quarta-feira, janeiro 13, 2016

Mais sobre informação e contrainformação na geopolítica da energia: a desdolarização do comércio de petróleo no mundo

Há uma semana, no dia 6 de janeiro, eu comentei aqui sobre uma reportagem do The Wall Street Journal, sobre a redução dos investimentos de capital para exploração de petróleo e sobre os interesses envolvidos no setor e entre as nações.

Pois bem, hoje, a nossa fonte de informação utilizada é outra. É o jornal russo Pravda. Ele traz uma matéria "Preço do petróleo: Rússia quebrará monopólio de Wall Street" com elementos interessantes sobre a estratégia russa, e que seria também da China, sobre o rompimento com o petrodólar, ou seja, com a necessidade de se possuir dólar para comercializar o produto mais negociado no mundo.

Até para seguir na linha que busca interpretar o que é informação e o que seria contrainformação vale conferir as intenções expostas nesta matéria. É oportuno lembrar que a Rússia é, praticamente, junto com a Arábia Saudita e os EUA, os maiores produtores mundiais de petróleo.

Sugiro ainda que se releia nota do blog, publicada no dia 28 de dezembro de 2015 (aqui) com o título
"Rússia se mantém entre os maiores produtores de petróleo, mesmo com a crise do baixo preço" que comenta matéria da Bloomberg sobre a estratégia russa que ao desvalorizar sua moeda aumentou a produtividade, reduzindo custos de produção de petróleo em seu território.

Enfim, juntando estas diversas pontas deste grande e complexo novelo da geopolítica da energia vale conferir a estratégia sobre a desdolarização do comércio de petróleo.

"Preço do petróleo: Rússia quebrará o monopólio de Wall Street"
"Rússia acaba de dar passos significativos para quebrar o atual monopólio que Wall Street impõe ao preço do petróleo, pelo menos para parte significativa do mercado mundial de petróleo. O movimento é parte de estratégia de mais longo prazo para descolar a economia da Rússia e, especialmente sua muito significativa exportação de petróleo, do dólar norte-americano - que é hoje o calcanhar de Aquiles da economia russa. 

No final de novembro, o Ministério de Energia da Rússia anunciou que começaria a testar um novo preço referencial para o petróleo russo. Talvez pareça café pequeno para muitos, mas é importantíssimo. Se o experimento for bem-sucedido, e não há razão para que não seja, os contratos futuros negociados para o cru russo nas bolsas russas, serão denominados em rublos, não mais em dólares norte-americanos. É parte de um movimento de desdolarização que Rússia, China e número crescente de outros países já iniciaram sem alarde.

A fixação de um preço referencial [orig. oil benchmark price: preço para o cru que serve como referência, facilitando para vendedores e comparadores a determinação dos preços de incontáveis variedades de crus e misturas] é o eixo de distribuição de todo o sistema que os grandes bancos de Wall Street usam para controlar os preços mundiais do petróleo. 

Hoje, o petróleo é a principal mercadoria negociada em dólares em todo o mundo. O preço do cru russo está hoje referenciado a um preço chamado "preço Brent". O problema é que o campo de Brent, como outros grandes campos do Mar do Norte estão já em declínio, o que implica dizer que Wall Street pode estar usando uma referencial em vias de esgotamento, para controlar o preço de quantidades gigantescas de petróleo. O outro problema é que o contrato Brent é controlado essencialmente por Wall Street e pela manipulação dos derivativos em bancos como Goldman Sachs, Morgan Stanley, JP MorganChase e Citibank.

O fim do 'petrodólar'

A venda de petróleo denominado em dólares é essencial como apoio ao EUA-dólar. Por sua vez, manter a demanda por dólares em todos os bancos centrais, como moeda básica das reservas nacionais para pagar pelo petróleo importado, em países como China, Japão ou Alemanha, é essencial para que o EUA-dólar continue a ser a principal moeda de reserva em todo o mundo. O status de principal moeda de reserva no mundo é um dos dois pilares da hegemonia dos EUA desde o final da 2ª Guerra Mundial. O segundo é a força militar armada.

EUA financia suas guerras com dólares dos outros

Porque todos os países têm de comprar dólares para pagar pelo petróleo e por praticamente todas as mercadorias que importam, países como Rússia ou China (para ficar nesses exemplos) investem em papéis do governo dos EUA ou outras securities semelhantes do governo dos EUA - portanto, em dólares -, o excedente que suas empresas acumulam. O único segundo candidato suficientemente grande para esses investimentos, o euro, passou a ser visto como de mais alto risco desde a crise da Grécia em 2010.

O papel de liderança do EUA-dólar na função de moeda de reserva é o que permite, desde agosto de 1971, quando o dólar foi desvinculado do lastro ouro, que o governo dos EUA sobreviva apesar de infindáveis déficits no orçamento, sem ser forçado a subir a taxa de juros - como alguém que pudesse usar um 'cheque especial' bancário infinito, sem limite nem prazo.

É também o que permitiu que Washington criasse dívida federal recorde de $18,6 trilhões, sem nenhuma preocupação. Hoje, a relação dívida federal/PIB do governo dos EUA é 111%.

Em 2001, quando George W. Bush assumiu a Casa Branca, e antes de torrar trilhões na "Guerra ao Terror" no Afeganistão e Iraque, a mesma relação EUA-dívida/PIB era a metade do que é hoje: 55%.

Daí que os falastrões em Washington vivam a dizer que "dívida não é problema": porque têm certeza de que Rússia, China, Japão, Índia, Alemanha estão para sempre condenados a ter de comprar a dívida dos EUA com os dólares excedentes que consigam acumular. 

Manter esse 'poder' - a condição de principal moeda internacional de reserva - é prioridade estratégica para Washington e Wall Street, vitalmente ligada ao processo pelo qual o mundo determina os preços do petróleo.

No período até o final dos anos 1980s os preços mundiais do petróleo eram determinados, em grande proporção, pela relação real diária entre oferta e demanda. Ali ainda reinavam os corretores de petróleo, os que compravam e vendiam. Então, Goldman Sachs decidiu comprar uma pequena corretora de mercadorias que havia em Wall Street, J. Aron, nos anos 1980. Já haviam posto o olho na possibilidade de transformar o modo como, dali em diante, o petróleo seria negociado nos mercados mundiais.

Foi o advento do "petróleo papel", petróleo vendido em contratos futuros - contratos independentes de entrega do cru físico, que podem ser muito mais facilmente manipuláveis por grandes bancos, cujos preços são muito sensíveis a boatos e a operações clandestinas sórdidas 'de mercado', e quanto mais sórdidas mais lucrativas. Esse 'mercado' era meia dúzia de bancos de Wall Street que denominavam as vendas futuras de petróleo e sabiam que posições preservar e que posições vender - função insider muito conveniente, da qual não se fala em reuniões sociais da boa sociedade. 

Foi o começo da conversão do mercado de petróleo em cassino, no qual Goldman Sachs, Morgan Stanley, JP MorganChase e uns poucos outros bancos gigantes de Wall Street controlam as mesas de roleta.

Depois do aumento do petróleo da OPEP em 1973, quando o preço chegou a quase 400% em apenas alguns meses depois da Guerra do Yon Kippur em outubro de 1973, o Tesouro dos EUA enviou emissário de alto nível a Riad, Arábia Saudita.

Em 1975, o secretário-assistente do Tesouro dos EUA Jack F. Bennett foi enviado à Arábia Saudita para firmar um acordo com a monarquia, pelo qual o petróleo saudita e de toda a OPEP passaria a ser negociado exclusivamente em EUA-dólares, não mais em ienes japoneses, ou marcos alemães, ou o que fosse. Imediatamente depois, Bennett assumiu um alto posto na Exxon.

Os sauditas exigiram altas garantias militares e equipamento de ponta, em troca do 'acordo' e, daquele ponto em diante, por mais que países importadores de petróleo tenham protestado, o petróleo é vendido em dólares em todos os mercados do mundo, a preços determinados por Wall Street mediante o controle dos derivativos e do mercado de futuros, como se faz na Bolsa Intercontinental Exchange, ICE em Londres, na Bolsa de Mercadorias NYMEX, em New York, ou na Bolsa Mercantil de Dubai, que determina o preço de referência para o cru árabe. Todas essas instituições são propriedade de um fechadíssimo grupo de bancos de Wall Street (Goldman Sachs, JP MorganChase, Citigroup e outros). Foi quando se diz que o secretário de Estado Henry Kissinger teria dito que "Se você controla o petróleo, você controla nações inteiras". O petróleo sempre foi o coração do Sistema EUA-dólar, desde 1945.

Importância do preço referencial russo 

Hoje, os preços do petróleo que a Rússia exporta são fixados conforme o preço Brent negociado em Londres e New York. Com o lançamento do preço referencial da Rússia, isso deve mudar, provavelmente muito dramaticamente. O novo tipo de contrato para o cru russo em rublos será negociado na Bolsa Mercantil Internacional de São Petersburgo (SPIMEX).

Os contratos referenciados ao preço Brent são usados atualmente para fazer preço não só do petróleo cru russo. Fazem preço também de mais de 2/3 de todo o petróleo negociado internacionalmente. O problema é que a produção do Mar do Norte está caindo, a ponto de que hoje míseros 1 milhão de barris de Brent ali produzido fazem o preço de 67% de todo o petróleo comercializado no mundo. 

Contratos denominados em rublos russos podem dar mordida considerável na demanda por petrodólares, tão logo comecem a aparecer.

A Rússia é o maior produtor de petróleo do mundo; a criação de um referencial independente para o preço do petróleo russo, que seja independente do dólar, é evento muito significativo, para dizer o mínimo. Em 2013 a Rússia produziu 10,5 milhões de barris/dia, pouco mais que a Arábia Saudita. Dado que país usa predominantemente o gás natural, os russos podem exportar 75% de todo o petróleo que extraem. A Europa é, de longe, o principal consumidor do petróleo russo, comprando 3,5 milhões de barris/dia, ou 80% do total das exportações russas.

O petróleo Urals Blend, mistura de vários tipos de petróleo russo, é o item mais exportado da 'carta' de petróleo russo. Principais consumidores são Alemanha, Países Baixos e Polônia. Para avaliar com mais clareza o peso do preço referencial que os russos estão criando, basta considerar que os demais grandes fornecedores de cru para a Europa - Arábia Saudita (890 mil barris/dia), Nigéria (810 mil b/d), Cazaquistão (580 mil b/d) e Líbia (560 mil b/d) - ficam muito abaixo da Rússia, na relação de fornecedores para a Europa.

E, também, a produção doméstica de petróleo na Europa já entrou em declínio acentuado. O petróleo extraído em toda a Europa caiu abaixo de 3 mi b/d em 2013, acompanhando o declínio ininterrupto também no Mar do Norte, base do referencial Brent.

Fim da hegemonia do dólar não prejudica os EUA

O movimento dos russos para negociar petróleo em rublos para os mercados mundiais, especialmente para a Europa Ocidental, e cada vez mais para China e Ásia pelo oleoduto SOOP (Sibéria Oriental-Oceano Pacífico) [ing. ESPO, Eastern Siberia-Pacific Ocean] e por outras vias, precificado pelo novo referencial russo, na Bolsa Mercantil Internacional de São Petersburgo não é, de modo algum, o único movimento concebido por países dependentes do dólar, para escapar dessa dependência na compra de petróleo.

Em algum momento, no início do próximo ano, a China, segundo maior importador de petróleo do mundo, planeja lançar seu próprio contrato para compra de petróleo a ser pago, não em dólares, mas em yuan chineses - a ser negociado na Bolsa Internacional de Energia de Xangai.

Passo a passo, Rússia, China e outras economias emergentes estão tomando medidas para reduzir o muito que dependem do EUA-dólar, para se "desdolarizar". Petróleo é a mercadoria mais negociada no mundo e quase inteiramente em EUA-dólares. Se essa relação desigual for rompida, a capacidade do complexo industrial militar norte-americano para fazer guerras sofrerá duro baque.

Talvez assim se abram algumas portas para ideias mais pacíficas, menos belicistas, sobre como gastar os dólares dos contribuintes norte-americanos para reconstruir a infraestrutura básica da economia dos EUA, hoje reduzida às mais escandalosas ruínas.

Em 2013, a Sociedade Norte-Americana de Engenheiros Civis estimou em $3,6 trilhões o investimento em infraestrutura básica de que os EUA carecem, se for feito nos próximos cinco anos (se demorar mais que isso, os números crescem). 

Aquele relatório informa que de cada nove pontes nos EUA, mais de 70 mil pontes em todo o país, estão em estado precaríssimo. Quase 1/3 de todas as grandes rodovias nos EUA estão em más condições. Só dois, dos 14 grandes portos que há na costa leste têm condições de receber os super cargueiros que em breve estarão chegando pelo recém alargado Canal do Panamá. Já há no mundo mais de 224 mil quilômetros de trilhos para trens de alta velocidade; nem um metro deles em território dos EUA.

Esse tipo de gasto em infraestrutura básica seria fonte muito mais economicamente benéfica de empregos reais e de renda real para os EUA, que as infindáveis guerras de que John McCain fez meio de vida. Investimento em infraestrutura, como já escrevi incontáveis vezes, tem efeito multiplicador na criação de novos mercados. Infraestrutura cria eficiências econômicas e arrecadação da ordem de 11 dólares para cada dólar investido, porque toda a economia ganha eficiência.

Declínio dramático no papel do dólar como moeda mundial de reserva, se combinado com foco concentrado, à moda russa, na reconstrução da economia nacional, em vez de deslocalizar tudo, terceirizar tudo em todos os casos, seria excelente caminho para reequilibrar um mundo já completamente enlouquecido com tantas guerras.

Por paradoxal que pareça, a desdolarização - que negue a Washington os meios para financiar guerras futuras com o que o país recebe de chineses, russos e outros compradores de papeis da dívida pública dos EUA - pode vir a ser valiosa contribuição para um mundo de paz genuína. Não seria ótimo, para variar?"

Link da matéria no Pravda: http://port.pravda.ru/russa/13-01-2016/40168-petroleo_russia-0/.

PS.: Atualizado às 17:22: O autor do texto reproduzido pelo Pravda é F. William Engdahl. Ele é consultor de risco estratégico e professor formado em Política da Universidade de Princeton, além de autor best-seller do "Petróleo e geopolítica". Seu texto foi publicado originalmente na revista on-line "New Outlook Oriental", link: "http://journal-neo.org/2016/01/09/russia-breaking-wall-st-oil-price-monopoly/."

Um comentário:

douglas da mata disse...

Pois é, ponto para Vladimir. Que sacada. Deu o troco.

Quando Brasil, Rússia, China e outros aventaram a possibilidade da criação de uma bolsa de moedas para o mercado internacional de trocas, afastando o nó górdio do dólar, que é padrão de troca e emitido pela economia que exporta (e se autofinancia) sua dívida colossal através dessas trocas assimétricas, o resultado foi o ataque generalizado do capital, quer seja com o dumping do preços do petróleo, quer seja com a desestabilização dos mercados desses países através das chantagens conhecidas: aumento dos juros nos EUA (ameaça constante) e rebaixamento dos "ratings" dos cafetões do capital (as agências de classificação).

Pois é, não é que o Vladimir foi no âmago da questão. Se o problema é não poder lutar contra quem emite a moeda que oferece aos outros como padrão de troca (os EUA), então fixe o valor do que você tem (petróleo, nesse caso) na moeda que te interessa, deixando os estadunidenses e o financistas pendurados na broxa, sem escada.

Moeda sem o ativo não é nada e se esfarela no ar. Petróleo não some. O valor que lhe é dado é uma ficção mercadológica (especulativa). E o jogo só é jogado se todos querem jogar.

Aguardemos.