quarta-feira, novembro 04, 2015

"Investigando as cadeias globais"

O assunto das cadeias globais é um dos que venho tentando compreender com mais profundidade por conta da cadeia produtiva do petróleo e por tudo que ela relaciona com o estado do Rio de Janeiro.

Sobre o tema, mais uma vez, o professor Luiz Gonzaga Belluzzo traz uma síntese interessante, sobre a forma como a Economia Global age sobre as nações dividindo, fragmentando e hierarquizando os papéis das economias nacionais, de forma mais especial da produção em massa de produtos.

Porém, sabemos que o caso não é diverso em outros campos, inclusive na área de serviços. A participação do sistema financeiro neste processo é crescente e preocupante, porque, como dissemos na breve nota (postada hoje aqui no blog) ela hoje consegue maior rentabilidade do que os próprios responsáveis pela produção.

Entre outras questões, por isso sugiro a leitura do artigo para refletirmos sobre como os governos nacionais (e infranacionais) acabam por serem apenas gerentes deste processo articulando os interesses do poder econômico, junto às estruturas burocráticas do Estado. Confiram o artigo publicado hoje na edição do Valor:

Investigando as cadeias globais
Por Luiz Gonzaga Belluzzo

O trabalho pioneiro de James Glattfelder, "Decoding Complexity - Uncovering Patterns in Economic Networks" desvela de forma rigorosa a concomitância entre a constituição das cadeias globais de valor e a centralização do controle da produção e da riqueza em um núcleo reduzido de grandes empresas e instituições da finança "mundializada".

Esses nódulos corporativos mantêm entre si nexos de dependência nas decisões estratégicas. Para configurar rigorosamente o núcleo de controle do sistema empresarial globalizado, Glattfelder define a importância de cada "nó corporativo" a partir da intensidade de suas conexões acionárias diretas e indiretas. Ele introduz, assim, o conceito de fluxo controle.

"Nossos resultados empíricos contrastam com avaliações prévias na literatura econômica nas quais uma maior distribuição do controle (em determinado país) não é suspeita de resultar numa maior concentração do controle global e vice-versa".

Desde o final dos anos 70 do século XX, a reestruturação do capitalismo envolveu mudanças profundas no modo de operação das empresas, na integração dos mercados e na esfera da soberania do Estado:

1) A submissão das decisões estratégicas ao "comando sistêmico" de um número reduzido de instituições financeiras.

2) A empresa oligopolista, "conglomerada" e "verticalizada" - aquela da separação entre propriedade e gestão, administrada pelo poder dos gerentes - desmontou a velha estrutura e concentrou-se na "atividade principal" (inovação, design, marketing e vendas). Assim, a nova empresa assume a função "integradora" no comando de uma rede de fornecedores espalhados pelo planeta;

3) ao mesmo tempo, sob os auspícios do capital financeiro, ocorre a centralização do capital à escala mundial, movimento que envolve a vitória do "valor do acionista" sobre as "ultrapassadas" estratégias  de crescimento da firma apoiadas na predominância dos lucros retidos para sustentar o investimento produtivo. Isso se dá em simultâneo à ampliação das fatias de mercado controladas, em todos os setores, pelas grandes empresas - tanto as integradoras quanto as fornecedoras.

Tomo a liberdade de reproduzir dois parágrafos já publicados nesta coluna: nos anos 60, tempos dos oligopólios de Berle e Means e dos gerentes obcecados com o crescimento da empresa no longo prazo, a cada US$ 12 gastos com compra de máquinas ou construção de novas fábricas, apenas US$ 1 era gasto com os dividendos pagos aos acionistas. Nas décadas seguintes, a proporção começou a se inverter: mais dividendos, menos investimentos nas fábricas e na contratação de trabalhadores.

A associação de interesses entre gestores e acionistas estimulou as compra das ações das próprias empresas com o propósito de valorizá-las e favorecer a distribuição de dividendos. A isso se juntam a febre das fusões e aquisições, o planejamento tributário nos paraísos fiscais, o
afogadilho das demonstrações trimestrais de resultados e as aflições das tesourarias de empresas e bancos açoitadas com o guante da marcação a mercado.

 4) Os recém festejados "tratados de livre comércio" exprimem as transformações em curso nas relações entre o núcleo de empresas globalizadas e os Estados Nacionais. O que está inscrito nos rabiscos do TPP e do Tratado Trans Atlântico é uma tentativa de submeter o espaço jurídico-político constituído pelos Estados Nacionais ao "novo mercantilismo" da grande empresa transnacional dispersa geograficamente, mas extremamente concentrada sob o controle dos megabancos americanos, ingleses, da zona do euro e de seus fundos mútuos e fundos de pensão.

O tratado estabelece uma dualidade nos sistemas legais ao atribuir às empresas novos direitos para escapar das leis e tribunais americanos, japoneses, peruanos, seja lá o que for, e processar os governos por eventuais prejuízos que possam sofrer em suas atividades. Nada de intromissões e intervenções consideradas indevidas ou abusivas.

 Caso isso ocorra, os governos estão sujeitos a multas pecuniárias e outras punições civis. As empresas estariam habilitadas a demandar compensação por eventuais prejuízos causados por regulamentações financeiras, trabalhistas, na saúde pública, na área ambiental. O Capitalismo de Estado já era. Transfigurou-se no Estado do Capitalismo.

5) Em seu impulso para a "desterritorialização", as empresas deslocaram sua produção manufatureira para as regiões em que prevalecem baixos salários, câmbio desvalorizado e alta produtividade do trabalho. Nos 40 anos de globalização, as empresas originárias dos países centrais cuidaram de separar em jurisdições distintas os componentes de sua atividade globalizada: a) Wall Street e a City londrina abrigam as 20 maiores instituições financeiras que "administram" os ativos globais; b) na China e adjacências, predomina a formação de nova capacidade produtiva; c) nos paraísos fiscais, a captura dos resultados. 

A convergência entre a centralização do controle pela finança, a fragmentação espacial da produção e a centralização do capital financeiro tem suscitado surtos intensos de demissões de trabalhadores. A migração das empresas para as regiões onde prevalecem relações mais favoráveis entre produtividade, câmbio e salários desatou a "arbitragem" com os custos salariais e estimulou a "flexibilização" das relações de trabalho imposta pelo apelo avanço das tecnologias de informação e da automação na indústria e nos serviços.

A evolução do regime do "precariato" constituiu relações trabalhistas que se desenvolvem sob as práticas da flexibilidade do horário. A flexibilização das relações trabalhistas subordinou o crescimento da renda das famílias ao aumento das horas trabalhadas. Assim, a grande empresa contemporânea move a economia capitalista na direção da concentração da riqueza e da renda, falhando com grande escândalo em sua capacidade de gerar empregos, de oferecer segurança aos que ainda consegue empregar ou de alentar os já empregados com perspectivas de melhores salários.

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

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