sexta-feira, agosto 07, 2015

Soffiati diante da crise hídrica elenca seis propostas de ação para governo e sociedade, como forma de segurar os dedos após a perda dos anéis

O ecologista e historiador, Aristides Arthur Soffiati, enviou ao blog mais um artigo inédito, bastante detalhado e ilustrado, com análise sobre a realidade dos recursos hídricos da região do Paraíba do Sul.

Ao final, Soffiati formula um conjunto sintético de seis propostas de ação para as gestões públicas e para a sociedade, mesmo se dizendo cético quanto à auscultação de suas ideias, por parte das pessoas e instituições que "reinariam no individualismo" e ainda, segundo ele, viveriam imersas "num narcisismo imediatista", ainda assim faz questão de deixar registrada a sua posição.

Assim, vale conferir o texto que propõe seguir a velha sabedoria popular de que seria melhor ceder os anéis do que perder os dedos:


Os anéis e o dedos

Arthur Soffiati

Utilizo a velha sabedoria para iniciar estas reflexões: é melhor ceder os anéis do que perder os dedos. Em 1980, recebi pelo correio o Manual de reflorestamento do Estado do Rio de Janeiro, de L. Golfari e M. Moosmayer (BD Rio, s/d). Não me interessei pelo livro, que entende eucaliptocultura como reflorestamento. Mas os mapas que o acompanham trazem informações importantes, como a drenagem e o desmatamento excessivos que as regiões norte e noroeste fluminenses sofreram ao longo dos anos. Para os autores, a nova realidade era excelente para o plantio de espécies de eucalipto. Pena que a enchente de 2007 tenha danificado irremediavelmente minha coleção de mapas.

Na década de 1920, o engenheiro sanitarista Francisco Saturnino Rodrigues Brito escreveu (Defesa contra inundações: melhoramentos do Rio Paraíba e da Lagoa Feia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944) que as obras de engenharia hidráulica no norte fluminense deveriam contar com as florestas do tabuleiro e da zona serrana, bem como com as lagoas da margem esquerda dos Rios Paraíba do Sul e Muriaé. Para tanto, propôs que o dique na margem esquerda desses dois rios englobasse tais lagoas. Venceu a proposta do engenheiro Camilo de Menezes, segundo a qual o dique deveria ser erguido junto às margens (Descrição hidrográfica da Baixada dos Goitacases. Campos: Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense, 1940). Se a proposta de Saturnino de Brito tivesse sido vitoriosa, a área de absorção de água, no período das enchentes, e de acumulação hídrica, nas estiagens, seria bem maior do que a atual, e a rodovia BR-356 deveria passar em ponto mais distante das margens dos dois rios.

Em 1969, o Departamento Nacional de Obras e Saneamento encomendou à Engenharia GALLIOLI LTDA um exaustivo estudo sobre a drenagem a jusante de São Fidélis (Baixada campista: saneamento das várzeas nas margens do Rio Paraíba do Sul a jusante de São Fidélis. Rio de Janeiro: setembro de 1969). Além de recomendar a criação de uma área de acumulação de água no pontal formado pela confluência dos Rios Paraíba do Sul e Muriaé, a empresa mostrou também a importância de se proteger a Lagoa de Dentro, ao sul da Lagoa Feia, para conter a língua salina no lençol freático. Mesmo um estudo recentemente encomendado pelo INEA e muito aquém do que os mencionados, em termos de qualidade (Projeto de recuperação da infraestrutura hídrica da Baixada Campista. Rio de Janeiro: COPPETEC, 2011), recomenda que as áreas molhadas que restaram na margem direita do Rio Paraíba do Sul devem ser conservadas.

Quem, com olhar atento, examina a zona cristalina baixa da região, na margem esquerda do Rio Paraíba do Sul, e os tabuleiros notará no ato que o desmatamento foi excessivo. Na planície fluviomarinha, a drenagem também passou dos limites. Florestas e lagoas foram eliminadas de forma excessiva. Comparemos um mapa desenhado por Alberto Ribeiro Lamego em 1955 com uma imagem do Satélite Landsat8 de 01 de agosto deste ano e notemos o grau de drenagem da Baixada dos Goytacazes, no passado, um verdadeiro pantanal.


Figura 1- Lagoas do norte fluminense em mapa traçado por Alberto Ribeiro Lamego em 1954





Figura 2- Imagem Landsat8, de 01/08/2015, mostrando a margem esquerda e a planície aluvial do Paraíba do Sul. Gentileza de Gilberto Pessanha

Quanto às florestas, não temos mapas que permitam fazer comparações entre datas distantes, mas o eco-historiador dispõe de descrições muito antigas que podem ser cotejadas com a situação atual. Manoel Martins do Couto Reis, por exemplo, informa que as florestas do norte e noroeste fluminenses eram densas no século 18. Ele não subiu a Serra do Mar por ser ela inacessível em 1783 e por temer índios (Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacás que por ordem do Ilmo e Exmo Senhor Luiz de Vasconcellos e Souza do Conselho de S. Majestade, Vice-Rei e Capitão General de Mar e Terra do Estado do Brasil, etc. se escreveu para servir de explicação ao mapa topográfico do mesmo terreno, que debaixo de dita ordem se levantou. Rio de Janeiro: manuscrito original, 1785). O naturalista alemão Maximiliano de Wied-Neuwied, em sua passagem pela região, ficou encantado com as florestas de São Fidélis, na zona serrana baixa, e no atual São Francisco de Itabapoana, ao cruzar o Sertão das Cacimbas, no tabuleiro. Da mesma forma, no sul do Espírito Santo (Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: EDUSP, 1989).

Antonio Muniz de Souza, naturalista amador sergipano, residiu em Campos entre 1827 e 1828, visitando o encantador vale do Muriaé e a Lagoa de Cima, onde viu antas pastando (Viagens e observações de um brasileiro que desejando ser útil à sua pátria, se dedicou a estudar os usos e costumes de seus patrícios, e os três reinos da natureza em vários lugares e sertões do Brasil. Rio de Janeiro: Rua de Trás do Hospício, 1834). Outro naturalista alemão, Hermann Burmeister, ficou fascinado com as florestas do vale do Rio Pomba, comparando-as a catedrais góticas (Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980). Onde elas estão agora? Derrubadas e transformadas em dinheiro, seja na forma de combustível, seja na forma de matéria prima. Para onde se olhe atualmente no norte e noroeste fluminenses, só se encontra áreas com vegetação herbácea e erodida. É grande a responsabilidade das barragens e transposições, mas não se pode eximir os habitantes regionais pela busca de rendimentos fáceis e rápidos que contribuíram para desregular o regime hídrico da Bacia do Paraíba do Sul.





Figura 3- Trecho serrano do Vale do Muriaé completamente desmatado. Imagem Landsat8, obtida em 01/08/2015 por Gilberto Pessanha






Figura 4- Trecho final da Serra do Mar, junto ao Paraíba do Sul, sem revestimento florestal. Nele, vê-se a Lagoa de Cima e o Rio Ururaí. Imagem Landsat8, obtida em 01/08/2015 por Gilberto Pessanha

A excessiva drenagem e o avassalador desmatamento regional são fatores a agravar tanto as enchentes de 2007, 2008 e 2012, como a longa estiagem de 2014-2015, para só mencionar fenômenos climáticos extremos recentes. O passivo ambiental das populações regionais é muito grande. E elas estão pagando caro por tais fenômenos.

Examinemos o caso das lagoas da margem esquerda dos Rios Paraíba do Sul e Muriaé. Antes da ação do Departamento Nacional de Obras e Saneamento, a umidade concentrada nas várzeas, lagoas e florestas dessa área controlava enchentes e estiagens, retendo ou liberando água. Depois da atuação do órgão, as lagoas foram em grande parte drenadas e as florestas devastadas.

Tomemos uma imagem de satélite de 1973, depois da passagem avassaladora do DNOS. Vemos apenas algumas lagoas que restaram. As outras deram lugar a canaviais.



Figura 5- Lagoas da margem esquerda do Paraíba do Sul e do Muriaé em imagem do satélite Landsat 1 de 14 /08/1973

Com as chuvas de 2012, novas lagoas surgiram na margem esquerda dos dois rios. Não propriamente surgiram. Elas são fragmentos das lagoas sobreviventes e permaneceram porque a Usina Sapucaia faliu e não mais drenou áreas para plantar cana. Eis o quadro ambiental da margem esquerda do Muriaé e Paraíba do Sul em 2012.



Figura 6- Lagoas da margem esquerda do Paraíba do Sul e do Muriaé em imagem do satélite ResourceSat-1 de 21/07/2012. Legenda: 1- Rio Paraíba do Sul, 2- Rio Muriaé, 3- Lagoa da Onça, 4- Lagoa do Lameiro, 5- Lagoa da Boa Vista, 6- Lagoa Limpa, 7- Lagoa das Pedras, 8- Lagoa Brejo Grande, 9- Lagoa de Santa Maria, 10- Lagoa da Saudade, 11- Lagoa do Arisco, 12- Lagoa do Campelo, X- Lagoas ressurgidas com a enchente de 2012

O que mais surpreende é que as lagoas ressurgidas continuam com água em 2015, depois de mais de um ano enfrentando inclemente estiagem. A persistência delas, apesar da grande evaporação, é algo a ser estudado. Enquanto as lagoas de tabuleiro conservam água, a Lagoa do Campelo, na restinga, secou quase completamente.





Figura 7- Legenda: 1- Rio Paraíba do Sul, 2- Rio Muriaé, 3- remanescente de Lagoa da Onça, 4- Lagoa do Lameiro, 5- Lagoa Limpa, 6- Lagoa das Pedras, 7-Lagoa do Campelo, 8- Lagoa do Arisco, 9- lagoas de formadas pelo barramento de pequenos cursos d'água de tabuleiro barrados pela restinga, 10- Lagoa de Cima. Imagem Landsat8, obtida em 01/08/2015 por Gilberto Pessanha

Depois de voltar a existir, o Instituto Estadual do Ambiente (INEA) permitiu que o setor meridional da Lagoa da Onça fosse drenado por particulares. Ela, assim, ficou reduzida à metade. Uma grande lagoa, como a da Onça, embutida entre o tabuleiro e zona cristalina, com uma enorme capacidade de reservação de água, não merecia tratamento tão irresponsável justamente do órgão encarregado de proteger lagoas.

Na outra ponta, a Lagoa do Campelo, a maior lagoa de restinga associada ao Paraíba do Sul, secou quase totalmente com a presente estiagem. Curioso o fenômeno de sumiço da água no Campelo, quando, no tabuleiro, as lagoas ainda conservam água. Duas explicações são cabíveis para a Lagoa do Campelo: 1- o terreno em que ela se situa é arenoso, portanto poroso; 2- o Canal do Vigário não aduziu água do Paraíba do Sul para a lagoa por estar obstruído e urbanizado, enquanto, pelo Canal da Cataia, a lagoa só escoou água para o Paraíba do Sul.

O norte-noroeste fluminense não pode sanar a crise hídrica prolongada que atinge a Região Sudeste, mas pode amenizá-la. Para tanto, aqueles que se beneficiaram com a drenagem e com o desmatamento devem ceder os anéis para conservar os dedos. Este gesto em favor do ambiental e do social acarretará benefícios aos próprios detentores dos anéis. Relacionemos as principais medidas mitigadoras para estiagens e enchentes:

1- Nenhuma área alagada ou alagável deve ser mais privatizada. As lagoas da margem esquerda dos Rios Muriaé e Paraíba do Sul, mesmo as ressurgidas com as chuvas de 2012, devem ser protegidas pelo INEA. Isto significa que nenhuma área úmida deve ser mais drenada na região. Ao contrário, elas devem ser demarcadas e revitalizadas.

2- A Lagoa da Onça deve ser restaurada em suas características originais, com o Rio da Onça defluindo nela na sua ponta setentrional e escoando para o Rio Muriaé pela sua ponta meridional. O canal que corre pela margem esquerda da lagoa pode ser mantido para situações de emergência.


Figura 8- Bacia da Lagoa da Onça (em azul) antes das obras do DNOS. Mapa DNOS, 1950

3- Com relação à Lagoa do Campelo, o Canal do Vigário deve ser desentupido para que a água do Rio Paraíba do Sul possa circular livremente nele até a lagoa. Ao mesmo tempo, quando e se houver uma nova enchente, o Canal da Cataia deve permanecer aberto para que a água e o peixe subam até a lagoa. Por ocasião da redução do nível do Rio Paraíba do Sul, as comportas do Cataia devem ser fechadas para conter água na lagoa. O Canal Engenheiro Antonio Rezende não representa ameaça na medida em que a água da lagoa só verte para ele, depois de ela alcançar um certo nível, a fio d'água. Necessário é desobstruir este canal ou instalar nele um sistema de comporta em ponto que se pretenda conservar água. Quanto ao Canal da Cataia, a solução que venho apresentando há alguns anos continua valendo segundo minha posição: separar se forma absoluta por dois diques marginais ao canal as terras de proprietários das águas de pescadores.


Figura 9- Lagoa do Campelo na estiagem de 2014-2015

4- Na margem direita do Paraíba do Sul, principalmente no subsistema Lagoa Feia, certas lagoas totalmente drenadas devem ser restauradas e revitalizadas, como as Lagoas da Piabanha, de Dentro, do Luciano e da Ribeira. O subsistema Lagoa Feia, embora também castigado por enchentes e estiagens, conta com água proveniente da Serra do Mar, sobretudo pelo Rio Imbé, que coleta pequenos rios e conduz sua água para a Lagoa de Cima, que por sua vez deflui pelo Rio Ururaí, que alimenta a Lagoa Feia. Esta água é preciosa e deve ser conservada no âmbito do subsistema. A implosão de diques ilegalmente construídos em redor da Lagoa Feia, na enchente de 2008, acrescentou aos 170 km2 da Lagoa cerca de 30 km2. Se as águas provenientes da Serra do Mar (Imbé) puderem contar com os reservatórios das Lagoas da Piabanha, de Dentro, do Luciano e da Ribeira, pelo menos, os agropecuaristas serão beneficiados com mais umidade e com a contenção da língua salina subterrânea. Os pescadores também contarão com mais áreas para a prática de sua atividade.

Por ocasião das enchentes, as comportas dos canais devem ser abertas para a entrada de água que será conservada no seu interior depois de alcançado o nível de transbordamento e usada nos períodos de estiagens.

5-Diques, canais e comportas. Tenho dúvidas quanto à eficiência das obras realizadas pelo DNOS, mas, já que elas foram executadas, cumpre agora a sua reforma e manutenção. Para retardar o crescimento de vegetação aquática nos canais e lagoas rasas (vegetação é inevitável em ecossistemas aquáticos rasos), deve-se encontrar solução para o despejo neles de esgoto e de insumos químicos usados na agropecuária. É fundamental reduzir o fluxo de fósforo e nitrogênio, minerais que aceleram o processo de eutrofização. Na remoção da vegetação aquática, deve-se empregar, preferencialmente, o trabalho ocioso na entressafra.

6- Considerando-se as características de cada área do trecho final da Bacia do Paraíba do Sul, o reflorestamento deve ser empreendido na zona serrana, nos tabuleiros e nas restingas, sempre respeitando a composição nativa das diversas formas de vegetação. Embora capenga, o novo Código Florestal deve ser cumprido, com o reflorestamento de áreas de recarga, nascentes, margens de rios e lagoas, encostas e topos de morros. O reflorestamento não deve ser uma iniciativa da compreensão individual apenas, mas uma política governamental envolvendo a União, os três Estados banhados pela bacia do Paraíba do Sul e os município. Deve haver pressão dos municípios do norte-noroeste fluminense para que seja formulado um Plano de Reflorestamento geral que os próprios municípios possam executar com supervisão de órgãos competentes superiores. Nunca deve ser por iniciativa individual.

Fui formado num contexto em que o pesquisador tinha o compromisso de compartilhar seu conhecimento com a sociedade e o poder público a fim de contribuir na busca de soluções que beneficiassem o coletivo. Não é esta, infelizmente, a preocupação de acadêmicos, empresários e governos atualmente. Reina o individualismo. Os que lerem estas propostas concluirão que elas estão impregnadas de autoritarismo, quando, na verdade, devem suscitar discussão. A maioria nem sequer vai lê-las, mergulhada que está num narcisismo imediatista. Mais fácil para ela esperar por um novo período chuvoso do que se empenhar na busca de soluções. Sei que vivo neste contexto e me contento de deixar registrada minha posição.

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