sábado, dezembro 14, 2019

A economia do compartilhamento e o capitalismo de plataformas nascem à luz da modernidade, mas caminham para o subterrâneo das cavernas (underground capitalism)

No Brasil, segundo o IBGE já são mais de 4 milhões de pessoas vendendo trabalho (a maioria na informalidade) para as plataformas digitais. No atual estágio do capitalismo, essa forma de trabalho acaba sendo quase a única alternativa para obter renda e garantir a sobrevivência. Mesmo que explorado e percebendo que uma boa parte do sua renda líquida é capturada pelos vampiros modernos. Sob o manto e a aura da modernidade digital das chamadas startups, os vampiros digitais chupam parte da renda originada no trabalho local de transporte de passageiros e de entrega de alimentos, em processos ainda pouco observados pela maioria  das pessoas. [1]

O caso do transportes de passageiros, já chamados de "uberização", mesmo que com outras plataformas para além do Uber, serviu de referência para outras modalidades de intermediação entre produtor e consumidor, desde o transporte de pessoas às entregas de comida, que se espalham numa velocidade enorme, em que os trabalhadores desta rede logística se espremem pelas vias urbanas em motos e bicicletas, que em muitos casos são alugadas, como os carros nos aplicativos de transportes.

Do lado do consumidor este tipo de demanda parece que dá status de modernidade a quem o solicita por estar "antenado" e por ter o conhecimento sobre o uso destas plataformas digitais, hoje acessíveis por quase todos os celulares, além de propiciar economias, em relação às refeições feitas nos restaurantes, mesmo que self-service, onde o trabalho do garçom já foi sendo abolido.

Para os trabalhadores destas plataformas digitais, alguma renda é melhor que nenhuma renda. Para aqueles que produzem os alimentos, o argumento é que sem a entrega barata dos pratos, não há como sobreviver no mercado, numa época que a chamada comodidade e um novo modus de vida dos tempos atuais "brotaram nas pessoas" chamadas quase permanentemente de consumidores. 

Para os donos das plataformas digitais, estes dois argumentos servem para apresentar sua conta e os seus ganhos, onde a modernidade e o conhecimento digital justificariam a vampirização da renda em proporções absurdas. Mesmo não fazendo e nem entregando os alimentos, essas plataformas ficam com um percentual entre 15% e 30%. Além disso, são os únicos a conhecer a fundo todas as informações de todo esse processo de produção e consumo de algo que todos precisam: os alimentos.

Os proprietários das plataformas digitais montam seus bigdatas e assim, sabem quais são os pratos preferidos, os horários e regiões de pedido e entrega, quem vende mais e o quê, para onde e com pessoas de que perfil. Quem paga e como paga. 

Enquanto isso, os trabalhadores das entregas com aqueles enormes isopores pendurados nas costas são obrigados a se submeterem a práticas cada vez mais precárias e sem nenhuma proteção e sem direitos nas vias conturbadas e caóticas das cidades. Os consumidores consomem e pensam que não têm nenhuma relação ou culpa dos processos e o sistema serem dessa forma que são, ao mesmo tempo que comemoram, individualmente, a conquista da comodidade, fruto da chamada modernidade que serve a alguns, enquanto quase escravizam a quem lhe serve. Escravos da pós-modernidade.

Por conhecerem as pontas de quem atua no processo como produtor ou consumidor, os gestores das plataformas digitais passam a interferir na definição dos cardápios - defendendo que sejam reduzidos -, para objetivar escolhas que não gerem dúvidas, numa lógica da velocidade contemporânea, para aumento da produtividade, que inclui novas localizações das cozinhas para reduzir os custos de percursos, terem vantagens de aglomeração e massificação, etc. 

Neste processo, os donos das plataformas digitais (vampiros tecnológicos) já avançaram em suas atividades. Além de conectar produtor, consumidor e trabalhador das entregas, eles já estão usando as informações que possuem de todo o processo para interferir nos negócios destas pontas, aumentando ainda mais os seus ganhos e buscando a massificação (oligopolização), exigindo em troca destes agentes uma fidelização, assim como fazem aos consumidores com descontos para quem mais utiliza as plataformas.

O caso mais recente que se tem conhecimento é o das cozinhas escuras e subterrâneas (dark kitchens) quando os restaurantes passaram a ser apenas produtores das comidas, orientados pelas plataformas digitais (IFood, Uber Eats e Rappi). Ainda na busca do discurso da modernidade, há quem chame essas dark kitchen (ou cloud kitchens) de restaurantes virtuais. [2]

Hoje, boa parte dos consumidores destas comidas só conhecem os produtores de alimentos pelas redes sociais. A cozinha está indo para os subterrâneos para ampliar os ganhos de quem faz a intermediação deste negócio. As plataformas sugerem aos produtores de alimentos que eles estejam estrategicamente localizados, no centro da maioria dos pedidos, sem precisar ser visível, com pontos comerciais mais baratos e com ganhos para produção em maior escala e sem conhecer os seus consumidores.

Algumas plataformas já são também responsáveis pela montagem destas grandes “cozinhas subterrâneas” em estruturas que chamam de hubs (canais). No Brasil, a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) estima que o setor já movimente R$ 15 bilhões por ano, com crescimento anual de 20%, mas reclamam que os donos de plataformas deveriam compartilhar os dados dos clientes. [2]

Em todo esse processo de mergulho das cozinhas e seus trabalhadores nos subterrâneos da modernidade, se observa que a chamada economia do compartilhamento que nasceu com o discurso de ampliação da sociabilidade e da cooperação, serve hoje para o capturar as rendas locais para o andar superior das finanças que hoje controlam essas plataformas digitais.

Trata-se de um processo com ampla utilização da ideia da gestão do território e da intermediação entre os agentes do sistema para aspirar – como vampiros digitais – as rendas geradas pelos fluxos de dinheiros, promovendo ainda enorme concentração de renda e ampliando as desigualdades sociais. O capital necessita fazer imersão no território, através de agentes locais, para articular os negócios e assim aspirar e desenraizar as rendas regionais até o andar de cima das finanças.

O uso da internet e das comunicações online segue transformando profundamente as nossas relações sociais. Ao contrário das expectativas iniciais de democratização econômica e inclusão social, o que se vê desde então é uma concentração absurda, uma oligopolização com a captura da vida das pessoas e das rendas locais, por parte de um sistema que tem reforçado a hegemonia financeira global no capitalismo contemporâneo.

Vivemos um movimento intenso e em várias dimensões e por isso difícil de ser observado e interpretado em toda a sua totalidade por aqueles que correm e buscam sobreviver. Realizar a leitura deste processo, mesmo que de forma paulatina e ainda fragmentada, exige a junção das partes soltas deste fenômeno real e contemporâneo que deve ser investigado e analisado de forma multidimensional (dimensão social, territorial e econômico-financeira entre outras) e em várias escalas simultaneamente, ou seja, de forma transescalar. Desde o fenômeno real analisado no local, às suas relações nacionais e articulações intersetoriais e de interligações globais.

Este mergulho do capitalismo real para o “underground capitalism” é um processo que está sendo ainda mais amplamente investigado por este autor, que já identificou que boa parte do controle destas plataformas digitais são feitas por grandes investidores, através de fundos financeiros (já tratados em pesquisa divulgada), que também, e não coincidentemente, se trata de outra atividade invisibilizada para o grande público, ficando nos subterrâneos e cavernas, onde se busca a acumulação como etapa e parte do circuito de valorização e de capitalização no capitalismo contemporâneo.


Referências:
[1] IBGE em pesquisa da PNAD (abril de 2019) identificou que 3,8 milhões de brasileiros trabalham com as plataformas representando 17% dos 23,8 milhões de trabalhadores nessa condição, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no trimestre até fevereiro de 2019. Matéria da revista Exame: "Apps como Uber e iFood se tornam “maior empregador” do Brasil - Apps de serviços são fonte de renda para 4 milhões de brasileiros; se reunidas em uma mesma folha de pagamento, ela seria mais longa do que a dos Correios". Disponível em: < https://exame.abril.com.br/economia/apps-como-uber-e-ifood-sao-fonte-de-renda-de-quase-4-milhoes-de-pessoas/...>.

[2] Reportagem do Valor, em 11 de dezembro de 2019, P. B1. MADUREIRA, Daniele. "Aplicativos de entrega dão as cartas na cozinha". Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2019/12/11/aplicativos-de-entrega-dao-as-ordens-na-cozinha.ghtml


PS.: Atualizado às 13:04 de 16/12/2019: A plataforma 99 de transportes seguindo a Uber Eatas, também lançou o 99 Food. Essas plataformas de entrega de comidas agora estão avançando para entrega de supermercados. O IFood já tem acordo com 200 supermercados e planeja ampliar este acordo para mil supermercados em 2020. De certa forma, a entrega de comidas impacta em parte o negócio de supermercado. Observa-se aí uma ampliação da atuação do "capitalismo de plataformas".


PS.: Atualizado às 16:06 de 16/12/2019: Vale ler matéria do The Guardian (5 dez. 2019) "Uber’s new loan program could trap drivers in cycles of crushing debt". O Uber Money busca ampliar seu leque de atuação e controle sobre o trabalhador de aplicativos com dívidas a serem pagas com a renda do trabalho de transportes de passageiros ou entrega de comida. Ciclo de dívidas para prender o trabalhador e garantir maior captura sobre suas rendas. Uma Neoescravização digital em curso através do capitalismo de plataformas.

Trechos da reportagem: 
"Um programa de empréstimos criar uma nova e cruel forma de peonagem digital. A peonagem, usada como substituto da escravidão definitiva no sul da América pós-guerra civil, é um sistema de exploração econômica em que os trabalhadores são obrigados a trabalhar para pagar dívidas a seus empregadores... 
... Peonagem digital poderia ser muito mais explorador pelo uso de dados da empresa para determinar preços de viagens e ganhos com motoristas... 
... Os empréstimos do dia de pagamento da Uber poderiam ajudar a empresa a manter o controle coercitivo sobre sua força de trabalho supostamente independente. Com dados sobre o quanto os motoristas precisam ganhar para sobreviver, o Uber pode personalizar os juros, calibrar exatamente quanto tempo um motorista deve trabalhar para pagar esses juros e pressioná-lo para - e talvez ultrapassar - seus limites." 

Voltando às interpretações do texto principal. Temos aí uma renda derivada da escravidão (trabalho livre controlado), onde o sujeito é livre para admitir ser explorado para sobreviver. 
Por tudo isso, mais que nunca ler é necessário estudar a história da escravidão humana para entender o capitalismo contemporâneo. O servo que usa os meios digitais (bigdata) para exercer o controle coercitivo com quem precisa sobreviver e hoje possui seus dados e por algoritmos controla a força de trabalho da qual pode realizar ainda maior captura de renda derivada do trabalho.

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