terça-feira, agosto 13, 2013

Cidades: "bombas socioecológicas"

Abaixo trouxemos uma fala da Marilena Chauí que chamou as metrópoles de "inferno urbano". Agora trazemos a urbanista da USP, Ermínia Maricato que está chamando as cidades de "bombas socioecológicas".

Lendo ambas se vê que elas têm razões. Por conta disto, me dispenso da necessidade de procurar outros adjetivos para o mesmo e substantivo problema, que já se irradiou para as cidades de porte médio, sem perspectivas de solução, sem um freio do Estado, seja sobre a especulação imobiliária ou sobre o cartel atuante no transporte coletivo, dois dos grandes problemas das nossas urbes.

Interessante observar onde entra o interesse privado. Ali financia eleições, controla o poder político e domina a máquina que se diz pública. para implantar seus interesses privados e excludentes socialmente.

A entrevista com a Erminia Maricato foi feita pela revista Teoria & Debate e republicada pelo site Carta Maior. Nela, está resumida uma boa parte do conteúdo central do seu livro, lançado em 2011 "O impasse da política urbana no Brasil", com atualização e opiniões mais recentes sobre problemas lá detectados.

A entrevista é extensa, mas, indispensável. Na íntegra pode ser lida aqui e o blog sugere a todos, que de alguma forma pensam e lutam por cidades melhores, nas diferentes trincheiras. 

Foi considerando esta importância que escolhemos algumas passagens, mas, acabamos não resistindo em fazer em tamanho maior que o resumo imaginado:

"Estou muito impressionada com o que está acontecendo com o chamado desenvolvimento urbano. Trata-se de uma involução, principalmente em função do mercado imobiliário.

Construímos, nos termos do capitalismo da periferia, cidades que são bombas socioecológicas devido à incrível desigualdade e segregação – nos últimos anos, com o boom imobiliário, a prioridade dada aos automóveis, às obras viárias, e ainda elevamos o grau dessa febre, com os megaeventos, a Copa. Realmente, as cidades estão entregues ao caos, a interesses privados, e as condições de vida da maioria estão piorando muito...

... Por que você trata desenvolvimento como involução?
Ermínia: Existe um projeto para o crescimento do país. Nós tivemos as décadas perdidas e voltamos a investir em políticas públicas recentemente, e em transporte urbano não voltamos a investir. Existe um investimento que acompanha a Copa, mas, política de transporte urbano em nível nacional, nós não temos desde a década de 1980. Houve recuo nos investimentos em políticas públicas, habitação, saneamento e transportes, que estruturam as cidades. Em 2003, houve um retorno do investimento em saneamento, em torno de R$ 3 bilhões. Depois, em 2005, um retorno do investimento em habitação e saneamento. Em 2007, obras de infraestrutura urbana, com o PAC, e, em 2009, o programa Minha Casa, Minha Vida.

Como a recuperação do investimento se dá sem a reforma urbana, que tem como ponto central a questão fundiária e imobiliária, acontece do jeito que o diabo gosta. A apropriação principalmente da renda imobiliária e fundiária se dá por interesses privados e com aumento do preço do metro quadrado dos imóveis, que em três anos chegou a 151% em São Paulo e 185% no Rio de Janeiro. De 2009 a 2012, houve uma explosão no Brasil inteiro de preço do metro quadrado com despejos violentos, política que não esperávamos que fosse voltar tão rapidamente...

... O capital imobiliário disputa a semiperiferia e os pobres estão indo para mais longe. Temos uma reestruturação da ocupação metropolitana e urbana no Brasil a partir da especulação imobiliária sem controle fundiário e, finalmente, empresas de construção pesada priorizando o que decidem. Isso é incrível porque há cidades onde oferecem ao prefeito uma obra e não precisa ter Plano Diretor, nada... a obra sai e pronto! Se a obra é prioridade ou não, se está no Plano Diretor ou não, tanto faz...

... Vivemos uma situação de desmando nas cidades brasileiras. A política urbana realmente sumiu do cenário nacional. Política urbana não é um monte de obras...

... A taxa de desemprego na construção diminuiu muito comparada ao desemprego em outras atividades. Isso não é pouco importante, a questão está nas empresas de construção e incorporação. Em 2007, dezessete delas abriram capital na bolsa de valores, compraram um estoque de terras e estavam justamente aguardando fundos para a construção de moradias. O programa responde a essa necessidade e as empresas passaram imediatamente a construir febrilmente.

O financiamento habitacional cresceu 65% de 2009 a 2010, e no ano seguinte, 42%. O montante de subsídio concedido de 2008 a 2009 foi de aproximadamente R$ 14 bilhões. Quando as empresas entram o salto é vertiginoso. Esse subsídio foi parar no preço da terra, porque na verdade no déficit de moradia da baixa renda, até três salários, não se mexeu ainda...

...O programa nesse período incluiu a classe média, de cinco a dez salários mínimos. Mas a reprodução da desigualdade e da segregação se deu pela forma agressiva com que os capitais imobiliários reassumiram o mercado de terras expulsando, com despejos violentos ou incêndios nunca bem explicados favelas ou ocupações ilegais situadas em áreas com potencial de valorização. A elevação de preço do metro quadrado no Rio foi de quase 185% e em São Paulo de 151%...

... O que você diz dos efeitos do estresse urbano nas populações de nossas cidades?
Ermínia: Vamos aos dados: 30% da população de São Paulo sofre de depressão, ansiedade mórbida ou comportamento impulsivo. É uma pesquisa da USP.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, entre 24 metrópoles do mundo, São Paulo apresenta o pior quadro. Veja que 29,6% dos indivíduos da região metropolitana apresentam transtornos mentais, nos doze meses anteriores à pesquisa. Ansiedade afetou 19,9% dos entrevistados. Em seguida transtorno de comportamento e de impulso. Claro que o trânsito tem a ver com isso. Isso é uma bomba.

Dois grupos se mostram especialmente afetados: as mulheres que moram em regiões consideradas de grande vulnerabilidade apresentam transtorno de humor, assim como os homens migrantes que moram nessas regiões precárias. Dessas mulheres, 30% são chefes de família. Elas saem para trabalhar e deixam os filhos, que por sua vez ficam sem acesso a esporte, lazer, educação, porque não estão na escola. A mãe não consegue acompanhar. E aí tem a violência policial e o tráfico. Há filmes que mostram bem essa realidade, por exemplo, Os Doze Trabalhos, de Ricardo Elias.

Qual é o tempo médio das viagens?
Ermínia: O tempo médio das viagens em São Paulo era de 2:42 horas. Para um terço da população esse tempo é de mais de 3 horas. Um quinto leva mais de 4 horas, ou seja, passa uma boa parte da vida nos transportes, seja ele um carro de luxo, seja em um ônibus ou trem superlotado, o que é mais comum e atinge os moradores da periferia metropolitana.

Em São Paulo, em 2011, morreram em acidentes de trânsito 1.365 pessoas, 45,2% (617) delas atropeladas, o que revela a insegurança de pedestres, e 512 motociclistas. Ou seja, as vítimas são os pedestres e motociclistas, mas quem causa a morte são os carros, responsáveis por 83% das ocorrências.

Contando ninguém acredita, mas a velocidade média dos automóveis em São Paulo, entre 17 e 20 horas, em junho de 2012, foi de 7,6 km/h – quase a mesma de uma caminhada a pé. Durante a manhã a velocidade é de 20,6 km/h – de uma bicicleta. É um absurdo!

Os congestionamentos na capital paulista, onde circulam 5,2 milhões de automóveis, chegam a atingir 295 quilômetros de vias. Todas as cidades de porte médio e grande estão apresentando congestionamentos devido à enorme quantidade de veículos que entram nelas a cada dia. O consumo é incentivado pelos subsídios dados pelo governo federal e alguns estaduais para a compra de automóveis. Em 2001, em doze metrópoles brasileiras, somavam 11,5 milhões; em 2011, 20,5 milhões. Nesse mesmo período e nessas mesmas cidades o número de motos passou de 4,5 milhões para 18,3 milhões. Em diversas metrópoles, o de automóveis dobrou nesse período. Em todos os lugares onde vou a grita é geral...

... Como você identifica a atuação dos três poderes com relação à política urbana?
Ermínia: Eles ignoraram. Não é competência do governo federal, por exemplo, tratar do uso e ocupação do solo. Tudo fica a cargo dos municípios: Plano Diretor, Lei de Uso do Solo, transporte urbano, saneamento urbano. Mas o governo federal não colocou transporte urbano na agenda nem no período em que estivemos lá. Essa foi uma das lutas que tentamos encampar. A mobilidade é tão importante quanto a saúde.

Até para moradia se dá um jeito. A população se instala em algum lugar, ocupa área de mananciais, Serra do Mar, beira de córrego, mas, quando está morrendo, não tem jeito. Então saúde e transporte são urgentes.

E qual é a solução?
Ermínia: A reforma urbana é uma agenda. É preciso garantir a função social da propriedade prevista no Estatuto da Cidade, o controle público sobre a propriedade e o uso da terra e dos imóveis – conforme competência legal constitucional –, e tornar os transportes coletivos, e o não motorizado, como prioridade da matriz de mobilidade urbana. As nossas empresas de transporte são um grande problema....
A presidenta Dilma anunciou o Plano Nacional de Mobilidade. Temos de ir para a rua, porque eu, por exemplo, não quero mais cargo. Quero ser movimento social, sociedade civil, porque não adianta ir para o governo se a sociedade não empurra. Acabará fazendo o jogo dos caras...

Você se refere aos governos de coalizão?
Ermínia: Como é que conseguíamos fazer tanta coisa sem coalizão, na época do modo petista de governar nos municípios? O transporte, hoje, atinge todo mundo, porque quem tem carro também está parado...

As pessoas sentem isso, que a cidade está entregue. Você não vê em lado nenhum que tem uma força do bem conduzindo para algum lado. Isso faz uma sociedade entrar em caos... Qual é a maior causa dessa crise hoje? É o avanço imobiliário que está totalmente descontrolado e avançando sobre a periferia também, empurrando os pobres. A cidade está se espalhando...

O comportamento do Legislativo quanto a todos esses temas elencados aqui?
Ermínia: O Legislativo é um caso seriíssimo. Há o capitalismo global de um lado e o clientelismo do outro. Quando eu estava no Ministério das Cidades, aparecia muito deputado pedindo asfalto – em uma quadra, rua, cidade –, era a maior reivindicação de emenda. Fizemos até uma cartilha para tentar politizar os deputados e explicar pelo menos que era preciso instalar a rede de água e esgoto antes de fazer o asfalto.

Sem reforma política não dá. Agora temos de ir para a rua. Criamos um Ministério das Cidades pra quê? Mais um espaço para ser moeda de troca? A esse arcabouço legal e institucional precisa corresponder uma correlação de forças favorável, senão é inútil. O Estatuto da Cidade é festejado no mundo inteiro e nós não conseguimos aplicá-lo.

Todos esses serviços urbanos estão no âmbito dos municípios. Mas em muitos casos a solução de grandes problemas extrapola essa esfera. Não faltam instrumentos para organizar esse tipo de demanda?
Ermínia: Sim, muitas dessas questões são metropolitanas. A única ressalva que eu faria em lei federal é que deveríamos ter um tratamento unificado sobre o que é metrópole e como administrá-la. A Constituição de 1988 remeteu aos estados a questão metropolitana. Então cada um resolveu ou deixou de resolver de um jeito. Há estados que consideram cidades médias metrópoles e estados que não consideram a cidade principal metrópole. Manaus não era região metropolitana e Blumenau era. Não dá para resolver, por exemplo, questões de esgoto, água, transporte, moradia...

...Você tem esperança de que é possível mudar?
Ermínia: A esperança sempre tem de estar nas gerações que estão vindo, porque para quem tem a minha idade o tempo é limitado. A nossa cabeça é um patrimônio. Somos educados, aprendemos, vivemos experiências e adquirimos certa sabedoria. Eu sempre achei que a educação para os direitos humanos é fundamental e deve começar nas crianças, e agora acho isso mais importante do que nunca.

Há alguns anos, quando eu ia para a periferia, pensava que perderíamos uma geração, porque ninguém estava dando suporte para aquela criançada. Mas estou muito mais otimista depois que as manifestações explodiram. Porque eu acho que a direita neste país, apesar de muito agressiva, não tem condições de dar um golpe. A esquerda, sim, está em condições de se reorganizar e voltar a trabalhar de forma menos institucional e mais preocupada com o social.

Você tem ido para as periferias?
Ermínia: No momento, não, mas acho que tem uma vida na periferia mais interessante do que antes. Mano Brown e Emicida estão entre as lideranças mais importantes do país. Pela cultura, eles discutem tudo, especulação imobiliária e também a questão urbana. Essa efervescência me dá esperança. É afirmação de identidade, reivindicação de melhores condições de vida. É uma tentativa de enfrentar esse abismo que é o tráfico na periferia. Um cara como Mano Brown, que não se vende para a Globo, para mim é um herói."

2 comentários:

Anônimo disse...

Interessante quando a entrevistada diz que não quer mais cargo, mas ser ativista, na rua, pois se a sociedade não "empurra", o governo vai jogar o jogo da especulação.
Embora os mais afoitos possam pensar que a doutora Ermínia prefere ser pedra à janela, não é isso que ela quis dizer. A urbanista supõe ser mais útil na trincheira da sociedade fazendo-a enxergar a necessidade de impor esta agenda ao governo. Parece que ela acredita, com base nos movimentos sociais de junho/julho, que a sociedade vai "empurrar".
Não vai.
A sociedade QUER este jogo especulativo e não só patrocina como se beneficia destas ações. Reclama dos efeitos mas não abre mão do conforto e dos resultados que aufere. De um jeito ou de outro.
Há pouco li num jornal da cidade que as carroças estão a atrapalhar o trânsito, emporcalhando as vias e de quebra sujeitando os animais a maus tratos. Esta bem, quase todos concordamos que são uma ode ao atraso. Mas quando precisamos recolher um entulhinho de obra é cômodo pagar 10 reais para um carroceiro. Quando compramos 1 metro de areia, achamos normal ela ser transportada por carroça. Ninguém manda voltar um carroceiro que traz os vergalhões da sua obra...
Não é o governo que precisa mudar. Somos nós.

Renato César Arêas Siqueira disse...

A falta de perspectiva da Urbanista Ermínia Maricato, em promover os meios de transformação, via governo, fazendo parte de sua estrutura organizacional, é um sinal claro de que, mais do que necessário, torna-se imprescindível o corpo técnico de carreira, apartidário e transversal às gestões, efetivos e compromissados, nas estruturas de Planejamento Urbano, seja nas Secretarias de obras e afins. Quando ela menciona a satisfação da existência do Estatuto da Cidade, no mundo, e, apesar disso as dificuldades em sua implementação, também, volta-se ao mesmo ponto de necessidade: corpo técnico de carreira para a implementação do que o Estatuto considera como Plano Nacional de desenvolvimento Urbano. Foi assim que o urbanismo germânico promoveu o controle urbanístico na Alemanha em fins do século XIX - após os investimentos recebidos da guerra Fraco-Prussiana - através de instrumentos de gestão urbana, como o zoneamento, definindo setores para os distintos usos: comercial, industrial e habitacional, além de estabelecer relações entre as edificações e a ocupação do solo urbano, seja pela taxa de ocupação, seja pelo coeficiente de aproveitamento, consolidando uma demanda do período barroco, pelos afastamentos entre as edificações e as divisas dos lotes, beneficiando as cidades quanto aos condicionantes climáticos, em especial a insolação e a ventilação.
Para nós, brasileiros, está lançado o desafio para realizar o Plano Nacional de desenvolvimento Urbano, cabe a nós a transformação sugerida pelo anônimo das 12:52h, através de trincheiras como os movimentos das ruas que a Dra. Ermínia aponta. A receita encontra-se no Estatuto da Cidade e nos Planos Diretores Participativos.