a demanda de solidificar as bases capitalistas e a revolução industrial primeira, as empresas de mídia, naquele tempo os grandes jornais, passam a construir o mito de que só o ramo empresarial pode suportar a tarefa de ampliar o acesso a informação.

Este mito evoluiu junto com outro, da imparcialidade jornalística, como se o redator ou relator de um fato pudesse ser neutro em relação ao que via.

Todas mentiras escabrosas.

Desde então, as classes populares e menos favorecidas sempre foram tratadas como mero receptáculos da informação, e tais conglomerados produtores destes conteúdos passaram a veicular apenas aquilo que interessava a classe dominante.

Houve exceções?
Sim, mas que só confirmaram a regra.

Mesmo assim, sociedades mais avançadas, do ponto de vista da maturação capitalista, entenderam que deveria haver algum limite a ação dos grupos privados de comunicação.

De um lado nasceram normas (leis) para garantir alguma pluralidade na produção de informação, e de outro lado, o próprio Estado assumiu a tarefa de produzir conteúdos mais plurais, livres dos compromissos comerciais que subordinavam o verbo à verba.

Não entremos em muitos detalhes neste longo processo.

O certo é que as empresa privadas de comunicação sabotara, direta ou indiretamente cada uma destas tentativas, até que chegamos ao ponto atual.

Eu sempre cito alguma coisa ligada ao cinema, porque sou declaradamente apaixonado por esta forma de manifestação cultural, mas também porque há ali boa chance de vermos retratados uma visão interessante da realidade.

O filme VICE, com Christian Bayle (como Dick Cheney), Sam Rockwell (como Bush Jr), Steve Carrell (como Donald Rumsfield), dentre outros, mostra como os falcões neoconservadores se associaram a mídia daquele país para derrubarem uma das únicas barreiras que impediam que empresas de mídia se transformassem em uma espécie de partido político e fábrica de boatos.

Não à toa um dos artífices da revogação da lei, que mandava que canais de TV e outros meios dessem mesmo tempo e espaço ao menos aos dois lados opostos de uma notícia, foi o criador da FOX NEWS.

Sabemos o que aconteceu depois até o desastre Trump.

Ninguém duvida que o sistema bipartidário dos EUA, e todas as amarras ao estamento fariam que um governo Obama fosse muito aquém das expectativas geradas em torno dele.

O que ninguém duvida também que foi justamente este tipo de mídia partidária que ajudou, e muito, a engessar sua administração, impedindo qualquer mudança mais radical nas estruturas da desigualdade daquele país.

Processo parecido experimentamos aqui, e é bom lembrar, que em diferentes locais e estágios do capitalismo, as coisas se parecem no aspecto de sua essência, mas tendem a ser mais dramáticas nos países mais pobres.

Ou seja, a partidarização da mídia no Brasil é um fenômeno ainda mais doloroso, e que traz consequências ainda piores para o país.

Não temos dúvida alguma, se o capitalismo não convive com a Democracia, a noção de liberdade de imprensa que é essencial ao capitalismo nunca poderá ser democrática.

Todas as rupturas institucionais em nosso país foram preparadas nas cozinhas da redações das grandes empresas de mídia, desde o golpe de 1930, passando pelo separatismo paulista em 1932, o golpe de 1937, o de 1945 (com a retirada de Getúlio por Dutra), a crise de 1954 (suicídio de Vargas), a crise de 1958 (tentativa de impedir a posse de Juscelino), a crise de 1961 (parlamentarismo para castrar Jango), 1964, 1992 (golpe sobre Collor), 2006 (tentativa de depor Lula com o chamado mensalão) e o golpe de 2016, que resultou na eleição do Bozo em 2018.

A internet e suas fábricas de boatos robotizadas e alimentadas pelo frenesi algorítmico são um capítulo a parte, mas não escaparam da industrialização necessária a tarefa de manter as estruturas de poder intactas.

Apesar de, como no caso dos camelôs franceses, a internet ter contribuído, em certo momento, para a falsa esperança de que algum tipo de atomização ou "democratização" estivesse em curso, e oferecesse assim algum contraponto aos oligopólios de mídia.

Mera ilusão.

Voltando a carga, o fato é que TODAS as formas de empresas de mídia agem para manter e conservar o modelo de organização da produção que lhes deu causa, como uma relação promíscua e incestuosa de gêmeos siameses, que até foram separados fisicamente, porém ainda espelham um ao outro.

Se a ciência social tem medo de verbalizar que capitalismo é anti-democrático por natureza, este medo assume formas gigantescas quando o assunto é estender esta noção às empresas de mídia, e o mito da liberdade de imprensa.

Todo o contorcionismo conceitual é aplicado para tentar encaixar uma legitimação aos meios de comunicação empresariais, fingindo estes cientistas que tais meios não se confundem com a noção mais ampla de comunicação social, refletida em outras formas de circulação de informação.

Como sacerdotes que guardam distância de qualquer blasfêmia que possa atingir o sacrossanto e falso dogma de que há liberdade de expressão na cadeia econômica das empresas de comunicação, os cientistas sociais repetem a ladainha de que tais empresas são fundamentais ao funcionamento da Democracia.

Não são.

Não há nenhum movimento anti-estamento na história capitalista que tenha nascido ou tenha sido ampliado por tais empresas.

Não há nenhum movimento anti-estamento, cujos representantes tenham sido eleitos DENTRO das regras do próprio capitalismo que não tenham sido golpeadas, sabotadas e impedidas de implementarem, ainda que de forma tímida e contida, reformas que fariam bem ao próprio capitalismo, mas que enfrentavam os interesses imediatos e predatórios das elites capitalistas.

A falsa associação que tais empresas fazem com as pautas de direitos humanos e/ou no campo da "moralidade pública" nunca ultrapassaram a mera esfera do espetáculo (rentável a elas, claro),e a própria deslegitimação da práxis política com ferramenta de solução dos conflitos de classes.

São "denúncias" que nunca atingirão mais que a superfície de tais temas, renunciando a exposição de que violação de direitos humanos, ambientais, corrupção, etc, são ingredientes fundamentais ao funcionamento do capitalismo, não só do ponto de vista econômico, mas principalmente quando ele se dedica a regular as formas sociais e políticas.

Se o leitor discordar, chamo a reflexão: cada momento em que o capitalismo acionou sua máquina ideológica midiática para propor limpezas "morais" da política, o resultado foi o crescimento da anti-política e de suas soluções de força e/ou de personagens autoritários.

Alemanha pré nazismo, Itália pré fascismo.

Macartismo nos EUA, que barrou o estamento progressista pós guerra e do avanço do New Deal.

A era Nixon, depois Reagan e dos demais.

1964 no Brasil, ou os ataques anteriores a Vargas e seu legado.

Operações Mãos Limpas, que desembocou em Berlusconi.

Farsa Jato e seus efeitos já conhecidos.

Após o estabelecimento destes movimentos políticos, que dão azo a toda a sorte de violações para facilitar e lubrificar a ampliação da acumulação capitalista, a mídia surge como baluarte da defesa dos direitos violados, agindo de forma cínica e ganhando nas duas pontas.

Sempre como fiadora das saídas de problemas que ela ajudou a implantar.

Agora, a famiglia marinho se apresenta novamente como mediadora política, agindo como partido e chamando o país a "perdoar" o PT.

Pausa para rir.
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Eu não desconheço que o PT terá que lidar com esta realidade, onde está inserido o fato de que a empresa de mídia dos marinho (e outras), senão detém este poder de mediação, acredita que o tenha, e portanto, lançou um problema real ao partido.

Comungo da noção apresentada por Luis Felipe Miguel, da UnB, que o recado foi mais aos parceiros da direita da globo que ao PT, isto é, arrumem uma alternativa ou entreguem a rapadura.

Porém, por isso tudo e apesar disso tudo, é chegada a hora da Academia, dos atores políticos e tantos outros interessados começarem a elaborar conceitos que escapem do mito de que empresas de mídia são fundamentais ao funcionamento de uma sociedade democrática.

Não, estes arranjos midiáticos são fundamentais ao funcionamento do capitalismo, e já sabemos, capitalismo não coincide com democracia.

FATO:
Onde o capitalismo é menos selvagem, menos desigual, o poder e concentração econômica das empresas de mídia é sempre menor, e há ampla participação de redes estatais de comunicação.

Senso contrário, onde o capitalismo é mais predador e a desigualdade é mais drástica, há, via de regra, um poder colossal de empresas de mídia.

É hora de derrubar o mito. Todos eles.

Amanhã falaremos de outro mito: aquele que diz que o judiciário ajuda na difusão de Justiça.

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