segunda-feira, março 17, 2014

"A classe média fora do lugar"

Um texto que serve para pensar. Não é preciso concordar, mas, é interessante que seja lido e este é o propósito da sua republicação neste espaço.

A classe média fora do lugar
Publicado em 13/03/2014 - Por Flávio Aguiar.

Visitar o Brasil – desde que moro na Alemanha, e já lá se vão sete anos – é sempre muito instrutivo e original.

Atualmente o Brasil é o único país no mundo que, indo bem melhor do que antes, incomoda muita gente – assim como aquele elefante da conçoneta infantil.

Muita gente – um certo Brasil – está exasperada com a melhora. Com o que se chama seja lá como for: ‘nova classe média’, ‘inchaço da classe média’, além dos correlatos mais sofisticados, como ‘economia superaquecida’, ‘bolha de consumo’, indo até ‘o mal que o pleno emprego faz ao país’, aumentando salários e portanto o famigerado ‘custo Brasil’. Que bem faria ao país os pobres voltarem a ser simplesmente pobres sem outro futuro que não o de serem eternamente pobres!

É sabido que o Estado – em qualquer lugar do mundo (até nos finados regimes comunistas) – tem uma dupla função acoplada: assegurar direitos e administrar privilégios. Acontece que historicamente no Brasil o primeiro pólo desta bipolaridade de humor foi muito dismilinguido, enquanto o segundo foi a chave de ouro do soneto social brasileiro. Algumas exceções pontificaram, é verdade: as leis trabalhistas de Vargas, o desenvolvimentismo dos anos 50/começo de 60, entre uns poucos outros. E, é claro, os últimos dez anos, os tais que agora exasperam muita gente.

Em resumo, o Brasil não foi feito para muita gente. Pelo menos um certo Brasil. Vejam só: quanto mais empregos há, mais gente precisa se deslocar de casa para o trabalho, e vice-versa. Quanto mais estudantes há, mais gente ainda precisa se deslocar entre a casa e a escola ou universidade. O resultado é que os ônibus lotam; como o transporte público (ao contrário, por exemplo, de grande parte das cidades europeias) é densamente privatizado, os preços das passagens tendem a subir, enquanto as frotas de delapidam a olhos vistos, o metrô de S. Paulo ameaça parar e a dar ‘pitis’, etc.

Mais: como há mais dinheiro disponível, mais gente compra carros. Mas as cidades brasileiras não foram feitas para a circulação de tantos carros! Não defendo o carro, defendo o transporte coletivo. Mas durante décadas ter um carro era um privilégio de consumo. Não me esqueço do bate-boca que presenciei, vinte ou trinta anos atrás, entre uma jovem bem jovem e um porteiro de galeria, na rua Augusta, que fechara prematuramente (para ela) um dos portões de entrada/saída. A dita jovem enchia a boca: ‘Eu’ – assim com maiúscula – ‘sou uma consumidora!’. Ser consumidor(a) era um privilégio: agora não é mais (e vem mais gente por aí). Isto exaspera os antigos consumidores, que vêem seus ‘direitos’ – “privilégios” – ameaçados, desde a vaga na faculdade para os pimpolhos até as filas de aeroportos – outro capítulo da exasperação geral.

O exemplo mais estapafúrdio desta exasperação encontrei num artigo do Zero Hora de minha cidade natal. O articulista reclamava que as ‘novas classes médias’ (uso o termo livremente, deixo o debate sobre ele pro Marcio Pochmann, a Marilena Chauí, o Guido Mantega e outros mais entendidos do que eu nestes assuntos) não sabiam aplaudir nos espetáculos a que iam. Aplaudiam de pé qualquer coisa, quando na verdade a boa formação manda que se aplauda de pé apenas o excepcional (quem sabe o que é excepcional é apenas, claro, o autor do artigo). Era o aplauso fora do lugar. Pior: este aplauso destrambelhado contagiava os artistas, que aplaudiam juntos com o público quando, segundo ainda o autor do artigo, deveriam fazer uma comedida reverência. A futilidade besta do tema lembrou-me de outro artigo, lido há cinquenta anos ou mais, n oCorreio do Povo da mesma minha cidade, em que o autor (outro), visitando a então União Soviética, lamentava ver pessoas em mangas de camisa – operários, talvez, aaargh! – nos teatros de Moscou, na platéia, nas frisas, nos camarotes. O autor lembrava com lágrimas nostálgicas nas entrelinhas dos tempos faustosos em que aqueles assentos eram ocupados apenas pelas figuras excelsas da aristocracia moscovita e de alhures.

Mutatis mutandis, o tema do recente aplauso é da mesma jaça. Ou laia.

Mas há mais. Em primeiro lugar, não esqueçamos que este clima de exasperação é centuplicado pela velha mídia, exasperada ela mesma por contar, para contrabalanço do atual panorama político, com um candidato bola murcha que tem de encher continuamente, um outro que faz alianças com desde o verde musgo da pré-candidata sem candidatura até o roxo cardinalício (vermelho jamais) dos ex-PFL e o vago ‘homem da toga preta’, mistura de Cacareco (para quem lembrar) com Jânio Quadros (também para quem lembrar) e Collor de Mello (para quem não esquece).

Em segundo lugar porque a exasperação contamina também a esquerda, pelo menos uma certa esquerda, já que a melhora que se verifica não é exatamente a de seus sonhos – ou devaneios. Para uma parte desta, o Brasil e o mundo estào à beira de um cataclisma revolucionário, e quem atrapalha a erupção pronta para eclodir é a dupla formada pelo nordestino e a mineira-gaúcha de plantão. E chovem artigos – no Brasil e no exterior – falando, por exemplo, dos ‘limites’ da política de transferência de renda, e tanto quanto a direita, da ‘prisão’, da ‘dependência do Estado’, da ‘falta de uma porta de saída’ dos programas de assistência social, etc. São até incapazes de ver – tanto quanto a direita – que a porta de saída será, muito provavelmente, cruzada pela próxima geração porque, como apontam estudos já conspícuos da ONU, a miséria é algo que tende a se reproduzir.

Lamentavelmente, a indigência mental também. Pelo menos quem entre nela tende a não ver porta de saída. Porque se há coisa difícil neste mundo é reconhecer o próprio equívoco.

2 comentários:

Anônimo disse...

Bom, talvez o Flávio não veja, já que mora na Alemanha e pode decidir ficar por lá. Mas esta novel classe trabalhadora é mais reacionária que os incomodados do aeroporto e a Danuza Leão juntos. Para a "colonista", Nova Iorque perdeu a graça porque ela pode encontrar o porteiro do prédio dela por lá... Pois é. Contudo o porteiro dela quer os pobres se explodam!
Assim que ascendem um pouco, a nova classe incorpora todos os trejeitos dos exasperados, com um agravante diretamente ligado à experiência de sua demanda reprimida por anos: não têm condescendência alguma.

Anônimo disse...

O artigo fala de gente comum. Gente comum daquelas que o blogueiro e o autor dizem defender, mas no fundo desprezam.
O que talvez não seja percebido pelos inteligentes que moram na Alemanha e no Parque Tamandaré é que tanto o mal-educado do aeroporto quanto quem reclama dele, são gente comum. Gente que quer casa própria, ônibus decente, carro quando der para comprar, comer pizza no domingo, poder emprestar dinheiro para o cunhado, beber cerveja, hospital sem muita fila, quem sabe levar os filhos a Disney, andar na rua sem ser assaltado, fazer escova progressiva no salão, ir a Grussaí ou Guarapari quando der, ler um livro se tiver tempo, ganhar sempre mais, ir ao cinema no shopping etc.
E para gente comum a vida é meritocrática: quem não trabalha é vagabundo, o que é meu é meu, o que é seu é seu, se deve pague, tem que estudar para passar de ano...
A (nova) classe média ralou para conquistar o que tem, e possui todo o direito de aplaudir de pé ou criticar o que bem quiser.
Quando a classe D chegar a C vai querer a mesma coisa.