terça-feira, julho 05, 2011

“Humildificador digital” bom demais!

A sugestão de leitura também foi da professora Maria Amélia Boynard, que nos comentários já foi aqui também, digamos que, pressionada. Há quem não os suporte, esperando uma unanimidade que nunca existirá. A caixa de comentários dos blogs e sites não são, portanto, uma caixa de surpresa, mas o humildificador digital na apropriada denominação dada pelo cronista, Joaquim Ferreira dos Santos, no seu texto de ontem, no jornal O Globo. Ele vale a sua leitura:

"Caixa de comentários

“Ninguém presta no novo humildificador digital”

Um velho amigo psicanalista, o dr.Francisco Daudt, recomenda aos seus clientes o uso do humildificador. É uma máquina a ser inventada. Cada pessoa se submeteria a ela diariamente, pela manhã, antes de sair de casa, com a finalidade de rebaixar os níveis de vaidade, arrogância e presunção. Uma máquina para nos levar de volta à nossa desimportância. Seria uma UPP do ego, que pacificaria no homem o seu desejo primitivo de, assim que colocasse os pés na rua, marchar orgulhoso sobre as hostes inimigas, ou seja, o resto da Humanidade.

Filtrados pelos raios companheiros do humildificador, todos ficaríamos mais gentis e de um tamanho compatível com o que na verdade somos. Nem deuses nem Bozos. Quase normais. O pó bíblico. Seria a máquina do “menos, meu bem, menos”, uma frase que não se aceita ouvir nem do grande amor que nos vai ao lado pelo café das manhãs. Ao fim da sessão, o humildificador nos liberaria para a convivência, naquele ponto certo de equilíbrio, fúria narcísica estabilizada, o senso de medida aguçado e a compreensão afinal de que não somos isso tudo.

Eu achava que o e-mail do leitor era o mais cruel humildificador do jornalista. O cidadão clica no endereço do cronista, um sujeito que deve se achar o rei da espécie pois acabou de publicar meia página cheia de palavras no jornal da capital, e diz o que achou. Cru, no cangote do autor, um peteleco no lóbulo, um catiripapo à sorrelfa, sem a necessidade de olhar no olho e nem mesmo se identificar com o número do RG. Semanalmente recebo algum e-mail assim. Funciona como um humildificador. É do jogo e, como previa Francisco Daudt, terapêutico.

O cidadão comprou o jornal, não gostou do que leu e quer deixar isso bem claro ao jornalista, que supõe um ser posudo e com ares de dono do mundo, do outro lado do ringue. Cai matando com o e-mail, o canhão que o mundo digital lhe pôs à mão. Mete o pau na falta de vocabulário, ri das concordâncias, lamenta a obviedade do raciocínio. Qualquer vírgula fora do lugar e são dezenas de puxões de orelha, ameaças de que vai cancelar a assinatura.

Gosto particularmente, como humildificador de cabeceira, daquele e-mail em que o leitor, após analisar o que eu tinha escrito no jornal, nem se deu ao trabalho de gastar muito tempo para explicar seu desapontamento. Seco, quase um Graciliano Ramos, sintetizou o que achara em apenas uma palavra:“Desiste”. Tem sua elegância.

De vez em quando, dependendo da ira que move o leitor, do quão lamentável ele achou a perda de tempo com o texto que comprou na banca, a crítica é enviada com cópia para o ombudsman ou o diretor de redação. “Saudades do Rubem Braga”, dizia outro, também com aquele estilo certeiro de enviar o cronista ao colo do humildificador.

Eis que agora os novos meios digitais inventaram o mais demolidor dos humildificadores — a caixa de comentários. Os cristãos jogados aos leões no Coliseu, os torcedores do Vasco que entraram na arquibancada do Flamengo, os passageiros das vans do Rio — eles são uns felizardos. Apanha-se mais na caixa de comentários. Os estupradores que chegam aos presídios, os passageiros do metrô na hora do rush, os velhinhos na fila do INSS — eles não sabem que pode ser pior ainda.

A caixa de comentários é a nova praça de touros, sendo que as bandeirolas agora são cravadas a frio na corcova do sujeito que teve a desfaçatez de escrever suas ideias. É aquele link, no final de cada texto dos sites e blogs. O leitor clica em cima e imediatamente abre-se uma caixa em branco para ele encher de comentários. Serve o que vier à cabeça. O importante é meter bronca. Os jornais têm mecanismos de filtragem impedindo a postagem de palavrões. De resto, vale tudo. Em segundos, honras construídas com muito esforço por anos de trabalho são apedrejadas com o escarro mais grosseiro. É um corredor polonês — e este texto, que ainda nem foi lido na íntegra, já deve estar fazendo jus à impressionante sanha assassina que move os assinantes das caixas, o mais doloroso de todos os humildificadores.

Chico Buarque acabou de declarar que se achava amado, suas músicas eram cantadas por todos, os shows estavam cheios — até que seu site abriu uma caixa de comentários e ele percebeu. Era odiado. Chico se considerava um trabalhador honesto e de méritos, como o Pedro Pedreiro da música. Viu pelas frestas da caixa de comentários que não passava da nova Geni a ser apedrejada.

Imagine-se, então, o que sofre um cronista de segunda.

A caixa de comentários é o novo tiro aos pombos, o saco de areia do boxe, a peteca dos militares no Posto 6 e o judas do Bolsonaro. Pancada neles. Eu acho mais civilizado o chute que o Anderson Silva deu no queixo do Victor Belfort. Estava nas regras, e Victor sabe quem chutou. Na caixa de comentários, escondido atrás de um nome-fantasia, alguém percebe que chegou a hora de brincar de videogame com uma cabeça que se deu ao trabalho de pensar — e, agora não mais num email particular, mas com a audiência de toda a internet, sai chutando o corpo estendido no chão das reputações alheias.

É uma das poucas unanimidades contemporâneas. Para quem escreve em caixa de comentários, ninguém presta. Jornalistas são todos uns ignorantes; músicos, uns velhos ultrapassados. Odeia-se. Parece que o sujeito ficou cansado de jogos de violência e vai ver outro site, mas continua atirando a esmo em qualquer coisa que se mexa. É a nova briga de rua, todo mundo batendo ao mesmo tempo, agora com o soco inglês transformado em verbo soez para cutucar o fígado alheio. Humildifica, mas não precisava cuspir.”

Joaquim Ferreira dos Santos. Publicado no Segundo Caderno de O Globo em 4 de julho de 2011.

4 comentários:

Prof. Ahmed Jibril disse...

Professor Roberto,

Perdí preciosos minutos de minha vida lendo esta postagem.

Que lástima!

Anônimo disse...

Ahmed,

sei bem o que você sentiu. Sou solidário.

Sabiga

Anônimo disse...

mas hein, ...

Anônimo disse...

Os 2 primeiros parágrafos, são de aplicação universal. Absolutamente imperdíveis. No nosso País, onde imperam a inveja e outros pecados correlatos, deveria ter uma linha de crédito para financiar humildificadores para todos. A FINEP deveria financiar a pesquisa para inventá-los e industrializá-los.
Sugiro tomar como metéfora inspiradora o espelho, sim um espelho do caráter, esse poderia ser o humildificador.