terça-feira, fevereiro 23, 2016

"O mundo assistiu a "regulamentação" do Estado pelos mercados, concebida nas salas adornadas com a rica tapeçaria de WallStrret" por Belluzzo

Outro bom artigo do professor Luiz Gonzaga Belluzzo da Unicamp, junto com Gabriel Galípolo da PUC/SP que foi publicado hoje no Valor, P. A11.

O texto é cirúrgico na análise da sociedade contemporânea desigual controlada pelos mercados. Mais que opinião, ele se utiliza de alguns importantes indicadores que reforçam os argumentos dos caminhos seguidos pela liberalização total e completa, não apenas do mercado, mas da vida das pessoas. Vale conferir!

"A queda do meio"

"Estudos recentes delatam, sem premiação, o corolário da reestruturação conservadora operada na economia mundial nos últimos 40 anos. Em outubro de 2015 o Credit Suisse publicou o Global Wealth Databook. O estudo revela que a riqueza acumulada pelo 1% mais abastado da população mundial agora equivale, pela primeira vez, à riqueza dos 99% restantes. A Oxfam afirma que em 2015, apenas 62 indivíduos detinham a mesma riqueza que 3,6 bilhões de pessoas - a metade mais afetada pela pobreza da humanidade. Estudo recente da OCDE sobre desigualdade ("Inequality -The Gap between Rich and Poor") afirma que entre 1975 e 2012, cerca de 47% do crescimento total da renda antes de impostos [nos EUA] foi para o 1% no topo.

Nesse cenário, acirrou-se o conflito distributivo com repercussões no debate democrático. Na Europa, crescem os partidos de extrema-direita. A eleição americana demonstra as dificuldades das posições políticas de centro diante da "radicalização" à direita e à esquerda. Ainda que o socialdemocrata Bernie Sanders não consiga vencer as primárias, seu discurso empurrou Hillary para posições mais próximas da esquerda liberal americana. Já na turma republicana fica difícil definir quem está mais à direita.

Como assinalou o lúcido conservador Martin Wolf em artigo publicado no Valor em 3/2, "Políticos bem sucedidos compreendem que as pessoas precisam sentir que suas preocupações têm de ser levadas em consideração, de que eles e seus filhos desfrutem a perspectiva de uma vida melhor e de que vão continuar a ter uma dimensão adequada de segurança econômica" O declínio do centro exprime de forma dramática a ruptura das relações mais "equilibradas" entre os poderes do "livre mercado" e o resguardo dos direitos econômicos e sociais dos cidadãos desfavorecidos.

Nos estertores dos anos 1970, a estagflação desarranjou o acordo social e econômico concertado no pós-guerra. Mais na Europa, mas também nos Estado Unidos, esse acordo ensejou durante 30 anos uma virtuosa combinação entre crescimento econômico, baixa inflação, ganhos reais nos salários médios, ampliação do emprego e da massa salarial com redução das desigualdades.

No início dos 80, Ronald Reagan e Margareth Thatcher proclamavam que "o Estado era o problema e não a solução. Eles preconizavam a redução de impostos para os ricos "poupadores". Acusavam os sistemas de tributação progressiva de desestimular a poupança e debilitar o impulso privado ao investimento. Os sindicatos "prejudicavam" a economia e os trabalhadores ao pretender fixar a taxa de salário fora do "preço de equilíbrio". Era preciso "acabar com tudo aquilo".

Liberada, a velha toupeira do capitalismo cavou fundo e redefiniu em poucos anos a distribuição espacial da produção, do comércio, dos fluxos de capitais. Em sua fúria criadora e destrutiva, entregou os mercados financeiros às suas insanidades, o que impulsionou a formação de oligopólios globais, centralizando o controle da produção em poucas empresas e promovendo a precarização em massa do emprego.

A crise financeira esgueirou-se silenciosa nos subterrâneos da economia globalizada, enquanto seus acólitos midiáticos e acadêmicos evangelizavam o público com as crendices sobre os mercados eficientes e "competitivos" povoados por agentes racionais e otimizadores.

Observada em suas conexões globais, a crise acusa o desafino da orquestra formada pela China-Europa (Alemanha?) e Estados Unidos, os exportadores de commodities como coadjuvantes. Desafinou: em 2015 o PIB mundial a preços correntes apresenta valor inferior ao de 2012, o índice de preços das commodities não combustíveis apresenta valores inferiores ao de 2006 e o preço do barril do petróleo é o menor desde 2005. Para completar o quadro, só faltavam os solavancos bancários dos primeiros meses de 2016.

Quando irrompeu das profundezas, o terremoto financeiro de 2008 exigiu socorro às instituições financeiras globalizadas. Incapazes de revigorar as economias, as políticas monetárias e fiscais socializaram prejuízos, engordaram a riqueza rentista-parasitária por meio do endividamento dos Estados. De quebra, acentuaram a concentração de renda e reabilitaram dos baixios do fracasso a sub-teologia dos mercados eficientes e competitivos.

O relatório anual do Bank of International Settlements- 2014/2015 (BIS), constata que antes e depois da crise financeira "a expansão do crédito em vez de financiar a aquisição de bens e serviços, o que eleva os gastos e o produto,... está simplesmente financiando a aquisição de ativos já existentes, sejam eles 'reais' (imóveis ou empresas) ou financeiros".

Entre os "ativos já existentes" sobressaem as dívidas soberanas. O observatório da OCDE revela: a dívida pública em percentual do PIB nos países da Organização apresentava uma média de pouco mais de 40% em 1970. Ela se eleva para quase 100% em 2011, assoberbada pelas operações de "quantitative easing", leia-se, a troca do lixo tóxico gerado na farra financeira por títulos dos governos com remunerações reais (yields) negativas.

A nova etapa do capitalismo não realizou a propalada redução do Estado. Há quem se perca nas palavras e imagine observar as consequências da "desregulamentação". Nada disso, denuncia o ex-economista-chefe do FMI, Simon Johnson: o mundo assistiu à "regulamentação" do Estado pelos mercados, concebida nas salas adornadas com a rica tapeçaria de Wall Street. O rádio, televisão e jornais empenham-se em convencer os cidadãos da necessidade de se sacrificar, aceitar cortes nos gastos sociais, abdicar dos direitos ou encarar a destruição da economia. Morra nos hospitais sem médicos nem remédios. Em nome da ciência econômica, do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amem.

Na terra de Santa Cruz, a pertinente e necessária demanda por equilíbrio entre receitas e despesas públicas é utilizada para condenar o Estado Social. Não obstante a economia brasileira ter apresentado superávits primários em todos os anos entre 1997 e 2013, tentam jogar o paquiderme na sala para debaixo do tapete - dos R$ 613 bilhões de déficit nominal, o elefante dos juros pesa R$ 501 bilhões."

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e escreve mensalmente às terças-feiras. Gabriel Galípolo, professor do depto. de economia da PUC/SP

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