segunda-feira, outubro 06, 2025

Nº de matrículas em 2024 no Ensino Superior nos municípios fluminenses: interiorização, polos regionais, expansão da EaD e importância da ação estatal

O número total de matrículas na modalidade nas Instituições de Ensino Superior (IES) nos municípios fluminenses em 2024 em relação a 2023 subiu 2,38% chegando a 944.813 estudantes. Deste total, 440.695 matrículas estavam na modalidade presencial (-0,9% em relação a 2023) e 504.118 na modalidade Educação a Distância (EaD) que cresceu +5,1% no mesmo período.

O blog repete o que vem fazendo nos últimos anos ao divulgar os dados dos números de matrículas nos municípios fluminenses, a partir dos microdados do Inep-MEC, tabulados pelo professor José Carlos Salomão Ferreira, a quem o blog agradece pelo dedicado trabalho.


PS.: Clique sobre a imagem da tabela para ver em tamanho maior.



Redução de matrículas no presencial e crescimento de matrículas em EaD

O número de matrículas no Ensino Superior no ERJ na modalidade presencial vem caindo ano a ano, desde 2018, quando atingiu a 544.727 universitários, caindo em 2024 para 440.695 estudantes, um contingente de menos 104.032 matrículas presenciais nos municípios fluminenses.

Enquanto isso, nestes últimos anos aumentou-se o número de matrículas na modalidade EaD que no total no ERJ chegou a 504.118 estudantes, que também estão espalhados em mais municípios fluminenses. Em 2021, o número de matrículas em EaD no ERJ era de 355.633 estudantes. Ou seja, nos últimos em três anos, um crescimento de 148.485 matrículas ou 42% nas matrículas em EaD no ERJ.

A redução das matrículas na modalidade presencial só não foi maior porque em 2024 em relação ao ano anterior, as matrículas nas instituições públicas, subiram de 162.686 estudantes para 164.511 universitários. Ou seja, no geral pode-se dizer que o número de matrículas no Ensino Superior no ERJ, segue a média nacional e está crescendo por conta do número de estudantes em EaD, majoritariamente, nas instituições privadas.


Interiorização x metropolização das matrículas no ERJ

Dos 92 municípios fluminenses, só três não tem estudantes matriculados no Ensino Superior, pelo menos em EaD: Cambuci no Norte Fluminense, Duas Barras e São Sebastião do Alto.

Uma maioria de 50 municípios (54%) só possui matrículas em EaD, enquanto 39 municípios (42%) possuem ambas as modalidades de ensino. Entre os 39 municípios que possuem matrículas na modalidade presencial (em 2021 eram 40 municípios), 27 municípios (29%) possuem estudantes no ensino público e 12 municípios (13%) só possuem matriculas presenciais nas instituições privadas.

Olhando os dados desde 2003 observa-se que a interiorização da oferta de matrículas no ensino superior presencial se estabilizou. Em 2022 eram 40 municípios em 2024 em 39 municípios. Atualmente, a expansão da interiorização vem ocorrendo através da modalidade EaD que chegou a 50 municípios no ano de 2024.

Segue existindo uma grande concentração das vagas na capital fluminense. No ano de 2003, na modalidade presencial, haviam 260 mil de 420 mil matrículas na capital fluminense, equivalentes a 62%. Em 2021, a capital tinha 52,4% e em 2024 chegou a 51,5% do total de matrículas em todo o ERJ. Um percentual menor do que os 62% de duas décadas atrás, mas ainda alto, considerando que a relação entre a população da capital e de todo o ERJ é de 39%.

Ainda em relação à distribuição territorial das matrículas na modalidade presencial pelos municípios, identifica-se que o ERJ possui 8 (oito) municípios com mais de 10 mil matrículas: 1- Rio de Janeiro 227.180 matrículas; 2- Niterói 47.481 matrículas; 3- Nova Iguaçu 21.994 matrículas; 4 - Campos dos Goytacazes 17.172 matrículas; 5 - Volta Redonda 11.521 matrículas; 6- Duque de Caxias 11.117 matrículas; 7 – São Gonçalo 11.000 matrículas; 8 – Seropédica 10.182 matrículas.

Quase todos com reduções de matrículas presenciais nos últimos anos. Como se vê 6 destes 8 municípios estão na região metropolitana. Somadas as matrículas presenciais nestes 8 municípios, elas equivalem a 92% do total no ERJ (em 2022 essa relação era de 82%), evidenciando uma concentração ainda maior das matrículas na região metropolitana, em relação ao interior e demais polos regionais.


O peso e importância da ação estatal no Ensino Superior com pesquisa e extensão

Vale ainda resgatar esforço do governo federal no período Lula (1-2) e Dilma (1) que resultou na criação nas universidades públicas de mais 74 mil matrículas nos municípios fluminenses entre 2003 e 2020. Em números absolutos, as instituições públicas aumentaram de 82.057 matrículas em 2003 para 164.511 matrículas em 2024 no ERJ, com um crescimento em números relativos de 100% em duas décadas.

Oportuno ainda registrar que as matrículas no ensino superior nas instituições públicas (universidades e institutos) crescem ou se mantêm a despeito das crises econômicas, enquanto no setor privado o ciclo de recessão se refere imediatamente no número de matrículas, por conta da dificuldade de pagamento dos estudantes.

Além disso, vale observar que quase que apenas nas instituições públicas há investimentos e articulação (mesmo que em graus variados) às duas outras duas pernas do tripé que confere qualidade ao ensino superior: a pesquisa e a extensão, para além do ensino. No caso das instituições privadas são raros e pontuais os investimentos em projetos e programas de pesquisas e pós-graduação. Isso em todo o país e não apenas no caso do ERJ.


Polos de ensino superior no ERJ

Por fim, vale observar ainda 3 (treze) municípios-polos, com importância crescente no número de matrículas no Ensino Superior no ERJ que podem ser observados em três diferentes regiões: Metropolitana + Serrana (exceto Rio capital); Norte e Noroeste Fluminense + Baixadas Litorâneas; Sul Fluminense nas matrículas presenciais.

São municípios de porte médio que podem ser observados como polos regionais do ensino superior no ERJ. Cinco deles reforçam o peso da quantidade vagas na Região Metropolitana do estado, aumentando a centralização já existente com os 51,5% das matrículas do ensino superior na capital.

Vale observar que nos últimos anos há variações nestes números de matrículas por município, devido à presença majoritária de instituições públicas de ensino superior (que se mantém ou crescem), enquanto as instituições privadas perdem matrículas rapidamente. Primeiro com a crise econômica e Pandemia e também a expressiva expansão de EaD, basicamente adotada pelas instituições privadas como já foi observado.


Região Metropolitana + Serrana: 2024 (2020) – Exceto Rio (capital)

Niterói: 47.481 matrículas (52.527 matrículas em 2020) = -5.046 matrículas.
Nova Iguaçu: 21.994 matrículas (24.811 matrículas em 2020) = -2.817 matrículas;
Duque de Caxias: 11.117 matrículas (14.454 matrículas em 2020) = -3.337 matrículas;
São Gonçalo: 11.0000 matrículas (11.142 matrículas em 2020) = -142 matrículas;
Seropédica: 10.182 matrículas (11.855 matrículas em 2020) = -1.673 matrículas;
Petrópolis: 8.055 matrículas (9.961 matrículas em 2020) = -1.906 matrículas.


Região Norte e Noroeste Fluminense + Baixadas Litorâneas

Campos dos Goytacazes: 17.172 matrículas (18.050 matrículas em 2020) = -878 matrículas;
Macaé: 8.422 matrículas (9.509 matrículas em 2020) = -1.087 matrículas;
Cabo Frio: 7.294 matrículas (7.632 matrículas em 2020) = -338 matrículas;
Itaperuna: 7.043 matrículas (7.717 matrículas em 2020)= -674 matrículas.


Região Sul Fluminense

Volta Redonda: 11.521 matrículas (13.485 matrículas em 2020) = -1.964 matrículas;
Resende: 4.911 matrículas (6.594 matrículas em 2020) = -1.683 matrículas;
Barra Mansa: 2.630 matrículas (4.738 matrículas em 2020) = -2.153 matrículas.

Como pode ser visto na evolução de matrículas do ensino superior entre 2020 e 2024 nestes 13 municípios-polo, todos tiveram perdas de matrículas. Algumas perdas bem expressivas em números absolutos como no caso de três municípios da região metropolitana: Niterói (-5.046 matrículas), Duque de Caxias (-3.337 matrículas) e Nova Iguaçu (-2.817 matrículas).

O total de perda de matrículas entre 2020 e 2024 nesses 13 municípios-polo chega a 23.698 matriculas, número que certamente produz impactos nas economias regionais desses polos de ensino superior. As matrículas em EaD nas universidades privadas acaba sendo uma transferência de renda direta para as sedes das instituições.

Observa-se que as menores perdas são nos municípios com maior presença das instituições públicas. A crise de 2015-2017 + Pandemia e pressão do crescimento de EaD, simultaneamente, ou sequencialmente, são as causas. O crescimento de 42% nas matrículas em EaD nos últimos três anos também se tornou alternativa para os moradores dos municípios de menor porte e densidade populacional.

Os dados do Inpe-MEC permitem muitas outras leituras e análises além das estatísticas do número de matrículas presenciais e por EaD nos municípios, assim como a sua distribuição geográfica ao longo do tempo e do espaço no território do ERJ. Essa é a contribuição do blog para uma intepretação mais totalizante e menos específica que certamente exigirá que pesquisadores e autoridades em gestão educacional deverão fazer sobre a base dados e microdados do Censo do Ensino Suprior de 2025 do Inep-MEC.


Referência:
Postagem do blog em 30 de setembro de 2024. Em Campos, RJ, no ano de 2024, o nº de matrículas no Ensino Superior presencial se manteve estável, na faixa dos 17 mil universitários.Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2025/09/em-campos-rj-no-ano-de-2024-o-n-de.html

terça-feira, setembro 30, 2025

Em Campos, RJ, no ano de 2024, o nº de matrículas no Ensino Superior presencial se manteve estável, na faixa dos 17 mil universitários

Este blog, há quase duas décadas, publica a evolução das matrículas nas instituições de ensino superior no município de Campos dos Goytacazes, RJ e demais municípios fluminenses.

A extração e tabulação destes é uma tarefa muito trabalhosa e obtida da complexa "base de microdados" do Censo do Ensino Superior do Inep/MEC que, sistematicamente, vem sendo feita com exclusividade para este blog, pelo amigo e professor, José Carlos Salomão Ferreira do Instituto Federal Fluminense (IFF).

Os dados e indicadores publicados aqui, hoje, são referentes ao Censo do Ensino Superior 2024, junto com uma primeira análise, é uma contribuição do blog para demais pesquisadores, estudiosos sobre o assunto e autoridades públicas e recupera os dados históricos desde o ano de 2003.

Desde 2013, o total de matrículas presenciais no município de Campos dos Goytacazes vem estabilizado na faixa dos 17 mil universitários, em especial desde 2021 depois da Pandemia. Esse total já chegou a ser de 21 mil no ano de 2008 com 13 instituições, quando o número de bolsas universitárias das prefeituras era grande (com a fartura dos royalties) e o percentual de matrículas nas instituições privadas era de 78% do total.

A partir de 2020, passaram a ser apenas 11 instituições ofertantes de matrículas no ensino superior presencial em Campos dos Goytacazes, sendo 4 públicas e 8 privadas.

Abaixo a tabela com os números extraídos do Censo do Ensino Superior 2023 do Finep-MEC.


Nos anos de 2021 e 2022 (crise econômica nacional, redução dos royalties e Pandemia), as instituições públicas somaram um pouco mais matrículas que as instituições privadas: cerca de 51% x 49%. Porém, em 2023, as instituições privadas voltaram a ter mais matrículas no ensino superior presencial e isso se manteve em 2024, embora com números ainda próximos: 51,57% instituições privadas x 48,43%, instituições públicas.


Nº matrículas presenciais em 2024 nas instituições públicas e privadas em Campos,RJ

A instituição pública com maior número de graduandos segue sendo o Instituto Federal Fluminense (IFF) com 3.743 matrículas, seguido da UFF com 2.130 matrículas, depois Uenf com 2.012 matrículas e Isepam com 432 matrículas. A variação em relação ao ano anterior de 2023 foi muito pequena.

Entre as instituições privadas no município, a que possui o maior nº de graduandos é a Universo com 2.274 matrículas e não mais a Estácio como em 2023 que em 2024 passou para 1.719 matrículas, atrás ainda do Isecensa com 1.886 matrículas, número também abaixo das matrículas que teve em 2023. Foram seguidas da FMC com 1.049 matrículas, UCam com 970 matrículas e Uniflu com 897 matrículas e Faberj com 60 matrículas.

A maior perda de matrículas aconteceu no último ano na Estácio com menos 252 graduandos e o maior ganho de matrículas foi da Universo com mais 334 matrículas. Entre as instituições públicas, a maior perda de matrículas ocorreu no polo da Uenf, com redução de 124 estudantes, porém são variações pequenas que mostram uma estabilidade. Interessante observar que no todo do município de Campos, RJ, o número de matriculas presenciais em 2024, só teve redução de uma matrícula, caiu de 17.173 para 17.172 matrículas, as, o que reafirma a estabilidade nas instituições públicas.


Nº matrículas em EaD no ano 2024
 
Já no que se refere às matrículas na Educação à Distância (EaD) no município de Campos dos Goytacazes, praticamente, também, se estabilizaram: 11.956 matrículas em 2024 contra 12.047 matrículas em 2023. O salto se deu em 2022 quando as matrículas em EaD no município eram 9.864 estudantes.

No município de Campos dos Goytacazes, RJ, ao contrário do plano nacional, as matrículas presenciais no ensino superior são superiores em cerca de 30% às de Ead (17.172 presenciais x 11.956 EaD).


Pós-graduação, pesquisa e extensão

Há ainda que se registrar, como já tenho comentado nos levantamentos nos anos anteriores, que o ensino universitário deve ser sustentado no tripé: ensino, pesquisa e extensão, que deveriam funcionar de forma integrada, em que cada uma alimenta a outra. E neste caso, a pesquisa e extensão nas instituições privadas são irrisórias ou não existem. Em especial, a pesquisa, já que a extensão, existe com alguns esforços nesse sentido, em algumas das sete instituições privadas que funcionam em Campos, RJ. No caso de EaD a ausência da extensão e pesquisa é ainda pior.

Estima-se que as matrículas na pós graduação em Campos (especialização, mestrado e doutorado), anualmente, se situe na faixa de 4 mil estudantes pós-graduandos (maioria em especialização, mas com nº crescente de matrículas em mestrado e doutorado). Assim, é ainda possível afirmar que o município de Campos dos Goytacazes poderia ter um número total, entre matrículas presenciais, EaD e Pós-graduação em torno de entre 34 mil universitários. Um número bastante expressivo e que se reflete de alguma forma na economia local e regional.

Em termos regionais, identifica-se que há quase duas décadas, o município de Campos dos Goytacazes se consolidou como o maior polo de educação superior no interior do ERJ, fora da região metropolitana, embora na última década, se observe que municípios próximos tenham também se estabelecidos como polos universitários, mesmo que num patamar menor: Macaé com cerca de 8 mil matrículas; Itaperuna com aproximadamente 7 mil matrículas, praticamente, empatada com Cabo Frio na faixa das 7 mil matrículas.

Para concluir, vale ainda ressaltar que a expansão regional dos polos de educação superior amplia a expressividade dos números de universitários em Campos dos Goytacazes e também a importância do potencial de qualificação dessa parte do território fluminense que inclui as regiões Norte, Noroeste e Baixadas Litorâneas.

Em todo o estado, houve um crescimento de matrículas presenciais de cerca de 2,3% e em EaD de 5%. Em todo o ERJ, as matrículas presenciais são quase o dobro das matriculas em EaD. A seguir faremos outra postagem com os dados de matrículas presenciais e em EaD em todos os 92 municípios fluminenses.

Referências:

[1] Postagem do blog em 1 de novembro de 2024. Em 2023, Campos,RJ se mantém com 17 mil matrículas no ensino superior presencial, mas somado à Educação à Distância (EaD), chega a quase 30 mil graduandos. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2024/11/em-2023-camposrj-se-mantem-com-17-mil.html

[2] Postagem do blog em 23 de outubro de 2023. Nº de matrículas no ensino superior presencial se estabiliza em cerca de 17 mil, em 2022 em Campos, RJ. Somado à EaD chega a 27 mil graduandos. Disponível em: https://www.robertomoraes.com.br/2023/10/n-de-matriculas-no-ensino-superior.html

[3] Postagem do blog em 1 de novembro de 2202. Nº de matrículas no ensino superior presencial cai 4% em Campos, RJ, mas com ligeiro aumento nas instituições públicas. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2020/11/n-de-matriculas-no-ensino-superior.html

[4] Postagem do blog em 18 de abril de 2202. Nº de matrículas no ensino superior presencial cai 5% em 2020, em Campos, RJ. Porém, somado à EaD chegam a 25 mil graduandos. Disponível em: https://www.robertomoraes.com.br/2022/04/n-de-matriculas-no-ensino-superior.html

[5] Postagem do blog em 22 de setembro de 2019. Nº de matrículas no ensino superior presencial se estabiliza em Campos nos últimos 4 anos: percentual aumenta nas públicas. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2019/09/n-de-matriculas-no-ensino-superior.html

[6] Postagem do blog em 23 de setembro de 2018. Apesar da crise, as matrículas no ensino superior em Campos se estabilizam em 20 mil graduandos. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2018/09/apesar-da-crise-as-matriculas-no-ensino.html

[7] Postagem do blog em 11 de novembro de 2017. Censo do Ensino Superior 2016: Campos com 19,8 mil universitários. E a qualidade? Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2017/11/censo-do-ensino-superior-2016-campos.html

[8] Postagem do blog em 8 de dezembro de 2017. Entre 2003 e 2016, as matrículas no ensino superior no ERJ cresceram 36%. Nas instituições públicas cresceram (82%). Mais de três vezes que (25%) o crescimento nas instituições privadas. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2017/12/entre-2003-e-2016-as-matriculas-no.html

[9] Postagem do blog sobre o Censo nos anos anteriores. Em 23 nov. 2016.
Campos aumenta nº estudantes no Ensino Superior para 19,3 mil matrículas. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2016/11/campos-aumenta-n-estudantes-no-ensino.html

[10] Postagem do blog em 1 de mar. 2016. Campos possui 18 mil alunos no Ensino Superior. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2016/03/campos-possui-18-mil-alunos-no-ensino.html

[11] Postagem do blog em 18 de ago. de 2015. Ensino superior em Campos perde 4 mil matrículas em 5 anos. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2015/08/ensino-superior-em-campos-perde-4-mil.html?m=1

[12] Postagem do blog em 31 jul 2015. Campos tem 17,1 mil alunos matriculados no Ensino Superior. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2015/07/campos-tem-171-mil-alunos-matriculados.html

sábado, setembro 27, 2025

A profunda conexão da extrema-direita com o crime organizado no Brasil

Impressiona como vai ficando clara a profunda relação entre a extrema-direita, as milícias, a corrupção - com participação de agentes e frações do Estado e da segurança pública - e o crime organizado, em várias dimensões e escalas. Desde a base ao topo da pirâmide que envolve rede de empresas, mas em especial o circuito financeiro com atuação de pessoas e técnicos com grande experiência nesse mercado. E também não quer dizer que toda a extrema-direita estaria envolvida nos crimes, mas tá claro que parte dela se cruza com o PCC. O aprofundamento das investigações tem clareado as relações.
 
A forte e precisa ação do governo federal, PF, RF e do MPF têm sido impecável, em alguns casos com ajuda das polícias estaduais, em outros, com oposição delas e em especial dos governadores.


O passo seguinte e indispensável é a aprovação do projeto legislativo (PEC 18/2025) do governo federal para regulamentar o sistema único de segurança pública (SUSP). 

Até a mídia corporativa já passou a entender e defender a importância do projeto para se avançar no combate contra o crime organizado que lançou seus tentáculos sobre a economia legal, algumas igrejas e para a política partidária no legislativo, executivo e mesmo sobre frações do judiciário nos seus três níveis.

Os dados sobre as investigações e operações são impressionantes, não apenas sobre o volume de recursos e extensão das áreas de atuação, mas sobre a participação de diferentes agentes, em especial do alto circuito financeiro que incluem desde administradoras de fundos e das fintechs (bancos digitais e tecnológicos). Trata-se de conexões em muitos casos transnacionais que vão bem além de nossas fronteiras.
 
Lá atrás, em 2019, quando pesquisei e escrevi, o livro sobre "A 'indústria' dos fundos financeiros: potência, estratégias e mobilidade no capitalismo contemporâneo", eu já chamava a atenção sobre os recursos que circulavam no esquema paralelo, mundialmente conhecido como "shadow bank" (banco sombra). 

Além disso, já era possível perceber o quanto era difícil e opaco acompanhar os movimentos de alguns destes fundos financeiros. Sabia-se, com alguma facilidade, onde os fundos investiam (a divulgação atraía mais investidores e, assim, ampliava o processo de capitalização), mas não se sabia a origem e os proprietários destes dinheiros.

Pois bem, essas investigações indicam algumas destas pontas de novelo que estavam encobertas.
 
Evidentemente, não quer dizer que todo o setor financeiro estaria metido nesses esquemas, mas seria estranho que no Brasil, o crime organizado não estivesse presente entre as gestoras de fundos financeiros que agora em 2025, já administram ativos da ordem de R$ 10,4 trilhões (referência do dia 23/09/2025), segundo dados recentes da Anbima, associação privada que acompanha o mercado de capitais.


PS.: Anexo. Infográfico sobre áreas de atuação internacional do crime organizado na leitura da Fundação Heinrich Böll do Brasil que analisa também as formas de crime e os setores atingidos ligados à produção de carbono com reflexos sobre o clima no Brasil. Veja aqui, uma postagem dessa fundação com o título "A última fronteira: O crime organizado transnacional e a luta contra as mudanças climáticas".

quarta-feira, setembro 24, 2025

Um século depois pergunta-se: há relações entre o Reichstag e a Casa Branca?

A economia e a política sempre andaram juntas apesar de alguns negarem aquilo que é chamado de economia política. Nessa linha, tentando entender fragmentos dessa relação em momentos importantes para a nossa civilização, eu acabei chegando ao pequeno-grande livro A ordem do dia do escritor francês, Éric Vuillard, que li num dia e meio.

A razão da leitura - para a qual sugiro e estimulo -, se deu por conta da curiosidade sobre os bastidores de um dos dois dos momentos-chave da 2ª GGM na opinião do autor: o apoio dado por vinte e quatro dos maiores industriais da Alemanha a Hitler, numa reunião no dia 20 de fevereiro de 1933, no palácio do presidente do Reichstag (parlamento alemão) que é contada em detalhes na publicação.

O segundo momento narrado no livro é o da anexação da Áustria ao Reich que vai se dá só em 1938, depois de muita submissão, traições e atropelos. Ao final, o autor junta os dois momentos para fechar o livro de forma impactante.

A reunião com os industriais foi a razão maior do meu interesse. Uma reunião que foi coordenada pelo presidente do Reichstag, Hermann Goering e teve a presença de Hitler. O principal ponto da pauta foi um pedido de doação aos industriais para a organização de uma próxima campanha eleitoral para "conquistar o poder por completo" nas palavras de Hitler aos empresários. Tudo depois da Grande Depressão de 1929.

O autor cita os vinte e quatro industriais e empresários presentes na “reunião secreta”: Gustav Krupp, Albert Vögler, Günter Quandt, Friedrich Flick, Ernst Tengelmann, Fritz Springorun, August Rosterg, Ernest Brandi, Karl Büren, Günther Heubel, Geog von Schnitzler, Hugo Stinnes Jr, Eduard Schulte, Ludwig von Winterfeld, Wolf-Dietrich von Witzleben, Wolfang Reuter, August Diehn, Eric Fickler, Hans von Loewenstein zu Loewenstein, Ludwig Grautert, Kurt Schmitt, August von Finck e o doutor Stein.

Como diz o autor, esses vinte e quatro empresários não precisavam ser identificados pelos seus nomes da certidão de nascimento, mas se chamam BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG Farben, Siemens, Allianz, Telefunken etc. “Nós os conhecemos muito bem. Eles estão lá no meio de nós, entre nós. São os nossos caros, nossas máquinas de lavar, nossos produtos de entretenimento, nossos rádios-relógios, o seguro da nossa casa, a bateria do relógio de pulso. Estão lá em todos os lugares, sob a forma de coisas. Nosso cotidiano é deles. Eles cuidam de nós, nos vestem, nos iluminam, nos transportam pelas estradas do mundo, embalam nosso sono. E os vinte e quatro homens presentes no palácio do presidente do Reichstag, neste 20 de fevereiro, não passam de mandatários, o clero da grande indústria. São os sacerdotes do deus Ptá. E se mantêm lá impassíveis, como vinte e quatro máquinas de calcular nas portas do inferno”.

Na descrição da “reunião secreta”, Vuillard perfila detalhes das indumentárias, dos movimentos pessoais, suas silhuetas, corredores, escaderias, salões e equipamentos do palácio. O verniz da história me levou a imaginar, uma reunião similar do Trump e a primeira-dama, realizada, há poucos dias, na Casa Branca com os CEOs das Big Techs americanas, conforme notícia de jornal deste domingo, que posto junto da capa do livro como ilustração a esse texto. Não há como não fazer essa comparação, distante no tempo exatos 95 anos, quase um século.

 

Da reunião-secreta no Reichstag em 1930 à santa-ceia na Casa Branca em 2025

A “Santa Ceia” (jantar) de Trump aconteceu na noite de 4 de setembro de 2025, na Casa Branca, reuniu controladores e os CEOs de grandes corporações de tecnologia e teve a presença de Bill Gates e Satia Nadella (Microsoft); Mark Zuckberger (Meta/Facebook) e Alexandr Wang (Meta e ScaleAI); Sam Altman (OpenAI/ChatGPT); Tim Cook (Apple); Sundar Pichai e Sergey Brin (Google/Alphabet); Safra Catz (Oracle); Lisa Su (AMD); David Limp (Amazon - Blue Origin) e outros executivos do Silicon Valley, mais a primeira dama Melanie Trump. 

O número de empresários nessa reunião foi menor do que os vinte e quatro da reunião com Hitler, cerca de quinze, embora esses possuam hoje um controle sobre maiores oligopólios deste setor transversal que atinge todos as demais áreas da economia e da vida em sociedade. A reunião na Casa branca que não foi secreta, mas teve na parte divulgada da agenda, não as doações para a posse de Trump (já definidas), mas investimentos dessas corporações nos EUA.

Matéria Estadão em 21-09-25, p.B12.

O restante dos assuntos, certamente, precisaremos de tempo para conhecer, como foi no caso do Reichstag alemão em 1930. Atualmente esses executivos já verbalizam abertamente que "têm se beneficiado ao trabalhar com Trump", como aconteceu, lá atrás, há 95 anos, quando os industriais se aliaram a Hitler, conforme veremos adiante.

Hoje, os controladores das corporações de tecnologia americana, querem mais apoio para impedir que haja regulação sobre sua atuação seja nos EUA, na Europa, no Brasil e/ou no restante do mundo. Juntos, Trump e os controladores das Big Techs americanas, afirmam, repetidamente, que a disputa principal é para ganhar a guerra contra a China, em especial no campo da Inteligência Artificial (IA), num esforço final de manter a hegemonia e o império estadunidense.

De forma similar, em 1930, estavam no palácio do Reichstag, os donos das indústrias [não os acionistas-controladores das atuais gigantes corporações de tecnologia]. Vuillard, autor do livro afirma, textualmente, que os vinte e quatro estavam no “nirvana da indústria e das finanças” naquele exato momento anterior à reunião, quando os empresários aguardavam as duas maiores autoridades alemães. Depois, o autor segue descrevendo em detalhes o encontro e o pós-reunião do dia 20 de fevereiro de 1930.

Nesta reunião de 1930, Goering fala aos industriais alemães sobre a campanha eleitoral de 1932, falando sobre temas que hoje nos EUA também seriam atuais: "era preciso acabar com a instabilidade do regime e que a atividade econômica exige calma e firmeza, para o quê os vinte e quatro senhores balança religiosamente a cabeça... e se o partido nazista conseguir a maioria, acrescenta Goering, estas eleições serão as últimas pelos dez anos seguintes; até mesmo – acrescenta com uma risada – por cem anos. Um movimento de aprovação percorreu o ambiente... Hitler estava sorridente, descontraído, nada do que imaginavam, afável, sim, até amável, bem mais do que teriam acreditado. Houve para cada um, uma palavra de agradecimento, um aperto de mão vigoroso... O cerne da proposta era acabar com um regime fraco, afastar a ameaça comunista, suprimir sindicatos e permitir que cada patrão fosse um Füher em sua empresa. O discurso durou meia hora. Assim que Hitler se retirou, o presidente do Reichstag, Goering, tomou a palavra e disse que para fazer a campanha que se avizinhava era preciso dinheiro e o partido nazista não tinha um tostão. Um dos 24 senhores presentes se levantou, sorriu para a assembleia e proferiu: - E agora senhores, ao caixa! Assim, os industriais molharam as mãos com ajudinhas centenas de milhares de marcos”.

A aliança entre o poder econômico e o político deixam rastros em diferentes tempos

A relação entre o poder econômico dos industriais e o poder político alemães não se deu apenas no financiamento de campanha como se pode imaginar. Para não me estender demais com mais spoilers sobre o livro, eu vou ao seu final, quando Viullard cita como algumas das facilidades oferecidas por Hitler e pelo o Reich aos industriais alemães em troca das “esmolas do financiamento de campanha”.

Em ato de desespero, Gustav Krupp, um dos vinte e quatro industriais, na primavera de 1944 tem visões. Em seu palácio na Vila Hügel, quando “os exércitos alemães recuavam de todos os lugares, abandonando as áreas e se mudando para as montanhas, longe de Ruhr, em Blühnbach, lá onde as bombas não os atingiriam, na paz fria e branc... num quase delírio, em meio a um “silêncio de anos e sucumbido a uma imbecilidade sem retorno Krupp resmunga medroso junto ao filho e esposa que estaria vendo pessoas rastejando na escuridão do canto da sala”.

O autor Éric Viullard diz que “não eram os fantasmas da Vila Hügel que o congelavam de medo, eram homens de verdade, com rostos de verdade que o encaravam com olhos enormes de figuras que saíam das trevas... eram dezenas de milhares de cadáveres, os trabalhadores forçados, aqueles que a SS tinha fornecido para as suas fábricas... durante anos ele tinha alugado deportados em Buchenwald, em Flossenbürg, em Ravensbrück, em Sachenwald, em Auschwitz e em muitos outros campos. A expectativa de vida deles era de alguns meses. Se o prisioneiro escapava das doenças infecciosas, morria literalmente de fome. Mas Krupp não foi o único a alugar tais serviços. Seus comparsas da reunião de 20 de fevereiro aproveitaram também, atrás das paixões criminais e das gesticulações políticas, seus interesses se encontravam. A guerra tinha sido rentável. A Bayer arrendou mão-de-obra em Mauthausen. A Bayer contratava em Dachau, em Papenburg, em Sachsenhausen, em Natzweiler-Strutholf e em Buchenwald. A Daimler, em Schirmeck. A IG Farben recrutava em Dora-Mittelbau, em Gorss-Rosen em... e explorava acfábrica gigantesca no campo de Auschwitz: a IG Auscwitz, que com todo cinismo colocou esse nome no organograma da firma. A Agfa recrutava em Dachau. A Shell, em Nuengamme. A Schneider, em Buchenwald... A Telefunken, em Gross-Rosen e a Siemens, em Buchenwald, em Flossebbürg, em Neuengamme, em Ravensbrück, em Gross-Rosen e em Auschwitz. Todo mundo aproveitando mão-de-obra muito barata. Não é, portanto, Gustav Krupp que alucina nessa noite, no meio de sua refeição em família...”

Por tudo isso vale a pena ler esse livro do Éric Viullard, que parece importante para intuir os movimentos atuais nos palácios em 2025. É possível que a relação seja um exagero, porém, se a observarmos como alerta, veremos que o relato seja não apenas atual, mas útil, porque o passado sempre tem muito a nos ensinar, se desejamos um destino diferente de outrora.

A prosa da descrição de Viullard é muito precisa, cheia de detalhes, crua, direta, irônica, dura e sem rodeios. Acima de tudo considero ainda mais impactante quando se relaciona e se compara com a “Santa Ceia” do 4 de setembro de 2025, na Casa Branca, em especial, quando penso na precarização atual da mão-de-obra dos entregadores, morrendo no trânsito ou durante a Covid, como os famintos trabalhadores forçados de Auschwitz.

Aqueles trabalhadores produziram e eniqueceram a Bayer, Shell, Daimler, Siemens, etc. Hoje, os entregadores atendem à Amazon e outras gigantes corporações-plataformas digitais que vampirizam nossos dados e vasculham nossas vidas, hipersonalizando possíveis desejos de compras em diferentes lugares do mundo ou auxiliando os golpes políticos de controle sobre o poder de outras nações.

Enfim, encerro voltando à pergunta do título: há ou não relação entre a reunião de 1930 na Reichstag na Alemanha e a de 4 de setembro de 2025, na Casa Branca nos EUA? O que se pode aprender com esses casos?


PS.: Atualizado às 13:44 e 14:00 de 25/09/2025: Para ajustes e acréscimos. A partir de alguns comentários sobre esse texto da postagem nas redes sociais, eu me lembrei de comentar sobre outro livro. Também importante e que trata do mesmo tema e vai nessa mesma linha de investigar as relações entre os industriais e financistas alemães e o Terceiro Reich. Me refiro ao livro do David de Jong "Bilionários nazistas: a tenebrosa história das dinastias mais ricas da Alemanha" que creio já houvesse feito algum comentário sobre ele nesse espaço. Abaixo vou postar os textos de apresentação do livro (orelha e contracapa) onde há também recomendações de leitura que sugerem a necessidade de interpretar e relacionar os fatos à realidade contemporânea.

A história do nazismo na Alemanha é inseparável das biografias dos industriais e financistas que ajudaram Adolf Hitler a conquistar o poder absoluto e lucraram milhões com as atrocidades do Terceiro Reich — são nomes como os Von Finck, Porsche, Oetker e Quandt. Aduladores e inescrupulosos, eles ampliaram seus impérios através do roubo de propriedades judaicas e da exploração do trabalho forçado de vítimas da barbárie nazista, além da fabricação de armas e munições. A brandura do julgamento de seus crimes no pós-guerra possibilitou a continuidade de suas dinastias empresariais, cujos herdeiros acumulam fortunas e administram marcas mundialmente famosas até hoje, como Volkswagen, Dr. Oetker, BMW e Allianz. E por que, depois de tantas décadas, eles ainda estão fazendo tão pouco para reconhecer os crimes de seus antepassados?

Debruçado sobre milhares de documentos e fontes originais, além de abrangentes pesquisas historiográficas, o jornalista e historiador David de Jong — holandês de origem judaica — disseca as origens obscuras das fortunas multiplicadas a ferro e fogo entre 1933 e 1945. Neste livro, seu trabalho de estreia, o autor faz um chamado ao resgate da memória do genocídio nazista, tarefa primordial em tempos de ressurgência do extremismo antidemocrático.

"O desafio, como De Jong nos lembra, é reatualizar essa história para continuamente encontrar novas maneiras de trazê-la para o presente." — Adam Tooze, Professor de história da Universidade de Columbia e diretor do European Institute.

Depois de ler este livro você nunca mais dirigirá um Volkswagen, fará um seguro residencial com a Allianz ou comprará uma pizza Dr. Oetker no mercado sem um certo mal-estar. De Jong, com o talento do bom jornalista que é, permite que os fatos falem por si mesmos. E nos deixa impressionados com o poder da ganância". — The Daily Telegraph.

"Com seus relatos meticulosamente construídos de indivíduos e famílias alemãs, incluindo judeus que foram expropriados, Bilionários nazistas sugere que até hoje as reparações dos lucros que alguns colheram em uma era de horror não foram feitas." — Samuel Moyn, professor da Universidade de Yale.

"O fato de algumas das maiores fortunas da Alemanha estarem profundamente entrelaçadas com as ignomínias do Terceiro Reich deveria ser muito mais conhecido — e, graças a este livro, será." — Bradley Hope, New York Times, autor de Billion Dollar Whale.

quarta-feira, setembro 17, 2025

O uso intenso da digitalização e IA explica e reforça a hegemonia financeira que a sustenta

Atualmente, oito em cada dez bancos no Brasil, já usam IA generativa em suas operações, onde essa ferramenta desempenha um papel que deve ser interpretado como estratégico.

 Pesquisa Febraban Tecnologia Bancária - Slide 15/53.

Os usos da GenAI no setor bancário são os mais diversos, como pode ser visto no quadro ao lado extraído da pesquisa da Febraban sobre tecnologia bancária. Desde o atendimento ao cliente em substituição ou complemento ao gerente de conta, desenvolvimento de novos sistemas, marketing, comunicação, segurança, etc.

Esse é apenas um simples exemplo empírico da investigação que venho desenvolvendo sobre os elementos que comprovariam a intensa relação e o imbricamento do setor financeiro com as plataformas digitais (para além do financiamento). A hipótese é que o setor financeiro (e bancário) é o precursor da chamada "transformação digital" que nos dias atuais já se espalhou para a maioria dos demais setores.

Mesmo com o gigantismo das corporações de tecnologia (Big Techs), reafirmo, com base também no caso empírico brasileiro, o que afirma o amigo pesquisador, Edmilson Paraná, em um de seus artigos: “todos os movimentos saem de Wall Street para o Vale do Silício e não o contrário”.

Sim, trata-se de um fenômeno que é global, mas não se pode desconsiderar que o Brasil possui uma história singular e importante nessa área, na medida em que o setor financeiro nacional, por muito tempo serviu de exemplo e ainda hoje é referência para outros países naquilo que há quase quatro décadas se chamou de “informatização bancária”.

 

A evolução (linha do tempo) da informatização/digitalização do setor financeiro no Brasil

A informatização bancária é um movimento que no Brasil vem desde a década de 80, quando vai para além dos centros de processamento de cheques dos bancos e chega ao lançamento do 1º caixa eletrônico. Na década de 1990, tem-se a emissão dos primeiros boletos; em 1995 a implantação do Internet Banking, depois os aplicativos, as fintechs ... até chegar ao Pix, lançado em novembro de 2020, pelo Banco Central, que em maio de 2025, já tinha chegado ao colossal número de 175,4 milhões usuários, sendo 160 milhões de usuários de Pessoas Físicas (CPF) e 15,4 milhões de Pessoas Jurídicas (CNPJ.

No Brasil, o Mobile Banking, com uso dos celulares para relacionamentos e transações financeiras, já abrange quase a totalidade dos incluídos no sistema bancário. Segundo a mesma pesquisa, 90% das transações já são feitas por plataformas móveis, num quantitativo que soma a mais de 200 bilhões de transações, não apenas no Pix, embora esse seja maioria, com recorde diário de 191 mil transações por minuto segundo o Banco Central, número bem superior às transações dos cartões, embora parte delas em Pix feitos com QR Code das maquininhas. Nenhum outro setor da economia vive tão intensa transformação digital quanto o setor financeiro. Nem no Brasil e mesmo no mundo.

Esse uso intenso dos mecanismos móveis dos celulares e aplicativos não acontecem só com os bancos, mas com todas as empresas do setor financeiro, incluindo as gestoras e administradoras de fundos de todos os tipos e tamanhos.

Grandes fundos não operam decisões sem análises de riscos e/ou modelagem com uso digital e de IA para analisar performance de empresas onde buscam participações em ações, ou ainda em suas análises preditivas de câmbio e juros. O gigante fundo americano BlackRock trabalha, a nível global, com a sua plataforma Aladdin na administração do inigualável patrimônio de US$ 12,5 trilhões, superior ao PIB de maioria das nações do planeta.


Uso crescente e ampliado da tecnologia digital nas finanças

Nesse processo de intensificação do uso das tecnologias digitais, a implementação da IA nos bancos e setor financeiro como um todo, estão avançando enormemente com o uso de redes neurais, aprendizado de máquina, biometria, tratamento e análise de dados, chatboots, robôs, etc. Eles servem entre outras coisas para análise de riscos, detecção de fraudes, cibersegurança, hiperpersonalização de ofertas de negócios financeiros, seguros, etc.  

Assim, é possível intuir que a utilização mais intensa da Inteligência Artificial (IA) no setor financeiro - e ainda da IA generativa (GenAI) - parece nos oferecer pistas sobre como essa nova tecnologia digital da IA que usa intensivamente dados, algoritmos, aprendizado profundo de máquinas e as estatísticas para interpretar situações no setor financeiro, podem estar dirigindo os caminhos também para a indústria, comércio e os vários tipos de serviços digitalizados que observamos.

Nessa linha, a interpretação é que a relação imbricada entre tecnologia e finanças vai muito para além do simples financiamento e do controle creditício e acionário de um setor sobre o outro. Na verdade, esse movimento das finanças para a tecnologia e desta para todos os demais setores, em que essas duas frentes atuam, de forma transversal e na maior parte do tempo, de forma livre e desregulamentada.

 

A questão não é o uso da digitalização, mas a direção, o controle e quem são os ganhadores ou perdedores

Observando o processo histórico dessa relação no Brasil e no mundo, qualquer um pode identificar, que a tecnologia não é o problema per si. Esse desenvolvimento tecnológico trouxe vantagens e desvantagens. Trouxe empregos e desempregos, embora em diferentes setores. Produz continuidades e descontinuidades. Trouxe comodidades e mudanças na forma como vivemos, aprendemos, realizamos compras, contratamos e somos atendidos nos serviços, pagamos as contas e interagimos socialmente em comunidades etc. O grande problema é saber a quê e a quem tudo isso serve? Saber principalmente quem mais ganha com todos esses avanços que tem concentrado mais renda e ampliado ainda mais as desigualdades.

Por tudo isso, entender onde tem origem esse processo e como ele se desenrola parece um diagnóstico importante a ser destrinchado, num momento em que todos nós já descobrimos a importância dos nossos dados, não apenas para a nossa privacidade, mas também para ganhos em escalas de poucas corporações que se tornam gigantes no centro do capitalismo.

Os chineses compreenderam e expuseram no seu Plano IA+ que os dados devem ser vistos como fator de produção e e devem estar a serviço do coletivo e do comum, além de servir para impulsionar a transformação digital e a modernização econômica. Porém, transpor esse princípio para a prática é algo mais complicado e exige outras dimensões de intervenção.

Temos visto esse problema, que, na verdade, se trata de um dilema, em todo o mundo. Praticamente todos os países do Ocidente sofrem hoje uma potente e reacionária onda e pressão contra seus Estados, ao entenderem ser indispensável a definição e o estabelecimento de marcos legais e regulatórios com regras sobre a tecnologia digital e sobre o uso das plataformas digitais de todos os tipos, desde o convívio entre pessoas, negócios até as relações de poder.

Diante desse quadro, penso, junto com muitos outros, que da mesma forma que lutamos no passado para que, paulatinamente, pudéssemos garantir os direitos sociais mínimos, desde o trabalho diário, hoje, não será sem luta que os direitos digitais serão também conquistados e garantidos para além da privacidade dos nossos dados.

O objetivo deve ser evitar a ampliação ainda maior da já colossal concentração de renda e as ameaças do neofascismo e da barbárie e, em defesa de relações mais humanas, solidárias e de uma vida sobre o prisma da coletividade e do comum.

sábado, setembro 13, 2025

Ao fim do 1º sem 2025 dívida da Prumo (Porto do Açu) chega a R$ 14,1 bilhões com US$ 2,4 bi de movimentação de cargas e lucro de R$ 142 milhões

A holding Prumo Logística Global que controla o Porto do Açu (RJ) e é controlada pela gestora do fundo financeiro americano EIG Partners (EIG Global Energy Partners) fechou o primeiro semestre de 2025 com uma dívida de R$ 14,1 bilhões, diante de uma movimentação de cargas no valor FOB em dólar de US$ 2,410 bilhões (25% maior que 2024 que foi de US$ 1,918 bilhão); receita no semestre de R$ 950,7 milhões (28,9% maior que 2024 que foi de R$ 741,4 milhões) e um lucro também semestral de 142,7 milhões. Portanto um crescimento naul expressivo em movimentação de cargas, receitas e lucros entre 25% e 30%.

A gestora estadudinense de fundos EIG Global Energy Partners (EIG Asset Management) controladora da Prumo opera desde 1982, atua hoje em 6 continentes e 44 países, controla 420 companhias e tem participação de US$ 51,3 bilhões em ativos em todo o mundo. Em 2013, quando da derrocada de Eike, por conta dos investimentos na sua empresa de petróleo OGX, a EIG Partners injetou uma quantia em recursos e ficou com o controle da empresa LLX companhia de logística Eike Batista e logo depois trocou o nome da companhia para Prumo Logística Global que, a seguir, se transformou num grupo (holding) com várias empresas subsidiárias entre elas o Porto do Açu (PdA).

 

1 - Da gênese da LLX à Prumo dos dias atuais

Em 2014, o fundo soberano dos Emirados Árabes Unidos (EAU), Mubadala, que tinha um crédito de US$ 2 bilhões com a holding EBX, ficou com as ações da LLX que restavam com o empresário Eike Batista. Cinco anos depois, em 2028, a Prumo fechou o capital e saiu da Bolsa de Valores, adquirindo as ações dos investidores minoritários tendo como principal ativo o Porto do Açu e empresas coligadas.

Mesmo acompanhando menos assiduamente os últimos movimentos relativos ao empreendimento do complexo logístico portuário industrial do Açu (antes chamado de Clipa), venho anualmente comentando sobre os valores relativos à movimentação de cargas (exportações +/- 90% e importações de cerca de 10%) do empreendimento do Açu.

Foto de Ricardo Stuckert / PR em 28 jul. 2025.

Agora em 2025, o complexo logístico portuário do Porto do Açu atua com dois principais terminais: T1 (offshore onde exporta petróleo e minério de ferro); T2 (onshore onde operam o apoio offshore com o terminal de apoio offshore da americana Edson Chouest, o TMULT, terminal multicargas e vários outros terminais de empresas. No total são 11 terminais e 28 empresas instaladas no complexo.

No espaço de 90 Km² de área disponível para instalações industriais, energia e outros negócios, há duas unidades de geração termelétrica da GNA (I e II) e vários projetos de negócios, embora ainda hoje não mais que 10% de toda a área comprada e desapropriada violentamente de pequenos produtores do antigo 5º Distrito de São João da Barra. 

A maior movimentação (disparada) de cargas do Porto do Açu é de petróleo (cerca de 40% das exportações brasileiras) efetuada no terminal T-Oil para cerca de 8 diferentes petroleiras, além da Petrobras e minério de ferro para a mineradora Anglo American. Petróleo e minério ficam com cerca de 75% de toda a movimentação portuária de cargas.

Em outubro próximo, o Porto do Açu (PdA) completa 11 anos de atividades de movimentação de cargas iniciada em 2024, com as exportações de minério de ferro, através da joint venture Ferroport, formada entre a Prumo e a mineradora Anglo American (corporação inglesa-sul africana).


2 - Região como mero “território de passagem”

Nesse período de pouco mais de uma década, continuo afirmando que, majoritariamente, a região do Norte Fluminense que concedeu o espaço litorâneo para instalação do empreendimento do complexo do Açu, com características de Cadeia de Valor Global (CVG) Açu, segue como uma espécie de “território de passagem” de uma colossal riqueza que circula por aqui (quase R$ 40 bilhões apenas no ano de 2024). Porém, agregando muito pouca coisa à região onde produz enormes impactos nem sempre identificados, como as violentas desapropriações, o avanço do mar no balneário de Barra do Açu (impacto previsto desde o EIA-Rima), sobre o trânsito, embora também gere postos de trabalho (em quantidade bem menor que a divulgada na fase de operação após a construção dos empreendimentos) e a receita de ISS.

Essa condição a que tenho chamado de "território de passagem" é uma das características principais de um porto de 5ª geração como o caso do Açu com conexões na escala global (interligando pontos de uma cadeia de valor global - CVG). Até hoje o Porto do Açu incorpora pouco valor em atividades industriais, que seria do que foi estimado como um complexo logístico-industrial (ou Zona Industrial Portuária - ZIP ou MIDAs, Maritime Industrial Development Area) para uso da enorme retroárea de mais de 90 Km², fruto, como já foi dito, em boa parte, de centenas de desapropriações violentas, sobre pequenos produtores rurais, cuja maioria até hoje não recebeu suas indenizações que aguardam a definição dos processos judiciais. 

As exceções são as duas unidades de geração de energia elétrica (UTE) da GNA e a FMC-Technip com a produção de tubos flexíveis para uso nas instalações offshore das petroleiras para extração de petróleo. A geração de energia a gás pela GNA usa um terminal de GNL (Gás Natural Liquefeito) que hoje é importado dos EUA e atende à GNA-I que entrou em operação em 2021 com 1,3 GW de capacidade. Já a GNA-II foi inaugurada agora em 2025 com 1,7 GW de capacidade. Juntas, elas formam o maior complexo de geração de eletricidade a gás natural da América Latina, com 3 GW de capacidade total, que entram em operação, quando demandadas pelo sistema de energia elétrico nacional.

GNA-I e II e T2. Foto Ricardo Stuckert / PR 28 jul. 2025.

Outra exceção pode ser a do projeto, já licenciado e aguardando investidores para implantação, na produção de hidrogênio verde que concorre com dezenas de outros projetos semelhantes a nível nacional, a maioria também projetada junto a complexos portuários. A exceção de servir à industrialização pode acontecer porque os produtos podem ter também pode ter como destino, basicamente, a exportação de amônia e não ao uso em industrialização no distrito industrial do porto, mantendo a atual característica de um porto de movimentação de cargas e riquezas de cadeias de valor global (CVG), sem gerar aquilo que os economistas chamam de externalidades dessa importante infraestrutura portuária do Açu, no Norte do Estado do Rio de Janeiro.

 

3 - Novos negócios, a extraordinária dívida e a lógica da gestão de ativos dos investidores

A Prumo tem informado que até hoje o empreendimento no Açu em São João da Barra já se utilizou de cerca de R$ 22 bilhões de investimentos (US$ 4,1 bilhões) desde o início da construção do porto, em 2008, e tem expectativa de investir outros R$ 20 bilhões nos próximos 10 anos.

A dívida financeira de R$ 14,1 bilhões tomados com empréstimos no Brasil (indexada pelo CDI e IPCA e spread médio de 15,6%) – e com emissão de debêntures (títulos privados) e no exterior (em dólar) é expressiva, mesmo considerando o porte do empreendimento.

É possível que, ao longo do tempo, essa dívida possa ser saudada em parte e/ou compartilhada com investimentos e divisão de sociedades com outros investidores estrangeiros, interessados em investir na infraestrutura logística brasileira, considerando o potencial de uso de nossos portos. Isso já vem acontecendo com os negócios de algumas das empresas subsidiárias da Prumo, como no caso da Vast Infraestrutura, companhia que faz transbordo de petróleo no T1 e teve 70% vendida para a empresa chinesa China Merchants Port, CMP.

Porém, o investimento em infraestrutura, normalmente, têm prazos de retorno mais longos e servem a corporações e fundos que também possuem interesses nas movimentações de cargas de outros de seus negócios e ativos. Nesse cenário, embora hoje a maioria dos investimentos e controle de negócios no Porto do Açu, sejam ligados a investidores dos EUA, tem sido a China a maior interessada nesses negócios portuários, infraestrutura e energia no Brasil, o que colocaria o empreendimento na mesma encruzilhada da disputa EUA x China, como elemento importante das atuais contendas geoeconômica e geopolítica global. O crescimento atual da economia do Brasil cria expectativas de comércio externo. Já uma eventual redução dos negócios globais e mesmo novos conflitos regionais, por outro lado, impactam negativamente o uso dos terminais portuários e poderiam afastar investidores.

Do ponto de vista da região, se observa como importa tão pouco os interesses regionais nas discussões sobre investimentos nesse grande investimento. Negócios são fechados entre corporações no plano global e a região assiste como se fosse a um programa de TV, sem perceber que muitas dessas decisões influenciam pesadamente a realidade sobre o nosso território.

Um exemplo apenas dessa última semana, a mineradora Anglo American, a primeira empresa a exportar pelo Porto do Açu, decidiu essa semana realizar uma fusão bilionária com a mineradora canadense Teck Resources criando uma gigante corporação do setor de mineração com sede no Canadá e negócios de ações em Londres. Em 2024, a Anglo American já tinha aprovado a venda de 15% da sua operação no Brasil, a Minas-Rio, para a Vale e tem sinalizado interesse em se voltar mais para a extração de cobre de olho na expansão da eletrificação mundo afora.

Negócios de infraestrutura logística tendem a se articular com corporações que atuam em cadeias de valor global, se importando menos com as questões locais e regionais, onde possuem capital fixo instalado no território. Vislumbram alta fluidez das suas cargas para ganhos em produtividade, contabilizando os ativos e nutrindo expectativas de grandes rentabilidades no menor prazo possível, dentro da lógica de gestão de ativos que interessa aos investidores cuja maioria nem sabe onde fica São João da Barra.

quarta-feira, agosto 27, 2025

EUA à beira do caos: Trump, tropas nas ruas e o fantasma da guerra civil, por Reynaldo Aragon

 

EUA à beira do caos: Trump, tropas nas ruas e o fantasma da guerra civil

 Reynaldo Aragon

26 de agosto de 2025

 


As medidas de Trump para controlar capitais democratas, a tensão com governadores e prefeitos e o risco real de fragmentação institucional expõem a maior crise interna americana em décadas

O que parecia apenas mais um embate político nos EUA agora se transforma em um teste histórico: tropas federais deslocadas para as ruas de Washington, disputas abertas com governadores democratas e ataques à independência do Federal Reserve revelam um país em ebulição. Estaria a democracia americana entrando em colapso? Neste artigo inédito, apresentamos uma análise estratégica e preditiva do cenário, antecipando os possíveis desdobramentos da crise mais grave dos Estados Unidos no século XXI.

Por que os EUA estão à beira do caos

 

Na manhã de 26 de agosto de 2025, as imagens que circulam das ruas de Washington e de outras capitais norte-americanas parecem retiradas de um manual de guerra híbrida em território doméstico. Tropas da Guarda Nacional patrulham bairros centrais, enquanto ordens executivas da Casa Branca disputam espaço com contestações judiciais e declarações inflamadas de governadores e prefeitos democratas. Ao mesmo tempo, o presidente Donald Trump insiste em um discurso de “lei e ordem” que, mais do que restaurar a paz, amplia a tensão entre instituições federais e locais. A disputa pelo controle da segurança interna já não é apenas uma batalha política: tornou-se um teste de estresse para a democracia mais antiga do Ocidente.

Este artigo parte de uma pergunta provocadora — e que há décadas alimenta a imaginação de analistas, acadêmicos e jornalistas: poderiam os Estados Unidos caminhar para uma guerra civil ou mesmo para uma ditadura sob a figura de Trump?. O ethos aqui não é o da especulação fácil, mas o da análise estratégica com capacidade preditiva. Ao mobilizar o que chamamos de jornalismo estratégico, buscamos ultrapassar a mera descrição factual dos acontecimentos e construir um diagnóstico denso, que ajude tanto o público quanto os tomadores de decisão a compreender as variáveis em jogo e os cenários possíveis.

O jornalismo estratégico, em seu estado da arte, não se limita a informar. Ele age como um sistema de alerta precoce — um radar que conecta elementos históricos, sociais, econômicos e políticos para mapear não só o presente, mas também os sinais de futuro. Nesse sentido, os confrontos institucionais nos EUA, a militarização da política doméstica e o risco de erosão da independência econômica (com a pressão direta sobre o Federal Reserve) não podem ser analisados isoladamente. São peças de uma engrenagem maior: a tentativa de consolidar um poder autoritário em um país fundado sobre freios e contrapesos.

Mais do que perguntar se Trump já é um ditador, é preciso compreender se a combinação de suas decisões, suas bases sociais radicalizadas e a fragilidade das instituições americanas abre espaço para a consolidação de um regime híbrido — formalmente democrático, mas autoritário, na prática. Ao mesmo tempo, é necessário avaliar se a escalada atual se traduzirá em um conflito difuso, de baixa intensidade, que fragmenta a unidade federativa, alimenta movimentos separatistas e redesenha os contornos da política interna dos EUA.

Este é o ponto de partida: apresentar, com rigor e método, os riscos reais, os cenários plausíveis e as consequências de um país que pode estar à beira de seu maior colapso institucional desde a Guerra Civil do século XIX.

 

Contexto histórico e institucional — quando o passado ecoa no presente


Os Estados Unidos nasceram sob a tensão permanente entre autoridade federal e autonomia estadual. A Constituição de 1787 consagrou esse equilíbrio frágil em um pacto que, ao longo de mais de dois séculos, foi testado em momentos de ruptura: da Guerra de Secessão (1861-1865) à luta pelos direitos civis nos anos 1950-1960, passando pela turbulência de 1968 e pela “guerra contra o terror” após os atentados de 11 de setembro. Cada crise expôs a mesma contradição: até onde vai o poder do presidente quando confrontado pela resistência de estados e cidades?

Em 1957, Dwight Eisenhower enviou tropas da 101ª Divisão Aerotransportada para garantir a matrícula de estudantes negros em Little Rock, Arkansas, desafiando a autoridade estadual segregacionista. Em 1968, diante dos protestos contra a Guerra do Vietnã, a presença militar em cidades norte-americanas trouxe à tona o debate sobre repressão e direitos civis. Em 2020, Donald Trump, já então presidente, ameaçou invocar o Insurrection Act para conter manifestações do movimento Black Lives Matter, mas recuou diante da pressão de governadores e chefes militares. Esses episódios mostram que o uso de forças federais em território interno não é novo — mas sempre esteve circunscrito a situações extraordinárias e cercado de contestação legal.

Duas peças legais são hoje fundamentais para compreender os dilemas de 2025. A primeira é o Insurrection Act (1807), que autoriza o presidente a empregar forças armadas em solo nacional em casos de insurreição, obstrução da lei ou ameaça à integridade dos EUA. Trata-se de um dispositivo raro, acionado em situações extremas, cuja invocação direta até agora Trump evitou — mas cujo fantasma ronda cada uma de suas declarações. A segunda é o Home Rule Act (1973), que concede ao Distrito de Columbia autonomia administrativa limitada, mas preserva ao presidente prerrogativas sobre a segurança da capital. É justamente essa brecha que tem permitido a Trump deslocar tropas para Washington sem passar por governadores, abrindo precedente perigoso para futuras expansões.

A lógica do federalismo norte-americano atua, portanto, como barreira e campo de batalha ao mesmo tempo. De um lado, governadores democratas como Gavin Newsom (Califórnia) e J.B. Pritzker (Illinois) mobilizam tribunais estaduais e cortes federais para contestar as medidas da Casa Branca. De outro, prefeitos de cidades-alvo — de Chicago a Los Angeles — transformam sua resistência em palanques políticos, desafiando a narrativa presidencial. Essa disputa jurídica e simbólica ecoa as lutas históricas entre estados e União, mas carrega uma novidade: a combinação de polarização partidária extrema, desinformação em massa e um presidente que flerta abertamente com a lógica de “homem forte” capaz de se sobrepor às instituições.

Se no passado presidentes utilizaram tropas para garantir direitos constitucionais ou responder a crises nacionais específicas, em 2025 o movimento parece inverter a lógica: trata-se de usar a força federal para desafiar governos locais e consolidar poder político pessoal. É aqui que o fantasma da ditadura ganha corpo, não como ruptura súbita do sistema, mas como erosão gradual dos freios e contrapesos que sustentam a república norte-americana desde sua fundação.


O presente em ebulição — agosto de 2025


O verão político de 2025 nos Estados Unidos entrou para a história como um marco de instabilidade. O presidente Donald Trump, em seu segundo mandato, decidiu elevar a tensão ao deslocar unidades da Guarda Nacional e forças federais para o coração da política americana. Washington, D.C., epicentro institucional, tornou-se vitrine de uma nova estratégia de poder: decretos presidenciais sob a justificativa de “emergência criminal” permitiram que o Executivo assumisse temporariamente o comando da Polícia Metropolitana, algo contestado por juristas e legisladores locais. O gesto foi mais do que simbólico: mostrou que Trump está disposto a transformar a capital em laboratório de controle autoritário.

A ofensiva não parou em Washington. O presidente acenou com a possibilidade de enviar tropas também para Chicago, um dos maiores redutos democratas do país, sob o argumento de combater “gangues e terrorismo urbano”. A reação foi imediata: o governador de Illinois, J.B. Pritzker, classificou a medida como “intervenção inconstitucional” e anunciou que acionará os tribunais federais. Situação semelhante se desenha na Califórnia, onde o governador Gavin Newsom denunciou os movimentos da Casa Branca como “ensaio de golpe branco”. Prefeitos de grandes cidades ecoaram o discurso: Lori Lightfoot, em Chicago, e Karen Bass, em Los Angeles, acusaram Trump de governar pela força, não pelo diálogo.

Outro front de conflito emergiu na economia. A tentativa de Trump de demitir a diretora do Federal Reserve, Lisa Cook, incendiou os mercados e gerou alarme entre economistas. A independência do Fed, pilar da estabilidade global, sempre foi considerada intocável. Atacar essa instituição é sinal claro de que o presidente pretende dobrar a máquina econômica aos seus interesses políticos. As primeiras reações não demoraram: queda nos mercados de títulos do Tesouro, volatilidade cambial e declarações de alerta de Wall Street. Para analistas, esse foi o gesto mais arriscado de Trump desde a posse — porque atinge diretamente a confiança internacional no dólar.

Enquanto isso, as ruas começam a refletir a divisão. Em Washington, grupos ligados ao movimento MAGA organizaram vigílias em apoio às tropas, enquanto manifestantes contrários denunciaram a escalada autoritária. Em redes sociais, influenciadores conservadores descrevem Trump como “o único capaz de restaurar a ordem”, enquanto veículos progressistas falam em “ensaio de ditadura”. O Departamento de Segurança Interna (DHS) elevou o alerta de risco de violência política doméstica, prevendo novos incidentes em protestos nos próximos meses.

Trump, por sua vez, mantém o tom desafiador. Em entrevista recente, negou ser um “ditador” e ironizou: “Sou apenas o único presidente que tem coragem de enfrentar os criminosos que os democratas protegem”. A frase, repercutida por toda a imprensa, sintetiza o momento: para seus apoiadores, um líder firme contra o caos; para seus críticos, um governante que testa, dia após dia, os limites do sistema democrático.

No curto prazo, o país parece avançar em direção a um impasse constitucional. Tribunais de apelação no Distrito de Columbia e na Califórnia já receberam ações para barrar as medidas federais. Congressistas democratas pressionam por uma resposta legislativa, mas a polarização no Capitólio paralisa qualquer consenso. O que se vê é um jogo de forças em tempo real: Trump aposta na ocupação militarizada e na retórica de guerra; seus adversários tentam ativar os mecanismos legais e a opinião pública para freá-lo.

A ebulição de agosto de 2025, portanto, não é apenas conjuntural. É a tradução concreta de uma disputa de poder que ultrapassa a política tradicional e entra no terreno da legitimidade institucional. Se o presidente pode usar tropas para desafiar estados e ainda ameaçar a independência do Fed, a pergunta que se impõe não é apenas “até onde ele vai”, mas até onde as instituições estão dispostas — e preparadas — para resistir.

  

A hipótese “Trump ditador”: limites e possibilidades

A ideia de que Donald Trump poderia se tornar um ditador nos Estados Unidos não é nova, mas em agosto de 2025 ela deixou de ser mera retórica de campanha e passou a ser uma hipótese testada na prática, diante das decisões que ampliam a presença militar em cidades, contestam a independência do Federal Reserve e tensionam os freios constitucionais. É preciso, antes de tudo, compreender o que significa falar em “ditadura” no caso norte-americano. Diferentemente de regimes clássicos em que o Executivo concentra os poderes coercitivos, dissolve parlamentos e impõe censura aberta, o risco mais plausível nos EUA é o de um regime híbrido, no qual eleições e instituições continuam formalmente existindo, mas são inclinadas em favor do governante por meio de captura institucional, intimidação de opositores e uso estratégico da máquina estatal.

 As barreiras constitucionais ainda funcionam como travas relevantes. O federalismo norte-americano confere aos estados amplo controle sobre suas polícias e instituições locais, limitando a capacidade de intervenção direta do presidente. O Judiciário federal, com jurisdição nacional, e o Congresso, responsável pelo orçamento, completam esse sistema de freios e contrapesos que, até hoje, impediu aventuras autoritárias de se consolidarem. Além disso, a burocracia profissional, formada por servidores estáveis e especialistas, resiste a mudanças bruscas e não pode ser substituída de imediato por quadros leais ao presidente. Tudo isso significa que a clássica imagem de um decreto dissolvendo o sistema, típica das ditaduras latino-americanas ou europeias do século XX, não encontra equivalência nos EUA. O caminho viável para Trump seria mais lento, tático e dependente de crises que forneçam justificativa para centralização.

Os poderes de emergência são, nesse sentido, os instrumentos mais perigosos. O Insurrection Act, de 1807, autoriza o emprego das Forças Armadas em território doméstico diante de insurreições ou ameaças à integridade do país. Sua invocação exige narrativa convincente de colapso e está sujeita a revisão judicial e contestação política. A Posse Comitatus Act restringe o uso das Forças Armadas em operações civis, embora a federalização da Guarda Nacional ofereça ao presidente uma margem de manobra significativa, especialmente no Distrito de Columbia, onde o Home Rule Act garante prerrogativas ampliadas. O que se desenha, portanto, não é um cenário de militarização generalizada, mas de operações episódicas e concentradas, usadas tanto para pressionar adversários como para alimentar uma narrativa de força.

A estratégia mais concreta de erosão democrática está no campo da captura institucional. Trump e seus aliados vêm buscando alterar a estrutura do Departamento de Justiça e das agências de segurança, orientando investigações seletivas contra opositores e blindando aliados por meio de lawfare e indultos estratégicos. A tentativa de demitir a diretora do Federal Reserve, Lisa Cook, sinaliza o desejo de dobrar agências independentes à lógica do ciclo político, minando a confiança internacional no dólar. Ao mesmo tempo, iniciativas como a reclassificação de cargos públicos — conhecidas como “Schedule F” — buscam abrir caminho para demissões em massa e nomeações por lealdade, enfraquecendo a burocracia profissional. Essa estratégia, se tolerada pelos tribunais, pode inclinar de forma sistemática as condições da competição política.

Fora do núcleo institucional, a base de sustentação de Trump se apoia em dois pilares: a guerra informacional e a mobilização de grupos armados. Nas redes sociais e em sua rede midiática, o presidente cultiva a imagem de líder acima das instituições, alguém capaz de restaurar a ordem contra a “anarquia democrata”. Ao mesmo tempo, grupos paramilitares e milícias locais oferecem um suporte difuso, cuja função não é derrubar o Estado de uma vez, mas criar climas de intimidação localizada, encarecendo a resistência de jornalistas, opositores e comunidades críticas. O uso de litigância agressiva contra tribunais e a multiplicação de disputas judiciais formam, por sua vez, uma estratégia de saturação, na qual o objetivo não é vencer todas as batalhas, mas ganhar tempo, produzir precedentes e esticar os limites constitucionais.

O fator militar continua sendo decisivo. As Forças Armadas norte-americanas carregam uma tradição de apoliticidade e disciplina institucional, e não é trivial que adiram a ordens de caráter autoritário. A adesão dependeria de interpretação jurídica favorável e, sobretudo, de uma conjuntura marcada por violência de grande magnitude. Sem esse gatilho, o uso amplo de tropas permanece restrito e concentrado em D.C. ou em operações pontuais.

A economia, por outro lado, aparece como o freio mais imediato a aventuras autoritárias. A simples tentativa de intervenção no Fed gerou instabilidade nos mercados, com queda de títulos do Tesouro e pressão cambial. O dólar e os Treasuries funcionam como sensores de risco: quando a confiança internacional oscila, o custo político e econômico de manter a escalada cresce exponencialmente. Nesse cenário, o apoio empresarial tende a se dividir: setores interessados em desregulação podem apoiar Trump, mas a instabilidade jurídica e o risco de colapso financeiro afastam parte das elites econômicas.

O que emerge, portanto, não é a imagem de um ditador clássico, mas a possibilidade de um regime híbrido, sustentado por captura institucional seletiva, uso estratégico de forças federais em momentos críticos, pressão econômica e guerra informacional constante. A consolidação desse regime dependerá de três fatores-chave: a resposta das instituições judiciais e estaduais, a reação dos mercados financeiros e a capacidade de Trump de manter sua base mobilizada sem provocar um colapso sistêmico que inviabilize seu próprio governo.

Em síntese, a hipótese de Trump ditador pleno permanece improvável. Mas a hipótese de Trump como líder de um regime híbrido, democrático na forma e autoritário no conteúdo, é cada vez mais plausível. Esse é o risco mais concreto para o futuro imediato dos Estados Unidos: a erosão gradual da democracia, não o golpe súbito. O que está em jogo não é a morte instantânea do sistema, mas a sua corrosão lenta — e é justamente nesse processo que a vigilância, a análise preditiva e o jornalismo estratégico se tornam indispensáveis.

 

O fantasma da guerra civil

Poucas expressões assombram tanto o imaginário norte-americano quanto a possibilidade de uma nova guerra civil. A referência à ruptura de 1861–1865 aparece como fantasma recorrente sempre que tensões internas se intensificam. No entanto, o cenário atual, em agosto de 2025, exige precisão conceitual: os EUA não caminham para repetir o conflito clássico entre estados escravistas e estados livres, com exércitos formais em confronto aberto. O que se desenha, muito mais plausivelmente, é a hipótese de um conflito difuso, fragmentado e de baixa intensidade, alimentado por polarização informacional, milícias locais, ações de violência política esporádica e tentativas de erosão institucional.

A fragmentação territorial e simbólica é um dos motores desse processo. Estados como o Texas e parte do meio-oeste alimentam discursos de autonomia radical e, em alguns setores, flertam abertamente com o separatismo. O movimento “Texit”, por exemplo, embora minoritário, funciona como catalisador de um imaginário que coloca em xeque a própria unidade da federação. Essa retórica, somada à cultura de armas profundamente enraizada e à existência de milícias paramilitares organizadas, cria uma base fértil para que confrontos localizados assumam caráter político. Ainda que não haja hoje condições materiais para uma guerra civil formal, a disseminação de células armadas autônomas, muitas vezes conectadas em rede via plataformas digitais, já configura um ambiente de violência política persistente.

Esse risco tem sido documentado por centros de pesquisa e think tanks especializados em segurança. Estudos do Chicago Project on Security and Threats (CPOST) e levantamentos da ACLED (Armed Conflict Location & Event Data Project) mostram aumento consistente de episódios de violência ligados a motivação política desde 2020. Não se trata de batalhas campais, mas de atentados, ataques a prédios governamentais, intimidação de comunidades minoritárias e choques em protestos. Pesquisadores como Robert Pape alertam que os EUA vivem uma fase de “pré-insurgência difusa”, na qual pequenos atos de violência se somam e geram sensação de instabilidade permanente.

O fator informacional aprofunda esse quadro. A guerra cultural e cognitiva transforma a sociedade americana em dois países que coexistem dentro do mesmo território. De um lado, a narrativa MAGA, que pinta democratas como cúmplices do crime e da anarquia, legitima o uso de medidas excepcionais. De outro, a oposição denuncia Trump como autocrata em formação, reforçando percepções de que a democracia já foi capturada. Essa polarização radical não se limita a opiniões divergentes: ela cria universos informacionais incomunicáveis, onde fatos objetivos são recusados e a confiança em instituições como a imprensa, o Judiciário e o sistema eleitoral se dissolve.

É nesse ambiente que a hipótese da guerra civil ganha corpo como metáfora de colapso. Não porque veremos novamente estados do sul declarando secessão formal, mas porque a federação norte-americana pode entrar em uma fase de desagregação funcional: governadores resistindo às ordens presidenciais, prefeitos ignorando decretos federais, cortes locais emitindo decisões contraditórias, enquanto grupos civis armados reforçam o clima de medo e incerteza. O resultado é uma democracia que continua existindo formalmente, mas perde a capacidade de coordenar e arbitrar conflitos — uma república dividida em blocos irreconciliáveis.

Os sinais desse processo já estão visíveis. O envio de tropas para Washington e a ameaça de intervenção em Chicago acentuam a percepção de que o governo federal atua contra estados e cidades inteiras, não apenas contra indivíduos ou organizações criminosas. Os alertas do Departamento de Segurança Interna (DHS) sobre risco de violência política doméstica refletem essa leitura: qualquer manifestação pode se tornar palco de confronto entre grupos armados e forças federais. Ao mesmo tempo, a queda na confiança da população nas instituições, medida por pesquisas como a Bright Line Watch, indica que o contrato social que sustentou os EUA no pós-guerra já não tem a mesma força.

O fantasma da guerra civil, portanto, não é apenas retórico. Ele opera como lente para compreender um país que se desgarra por dentro, não em linhas de frente claras, mas em múltiplos pontos de atrito. A violência difusa, os discursos separatistas, a fragmentação informacional e a erosão das instituições convergem para um cenário em que o risco não é de guerra civil clássica, mas de um conflito prolongado de baixa intensidade, capaz de corroer a legitimidade da democracia americana e paralisar sua capacidade de governar.

Cenários preditivos (curto e médio prazo)

 Antecipar o futuro em momentos de ebulição política exige separar a espuma da conjuntura dos sinais estruturais. No caso norte-americano, a partir da conjuntura de agosto de 2025, identificam-se quatro trajetórias principais para os próximos meses. Nenhum desses cenários deve ser lido como destino inevitável, mas como mapa de possibilidades, onde cada sinal observável pode aproximar ou afastar uma linha de futuro.

Contenção institucional (40–50%)

Este é o cenário-base. Os tribunais federais e estaduais limitam as ações mais radicais da Casa Branca, governadores ampliam sua resistência, o Congresso pressiona por investigações e as forças armadas evitam envolvimento além de missões pontuais. Trump mantém o discurso inflamado, mas vê seu espaço de ação restringido por derrotas judiciais e pela reação negativa dos mercados ao ataque à independência do Federal Reserve. O resultado é instabilidade alta, mas sem ruptura sistêmica.

Sinais de alerta precoce: decisões de cortes em D.C. e Califórnia limitando deslocamento de tropas; resistências explícitas de comandantes militares; pressão bipartidária no Congresso contra interferência no Fed.

Escalada controlada (25–35%)

Trump mantém tropas em Washington e avança com operações em cidades democratas estratégicas, como Chicago, sem acionar formalmente o Insurrection Act. A tensão federativa cresce, mas ainda se processa nos tribunais. O clima social se agrava, com protestos violentos e contra-protestos organizados pela base MAGA. O governo busca vitórias narrativas: mostrar força sem romper de vez as regras.

Sinais de alerta precoce: novas ordens executivas ampliando autoridade federal sobre polícias locais; crescimento do número de Guardas Nacional federalizados; protestos em capitais com incidentes de violência política.

Crise constitucional aguda (10–20%)

Neste cenário, Trump decide invocar o Insurrection Act, alegando insurreição ou ameaça à integridade do país. A medida abre confronto direto com governadores democratas que se recusam a obedecer, criando impasse federativo. O mercado financeiro reage com colapso nos títulos do Tesouro e fuga de capitais. A polarização atinge patamar máximo: parte da população vê no presidente um protetor, outra o acusa de instaurar ditadura. Esse cenário abre a porta para violência política mais coordenada, com milícias agindo como extensão do conflito institucional.

Sinais de alerta precoce: ordem formal de invocação do Insurrection Act; governadores emitindo diretrizes de desobediência; reação negativa em bloco de Wall Street e do dólar.

Descompressão estratégica (10–15%)

Sob pressão econômica e política, Trump recua parcialmente. Algumas tropas deixam D.C., e a Casa Branca muda o tom da retórica, transformando a crise em vitória narrativa para a base: “fizemos a esquerda recuar”. O presidente mantém popularidade dentro de seu núcleo duro, mas perde margem de manobra no Congresso e no Judiciário. O sistema democrático respira, mas não sem feridas: o precedente da intervenção já está aberto.

Sinais de alerta precoce: retirada parcial de forças; declarações conciliatórias da Casa Branca; pesquisas de opinião indicando queda acentuada de apoio fora da base MAGA.

Síntese estratégica

A análise preditiva indica que a ditadura clássica é improvável, mas o risco de um regime híbrido autoritário permanece alto. O país pode não mergulhar em guerra civil formal, mas a probabilidade de viver um período de conflito difuso, erosão institucional e polarização violenta é real e crescente. O que está em jogo é a transformação dos EUA em uma república permanentemente instável, onde o poder se disputa tanto no campo jurídico e militar quanto no terreno simbólico e informacional.


 A guerra híbrida interna dos EUA


A engrenagem que sustenta a escalada de tensão doméstica nos Estados Unidos funciona como um verdadeiro ecossistema de guerra informacional. Ele combina enquadramentos de “lei e ordem”, saturação de desinformação, instrumentalização de plataformas digitais e mobilização de base para produzir pressão cognitiva e política sobre governadores, prefeitos, juízes e a opinião pública. O próprio Departamento de Segurança Interna reconhece, em seus relatórios de avaliação de risco, que extremistas violentos domésticos e atores estrangeiros exploram gatilhos conjunturais — como conflitos externos, ciclos eleitorais e crises — para incitar ataques e intimidar autoridades. Esse ambiente é classificado como de ameaça elevada, pois cria condições ideais para justificar medidas de exceção e radicalizar a disputa institucional.

No núcleo dessas operações está o uso político da incerteza: transformar ambiguidade em medo tangível. A erosão do papel de fatos e análises na vida pública desarma a sociedade em sua capacidade de arbitrar disputas, abrindo espaço para que narrativas de força se imponham. Essa dinâmica é alimentada por vieses cognitivos, polarização midiática e por uma arquitetura de plataformas digitais que recompensam o conflito e a radicalização. Trata-se de um terreno fértil para operações psicológicas, propaganda memética e engenharia de comportamento em larga escala.

Na camada técnico-operacional, observa-se um conjunto de táticas conhecidas: campanhas que simulam apoio orgânico (astroturfing), redes coordenadas de bots e contas falsas, microsegmentação de mensagens, assédio direcionado a jornalistas e pesquisadores, além da litigância agressiva que busca elevar o custo de resistência institucional. Ao mesmo tempo, cria-se um jamming informacional, sufocando o espaço público com ruído, falsos dilemas e contrainformações, de forma a tornar mais difícil o consenso em torno de fatos básicos. Estudos sobre propaganda computacional já documentaram a industrialização dessas práticas em escala global, e o caso norte-americano de 2025 é uma expressão clara dessa tendência.

Esse ambiente informacional interage diretamente com a dinâmica da violência. Pesquisas recentes mostram a normalização de ameaças e ataques politicamente motivados, incluindo atentados contra agentes públicos, intimidação de comunidades minoritárias e choques em protestos. O padrão não sugere uma guerra civil convencional, mas sim um conflito difuso e intermitente, capaz de legitimar retóricas de exceção e sustentar o emprego tático de forças federais em cidades estratégicas.

No plano institucional, observa-se uma arquitetura programática deliberada para aparelhar o Estado. O chamado Project 2025, coordenado pelo think tank Heritage Foundation, funciona como manual de transição que detalha como reorientar o aparato federal, desde agências regulatórias até políticas de comunicação e educação. Esse projeto combina planejamento burocrático, formação de quadros e planos de ação para cada agência, funcionando como verdadeiro playbook de captura institucional. Em conjunto com o uso de tropas em Washington e o tensionamento sobre a independência do Federal Reserve, essa estratégia cria capacidade de alavancagem sem necessidade de ruptura formal.

A janela de oportunidade para essa guerra híbrida interna se abre quando três vetores convergem: em primeiro lugar, um alerta oficial de ameaça que cria clima de emergência; em segundo, um precedente executivo que amplia o alcance federal em segurança interna; e, por fim, uma infraestrutura de mensagens capaz de transformar contradições institucionais em provas de “fraqueza” dos adversários. Quando esses três fatores se articulam, produzem efeitos cumulativos: o público tende a aceitar medidas excepcionais, o custo de contestação sobe e a oposição é empurrada para jogar na defensiva, onde cada derrota parece confirmar a narrativa de caos e de desordem.

Os contrapesos ainda existem e vêm de três frentes: cortes judiciais, governadores e mercados. Sempre que a Casa Branca avança sobre agências independentes ou expande unilateralmente os poderes executivos, há reações institucionais e econômicas que penalizam a instabilidade. Esse ciclo retroalimenta a disputa simbólica: para a base de Trump, tais resistências confirmam a existência de um “Estado profundo” que conspira contra o presidente; para seus adversários, são a prova da resiliência democrática. O resultado é a intensificação da erosão institucional e a normalização de precedentes excepcionais.

Em síntese, as táticas de guerra híbrida e de propaganda digital não são acessórios na conjuntura atual: são o centro de gravidade que permite transformar choques pontuais — protestos, crimes, tensões externas — em licença política para a exceção interna. Enquanto persistirem alertas de risco elevado, episódios de violência política e estratégias coordenadas de captura institucional, o risco dominante para os EUA não é o de uma ruptura súbita, mas de um regime híbrido autoritário sustentado por guerra informacional permanente.

Impactos globais e geopolítica

A crise doméstica dos Estados Unidos em agosto de 2025 reconfigura o tabuleiro internacional em três camadas simultâneas: legitimidade, capacidade de projeção e arquitetura econômico-financeira. Na primeira, a erosão pública dos freios e contrapesos corrói a narrativa de “padrão democrático” que, por décadas, sustentou a diplomacia norte-americana. Não se trata apenas de imagem: quando a capital federal opera sob precedentes de exceção e a independência de agências é tensionada, parceiros passam a recalibrar custos de alinhamento, e adversários exploram o vácuo reputacional para deslegitimar sanções, relatórios de direitos humanos e condicionantes políticas. Essa perda gradual de autoridade moral reduz a capacidade de moldar normas — do ciberespaço à regulação de plataformas e inteligência artificial — e abre espaço para multipolaridade normativa, na qual blocos regionais adotam padrões próprios sem pedir chancela a Washington.

Na segunda camada, a capacidade de projeção sofre com a sobrecarga interna. Forças armadas e aparato de segurança veem sua agenda contaminada por demandas domésticas, o que comprime o raio de ação externo e dificulta a coordenação interagências. Em termos práticos, a prioridade política migra do teatro internacional para o “front interno”, e isso tem efeitos: menor apetite para operações longas, alianças pedindo mais garantias, e uma OTAN que, mesmo coesa em seus objetivos declarados, enfrenta assimetria de compromissos quando a liderança norte-americana oscila. Ao mesmo tempo, competidores estratégicos — em especial China e Rússia — exploram a janela para intensificar acordos energéticos, tecnológicos e militares fora da órbita de Washington, enquanto o eixo BRICS+ ganha tração como plataforma de hedge geopolítico para países médios.

A terceira camada é a arquitetura econômico-financeira. A pressão explícita sobre a independência do banco central e a judicialização de decisões executivas ampliam a percepção de risco regulatório, com reflexos em prêmios de crédito, volatilidade cambial e comportamento de grandes fundos. Em crises dessa natureza, dois movimentos tendem a coexistir: fuga para “portos seguros” tradicionais (títulos de alta qualidade, ouro) e, em paralelo, aceleração de alternativas no comércio e nos pagamentos internacionais (contratos em moedas locais, arranjos bilaterais de compensação, uso ampliado de sistemas de mensagens e compensação fora da esfera dólar). Não há substituto imediato ao dólar como reserva global, mas cada precedente de exceção abre milímetros de espaço para diversificação — e, acumulados, esses milímetros viram centímetros estratégicos.

Para a América Latina, e especialmente para o Brasil, o impacto é direto. No curto prazo, o risco é de exportação de métodos: redes políticas e comunicacionais alinhadas à ultradireita norte-americana tendem a mimetizar repertórios de deslegitimação institucional, combinando lawfare, campanhas de desinformação e narrativas de “lei e ordem” para justificar endurecimentos seletivos. No plano econômico, uma Casa Branca volátil pode alternar tarifas punitivas, barreiras técnicas e pressões regulatórias sobre cadeias de valor sensíveis (aço, alumínio, fertilizantes, tecnologia), instrumentalizando comércio como alavanca política. No plano tecnológico, a disputa por padrões de IA, dados e plataformas chegará com mais força às agências e ao Congresso brasileiros, exigindo respostas que combinem soberania informacional, interoperabilidade e proteção de dados com autonomia estratégica.

Há, porém, janelas de oportunidade. Em ciclos de retração da liderança norte-americana, países com massa crítica — como o Brasil — podem ampliar diplomacia de ponte entre regimes regulatórios, diversificar mercados, consolidar capacidade industrial em setores estratégicos (energia, fertilizantes, semicondutores de nicho, espaço, cibersegurança) e acelerar integrações regionais logísticas e digitais. A chave é não apostar em vácuos, mas em redundâncias soberanas: múltiplos cabos, múltiplos data centers, múltiplos provedores de nuvem, múltiplos sistemas de pagamento e um ecossistema nacional de IA com lastro acadêmico e industrial.

Do ponto de vista preditivo, três sinais-guia devem ser monitorados para antecipar desdobramentos globais: (1) persistência da exceção doméstica nos EUA (quanto tempo e quão amplo o uso interno de forças federais e de instrumentos extraordinários), (2) respostas de mercado à política monetária e às disputas institucionais (incluindo spreads, curvas de juros e demanda por títulos), e (3) realinhamentos diplomáticos discretos, como acordos energéticos e tecnológicos que contornem a intermediação norte-americana. A combinação de dois ou mais desses sinais, mantida por semanas, indica recalibração estrutural do sistema internacional, não mera turbulência conjuntural.

Para formuladores de políticas no Brasil, o cardápio estratégico é claro: blindar a infraestrutura crítica de informação e pagamentos, reduzir vulnerabilidades a sanções e choques extrarregionais, consolidar parcerias tecnocientíficas com cláusulas de transferência de conhecimento e exigir governança transparente de plataformas digitais que operam no país. No campo comunicacional, o jornalismo estratégico precisa preparar comunidades de prática para ciclos de desinformação importados, com protocolos de alerta precoce, verificações forenses e kits de resposta que integrem governo, academia, imprensa e sociedade civil.

Em suma, a crise doméstica dos EUA funciona como força sísmica que desloca placas de legitimidade, projeção e finanças. Não inaugura o multipolarismo, mas acelera sua normalização. Quem se antecipar com redundâncias soberanas, diplomacia de ponte e inteligência estratégica poderá absorver o choque e converter instabilidade em margem de manobra. Quem esperar pela “volta ao normal” corre o risco de descobrir que o normal, na verdade, mudou de endereço.

Conclusão: entre a guerra difusa e o autoritarismo híbrido

A análise da conjuntura norte-americana em agosto de 2025 permite afirmar que a hipótese de Trump como ditador pleno permanece improvável, mas que o risco de consolidação de um regime híbrido autoritário é cada vez mais plausível. A escalada não se dá por meio de um golpe súbito, mas pela erosão gradual dos freios e contrapesos, pela captura seletiva de instituições, pelo uso episódico e calculado das forças federais, pela pressão sobre agências independentes e pela manutenção de uma guerra informacional permanente. A ideia de uma nova guerra civil, por sua vez, não se sustenta nos moldes clássicos da ruptura de 1861, mas se manifesta como a possibilidade de um conflito difuso de baixa intensidade, espalhado em protestos violentos, ações de milícias, retórica separatista e polarização informacional radicalizada.

O que se viu neste mês é um ponto de inflexão: a decisão de militarizar Washington, a ameaça de expandir operações para cidades democratas e o ataque direto à independência do Federal Reserve. Esses movimentos revelam a intenção de expandir o alcance presidencial sobre territórios, instituições e fluxos econômicos, testando até onde a estrutura federativa, o Judiciário e os mercados estão dispostos a resistir. Até agora, a reação de governadores, cortes e atores financeiros funciona como freio real, encarecendo a aventura autoritária. Mas cada precedente de exceção deixa marcas: normaliza o uso de medidas extraordinárias, enfraquece a confiança pública nas instituições e reconfigura o equilíbrio de poder.

 A chave, portanto, não está em prever um colapso súbito, mas em monitorar a intensidade e a duração desses processos de erosão. Quando ordens executivas se transformam em precedentes de exceção mantidos por semanas, quando decisões judiciais são contornadas ou desobedecidas, quando a independência de agências centrais se fragiliza e quando a violência política se torna mais frequente, o risco de consolidação autoritária se eleva. Do mesmo modo, a reação dos mercados — visível na volatilidade do dólar e dos títulos do Tesouro — funciona como termômetro imediato da viabilidade dessa escalada. Quanto maior o custo econômico, mais difícil sustentar um regime autoritário; quanto mais tolerável o custo, mais fácil naturalizar a exceção.

No plano estratégico, essa crise interna desloca não apenas a política doméstica, mas também a posição dos Estados Unidos no mundo. A perda de autoridade moral como referência democrática, a sobrecarga das forças de segurança em tarefas internas e a desconfiança dos mercados internacionais corroem a legitimidade, a projeção externa e a arquitetura financeira global liderada por Washington. Para países como o Brasil, os impactos se manifestam em dois sentidos: por um lado, a exportação de métodos de desinformação e lawfare que já influenciam elites locais; por outro, a oportunidade de reforçar redundâncias soberanas em infraestrutura, dados, finanças e tecnologia, reduzindo vulnerabilidades diante de um império em crise.

O papel do jornalismo estratégico neste contexto é oferecer não apenas descrição, mas sistemas de alerta precoce que transformem sinais em cenários, cenários em hipóteses e hipóteses em ação. O que está em jogo é a capacidade de antecipar, de medir e de comunicar com rigor os riscos de erosão democrática, tanto para a sociedade quanto para os tomadores de decisão. Informação sem método vira ruído; método sem comunicação não altera o curso da história. O desafio, portanto, é sustentar uma análise verificável, conectada a indicadores claros e aberta ao escrutínio público, capaz de distinguir alarmismo vazio de predição estratégica.

Em suma, os Estados Unidos não parecem caminhar para a morte súbita da democracia, mas para sua corrosão lenta. A guerra difusa e o autoritarismo híbrido configuram o horizonte mais provável: uma república que continua existindo formalmente, mas cuja legitimidade e capacidade de governar se fragilizam a cada semana. Nesse cenário, a vigilância institucional, a reação de mercados e a resistência civil tornam-se determinantes. Mais do que nunca, compreender esse processo não é apenas tarefa de acadêmicos ou jornalistas, mas de toda sociedade que queira sobreviver à tempestade informacional e política do século XXI.

 Fonte do texto e ilustrações: Blog Código Aberto. Link: https://www.codigoaberto.net/