quarta-feira, agosto 19, 2015

Uma reflexão sobre a administração pública no Brasil

Quem está no meio da peleja política e da disputa pelo Poder pode julgar que o artigo do João Sayad publicado ontem no Valor é desnecessário e inoportuno.

Eu avalio que o artigo é interessante porque ele aborda algo comumente observado nos dias atuais.

O crítico oposicionista de hoje será o gestor da situação de amanhã que assim passa a ver os controles e a Justiça como forra e forma de voltar ao poder. Os casos na região não são exceção no país. Ao contrário.

O cidadão acaba ficando em outra esfera. No meio deste processo é necessário que ajustes sejam feitos para termos uma administração pública mais eficiente, em todos os sentidos, e não apenas com menos corrupção.

João Sayad é professor da USP na Faculdade de Economia e Administração, foi ministro do Planejamento no governo de José Sarney, secretário estadual e municipal da Fazenda em São Paulo e também secretário estadual de Cultura. Vale conferir!

"Um barco-bicicleta"

No meio desta confusão, economistas de todos os tipos chegaram a um diagnóstico comum no que toca ao déficit público.

Primeiro, concluíram que reduzir o déficit público durante uma recessão é impossível. Se o governo corta R$ 100, a economia se encolhe em R$ 150 (a demanda total cai 1,5 vezes mais) e a receita tributária se reduz em R$ 60 (40% do PIB como receita tributária). O resultado líquido é que R$ 100 de corte reduzem o deficit em R$ 40. O déficit público só pode ser reduzido quando a economia crescer. Embora não existam incentivos para cortar quando a economia cresce.

Depois, concluíram que o desequilíbrio das contas do governo é antigo. A "nova matriz econômica" apenas acelerou a tendência secular. O desequilíbrio decorre da Constituição de 1988 que atribuiu ao governo a tarefa de aumentar a oferta de bens públicos, particularmente saúde e educação a todos os brasileiros. E não o aumento do consumo de bens como automóveis, celulares e eletrodomésticos, como aconteceu depois de 2008. Descobrimos, na crise, que desde 1988 o país definiu a utopia ou o projeto nacional que tantos analistas pedem - queremos uma nação em que todos têm acesso a serviços públicos essenciais.

É preciso dar sentido à vida dos administradores públicos. Que eles entendam qual o sentido das coisas que fazem

A utopia da Constituição de 88, ou o projeto nacional de desenvolvimento, foi em parte atendido. As matrículas escolares aumentaram vertiginosamente, os serviços de saúde também. A qualidade deixa a desejar.

Imagino que a partir daí as opiniões se dividam.

Os conservadores gostariam de reduzir as ambições da Constituição, reduzir os gastos do governo para que a economia cresça. Quando o bolo tiver crescido, os gastos sociais propostos pela Constituição poderão ser atendidas. Diriam que menos gastos, menos impostos, aceleram o crescimento do produto e tornariam viáveis os gastos sociais. Ou seja, a utopia fica para mais tarde.

Os progressistas não abandonam o projeto que, entretanto, é inviável, choca-se com a realidade do crescimento insuficiente do PIB para atender a tantas demandas.

Como resolver o impasse? Quais as possibilidades de negociação entre conservadores e progressistas quando a política permitir?

Propor o aumento da produtividade "begs the question" pois se houvesse crescimento suficiente, o impasse entre mais e menos gastos do governo estaria resolvido. Como parecia resolvido quando os termos de troca cresciam a favor do Brasil. Conservadores e progressistas não se entendem sobre como o crescimento do país pode ser recuperado.

Para problemas insolúveis, economistas apelam para palavras multiuso como poupança ou reformas. Para aumentar a poupança pública devemos construir hospitais (investimento) e não contratar médicos (consumo)? Mais escolas (investimento) e menos professores (consumo)?

Apesar da ambiguidade embutida nas palavras poupança e reforma, proponho uma reforma da legislação que rege a administração pública.

Um auditor da Receita Federal em Recife multou em R$ 50 mil um iraniano salvo pela Marinha do Brasil quando tentava atravessar o Atlântico em um barco-bicicleta. O barco-bicicleta persa é a essência do problema do serviço público no Brasil.

Vejam na televisão quantas obras inacabadas - estradas, hospitais, barragens hidrelétricas, metrôs etc. São apresentados como crítica aos governos do momento pela oposição e pela imprensa. Mas atingem todos os governos de todos os partidos em todas as regiões do país.

Quem esteve por curto período de tempo na administração pública brasileira sabe do que estou falando. Os servidores públicos são estáveis e recebem comandos e orientações de ministros, secretários, governadores e presidentes cujos cargos são temporários. O ativismos das organizações sociais e do Ministério Público com demandas legítimas sobre a atuação do setor público geram conflitos em todas as áreas. Questões ambientais, fundiárias, de preservação do patrimônio cultural sobre licitações e outras fazem com que qualquer decisão do setor público produza um grande número de ações na Justiça. O servidor público não ganha nada ao aprovar o ato do ministro ou do secretário que deixarão o cargo em breve. Melhor não aprovar nada e esperar pela aposentadoria.

O detentor temporário do cargo insiste, faz ser aprovada a decisão ou a obra e sai do governo carregando centenas de processos dos tribunais de conta e na Justiça.

As obras que precisam de tempo maior do que o tempo do mandato do governante são interrompidas e se tornam escombros cheios de pernilongos, apesar de terem sido inscritas nos programas de ação plurianuais.

A legislação no Brasil é muito ambiciosa - regras impossíveis de serem cumpridas, minuciosas, rígidas e complexas para evitar a corrupção e atender a objetivos inatingíveis. Os servidores públicos honestos travam o funcionamento do governo e multam o barco-bicicleta. Os desonestos se aproveitam da legislação complexa para autorizar mediante pagamento de propina.

O problema é claro, a solução, difícil. Precisamos rever as regras básicas da administração pública, as leis de licitação, a legitimidade de tantas ações que congestionam a Justiça por motivos fúteis. Não é trabalho para economistas. Precisamos de reformas desenhadas por advogados, juízes e promotores.

O servidor público de todas as áreas de governo sofrem. A vida não tem sentido, apenas a aposentadoria. Ou o sentido é o não fazer, proibir, criar obstáculos para que não sejam parte, no futuro, de uma ação na Justiça. Ou para ganharem um dinheiro extra com corrupção.

É preciso dar um sentido à vida dos administradores públicos. Que eles entendam qual o sentido das coisas que fazem. Não pode ser apenas a obediência formal da legislação. É preciso que pensem o tempo todo nos pacientes no SUS, nos aluno na escola ou no persa com o barco-bicicleta. Precisariam ler Camus e procurar um sentido, não para o absurdo da vida, mas pelo menos para as absurdas oito horas por dia que gastam na repartição.

Nenhum comentário: