A economia e a política sempre andaram juntas apesar de alguns negarem aquilo que é chamado de economia política. Nessa linha, tentando entender fragmentos dessa relação em momentos importantes para a nossa civilização, eu acabei chegando ao pequeno-grande livro A ordem do dia do escritor francês, Éric Vuillard, que li num dia e meio.
A razão da leitura - para a qual sugiro e estimulo -, se deu por conta da curiosidade sobre os bastidores de um dos dois dos momentos-chave da 2ª GGM na opinião do autor: o apoio dado por vinte e quatro dos maiores industriais da Alemanha a Hitler, numa reunião no dia 20 de fevereiro de 1933, no palácio do presidente do Reichstag (parlamento alemão) que é contada em detalhes na publicação.
O segundo momento narrado no livro é o da anexação da Áustria ao Reich que vai se dá só em 1938, depois de muita submissão, traições e atropelos. Ao final, o autor junta os dois momentos para fechar o livro de forma impactante.
A reunião com os industriais foi a razão maior do meu interesse. Uma reunião que foi coordenada pelo presidente do Reichstag, Hermann Goering e teve a presença de Hitler. O principal ponto da pauta foi um pedido de doação aos industriais para a organização da campanha eleitoral que aconteceria em 1932. Tudo depois da Grande Depressão de 1929.
O autor cita os vinte e quatro industriais e empresários presentes na “reunião secreta”: Gustav Krupp, Albert Vögler, Günter Quandt, Friedrich Flick, Ernst Tengelmann, Fritz Springorun, August Rosterg, Ernest Brandi, Karl Büren, Günther Heubel, Geog von Schnitzler, Hugo Stinnes Jr, Eduard Schulte, Ludwig von Winterfeld, Wolf-Dietrich von Witzleben, Wolfang Reuter, August Diehn, Eric Fickler, Hans von Loewenstein zu Loewenstein, Ludwig Grautert, Kurt Schmitt, Augusto von Funck e o doutor Stein.
Como diz o autor, esses vinte e quatro empresários não precisavam ser identificados pelos seus nomes da certidão de nascimento, mas se chamam BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG Farben, Siemens, Allianz, Telefunken etc. “Nós os conhecemos muito bem. Eles estão lá no meio de nós, entre nós. São os nossos caros, nossas máquinas de lavar, nossos produtos de entretenimento, nossos rádios-relógios, o seguro da nossa casa, a bateria do relógio de pulso. Estão lá em todos os lugares, sob a forma de coisas. Nosso cotidiano é deles. Eles cuidam de nós, nos vestem, nos iluminam, nos transportam pelas estradas do mundo, embalam nosso sono. E os vinte e quatro homens presentes no palácio do presidente do Rechstag, neste 20 de fevereiro, não passam de mandatários, o clero da grande indústria. São os sacerdotes do deus Ptá. E se mantêm lá impassíveis, como vinte e quatro máquinas de calcular nas portas do inferno”.
Na descrição da “reunião secreta”, Vuillard perfila detalhes das indumentárias, dos movimentos pessoais, suas silhuetas, corredores, escaderias, salões e equipamentos do palácio. O verniz da história me levou a imaginar, uma reunião similar do Trump e a primeira-dama, realizada, há poucos dias, na Casa Branca com os CEOs das Big Techs americanas, conforme notícia de jornal deste domingo, que posto junto da capa do livro como ilustração a esse texto. Não há como não fazer essa comparação, distante no tempo exatos 95 anos, quase um século.
Da
reunião-secreta no Reichstag em 1930 à santa-ceia na Casa Branca em 2025
A “Santa Ceia” (jantar) de Trump aconteceu na noite de 4 de setembro de 2025, na Casa Branca, reuniu controladores e os CEOs de grandes corporações de tecnologia e teve a presença de Bill Gates e Satia Nadella (Microsoft); Mark Zuckberger (Meta/Facebook) e Alexandr Wang (Meta e ScaleAI); Sam Altman (OpenAI/ChatGPT); Tim Cook (Apple); Sundar Pichai e Sergey Brin (Google/Alphabet); Safra Catz (Oracle); Lisa Su (AMD); David Limp (Amazon - Blue Origin) e outros executivos do Silicon Valley, mais a primeira dama Melanie Trump.
O número de empresários nessa reunião foi menor do que os vinte e quatro da reunião com Hitler, cerca de quinze, embora esses possuam hoje um controle sobre maiores oligopólios deste setor transversal que atinge todos as demais áreas da economia e da vida em sociedade. A reunião na Casa branca que não foi secreta, mas teve na parte divulgada da agenda, não as doações para a posse de Trump (já definidas), mas investimentos dessas corporações nos EUA.
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Matéria Estadão em 21-09-25, p.B12. |
O restante dos assuntos, certamente, precisaremos de tempo para conhecer, como foi no caso do Reichstag alemão em 1930. Atualmente esses executivos já verbalizam abertamente que "têm se beneficiado ao trabalhar com Trump", como aconteceu, lá atrás, há 95 anos, quando os industriais se aliaram a Hitler, conforme veremos adiante.
Hoje, os controladores das corporações de tecnologia americana, querem mais apoio para impedir que haja regulação sobre sua atuação seja nos EUA, na Europa, no Brasil e/ou no restante do mundo. Juntos, Trump e os controladores das Big Techs americanas, afirmam, repetidamente, que a disputa principal é para ganhar a guerra contra a China, em especial no campo da Inteligência Artificial (IA), num esforço final de manter a hegemonia e o império estadunidense.
De forma similar, em 1930, estavam no palácio do Reichstag, os donos das indústrias [não os acionistas-controladores das atuais gigantes corporações de tecnologia]. Vuillard, autor do livro afirma, textualmente, que os vinte e quatro estavam no “nirvana da indústria e das finanças” naquele exato momento anterior à reunião, quando os empresários aguardavam as duas maiores autoridades alemães. Depois, o autor segue descrevendo em detalhes o encontro e o pós-reunião do dia 20 de fevereiro de 1930.
Nesta reunião de 1930, Goering fala aos industriais alemães sobre a campanha eleitoral de 1932, falando sobre temas que hoje nos EUA também seriam atuais: "era preciso acabar com a instabilidade do regime e que a atividade econômica exige calma e firmeza, para o quê os vinte e quatro senhores balança religiosamente a cabeça... e se o partido nazista conseguir a maioria, acrescenta Goering, estas eleições serão as últimas pelos dez anos seguintes; até mesmo – acrescenta com uma risada – por cem anos. Um movimento de aprovação percorreu o ambiente... Hitler estava sorridente, descontraído, nada do que imaginavam, afável, sim, até amável, bem mais do que teriam acreditado. Houve para cada um, uma palavra de agradecimento, um aperto de mão vigoroso... O cerne da proposta era acabar com um regime fraco, afastar a ameaça comunista, suprimir sindicatos e permitir que cada patrão fosse um Füher em sua empresa. O discurso durou meia hora. Assim que Hitler se retirou, o presidente do Reichstag, Goering, tomou a palavra e disse que para fazer a campanha que se avizinhava era preciso dinheiro e o partido nazista não tinha um tostão. Um dos 24 senhores presentes se levantou, sorriu para a assembleia e proferiu: - E agora senhores, ao caixa! Assim, os industriais molharam as mãos com ajudinhas centenas de milhares de marcos”.
A
aliança entre o poder econômico e o político deixam rastros em diferentes
tempos
A relação entre o poder econômico dos industriais e o poder político alemães não se deu apenas no financiamento de campanha como se pode imaginar. Para não me estender demais com mais spoilers sobre o livro, eu vou ao seu final, quando Viullard cita como algumas das facilidades oferecidas por Hitler e pelo o Reich aos industriais alemães em troca das “esmolas do financiamento de campanha”.
Em ato de desespero, Gustav Krupp, um dos vinte e quatro industriais, na primavera de 1944 tem visões. Em seu palácio na Vila Hügel, quando “os exércitos alemães recuavam de todos os lugares, abandonando as áreas e se mudando para as montanhas, longe de Ruhr, em Blühnbach, lá onde as bombas não os atingiriam, na paz fria e branc... num quase delírio, em meio a um “silêncio de anos e sucumbido a uma imbecilidade sem retorno Krupp resmunga medroso junto ao filho e esposa que estaria vendo pessoas rastejando na escuridão do canto da sala”.
O autor Éric Viullard diz que “não eram os fantasmas da Vila Hügel que o congelavam de medo, eram homens de verdade, com rostos de verdade que o encaravam com olhos enormes de figuras que saíam das trevas... eram dezenas de milhares de cadáveres, os trabalhadores forçados, aqueles que a SS tinha fornecido para as suas fábricas... durante anos ele tinha alugado deportados em Buchenwald, em Flossenbürg, em Ravensbrück, em Sachenwald, em Auschwitz e em muitos outros campos. A expectativa de vida deles era de alguns meses. Se o prisioneiro escapava das doenças infecciosas, morria literalmente de fome. Mas Krupp não foi o único a alugar tais serviços. Seus comparsas da reunião de 20 de fevereiro aproveitaram também, atrás das paixões criminais e das gesticulações políticas, seus interesses se encontravam. A guerra tinha sido rentável. A Bayer arrendou mão-de-obra em Mauthausen. A Bayer contratava em Dachau, em Papenburg, em Sachsenhausen, em Natzweiler-Strutholf e em Buchenwald. A Daimler, em Schirmeck. A IG Farben recrutava em Dora-Mittelbau, em Gorss-Rosen em... e explorava acfábrica gigantesca no campo de Auschwitz: a IG Auscwitz, que com todo cinismo colocou esse nome no organograma da firma. A Agfa recrutava em Dachau. A Shell, em Nuengamme. A Schneider, em Buchenwald... A Telefunken, em Gross-Rosen e a Siemens, em Buchenwald, em Flossebbürg, em Neuengamme, em Ravensbrück, em Gross-Rosen e em Auschwitz. Todo mundo aproveitando mão-de-obra muito barata. Não é, portanto, Gustav Krupp que alucina nessa noite, no meio de sua refeição em família...”
Por tudo isso vale a pena ler esse livro do Éric Viullard, que parece importante para intuir os movimentos atuais nos palácios em 2025. É possível que a relação seja um exagero, porém, se a observarmos como alerta, veremos que o relato seja não apenas atual, mas útil, porque o passado sempre tem muito a nos ensinar, se desejamos um destino diferente de outrora.
A prosa da descrição de Viullard é muito precisa, cheia de detalhes, crua, direta, irônica, dura e sem rodeios. Acima de tudo considero ainda mais impactante quando se relaciona e se compara com a “Santa Ceia” do 4 de setembro de 2025, na Casa Branca, em especial, quando penso na precarização atual da mão-de-obra dos entregadores, morrendo no trânsito ou durante a Covid, como os famintos trabalhadores forçados de Auschwitz.
Aqueles trabalhadores produziram e eniqueceram a Bayer, Shell, Daimler, Siemens, etc. Hoje, os entregadores atendem à Amazon e outras gigantes corporações-plataformas digitais que vampirizam nossos dados e vasculham nossas vidas, hipersonalizando possíveis desejos de compras em diferentes lugares do mundo ou auxiliando os golpes políticos de controle sobre o poder de outras nações.
Enfim, encerro voltando à pergunta do título: há ou não relação entre a reunião de 1930 na Reichstag na Alemanha e a de 4 de setembro de 2025, na Casa Branca nos EUA? O que se pode aprender com esses casos?
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