domingo, abril 11, 2010

"Visita à caverna"

Há algum tempo, o blogueiro, mesmo sendo um usuário intenso da grande rede, vem se questionando sobre a correria e a superficialidade das questões tratadas nos tempos modernos, não apenas aqui em nossas telas, minha e sua que me lê, mas na maioria dos espaços que utilizamos. Por conta destas angústias e pelo interesse em entender o impacto das novas tecnologias em nossas vidas é que encontrei o sensacional texto, do crítico literário do caderno Prosa & Verso, do jornal O Globo, José Castello. Neste breve ensaio - ou seria uma crônica - ele tece interessante análise que merece sua leitura. O blog sabe que, como mesmo Castello vai observar, a maioria dos leitores prefere textos rápidos neste espaço, mas eu garanto, que o texto vale sua leitura, até para bem aproveitar o final de semana, em algo que ajude a construir o seu pensamento e não apenas encher as gavetas de informações fragmentadas que muitas vezes involuntriamente aqui produzimos: Visita à cavernaJosé Castello “Entrei em uma lan house para ler meus emails. A primeira coisa que me assustou foi o silêncio.Diante de telas luminosas, debruçados sobre os teclados como pianistas de rock, garotos de cabelos espetados e meninas pálidas navegavam (às braçadas) pela web. Nos monitores ao meu lado, as imagens saltavam com uma rapidez espantosa, disparando jatos de luz. A cena — porque estou sempre com livros na cabeça — me fez pensar em “O jogo da amarelinha”, o grande romance de Julio Cortázar, publicado em 1963. Os saltos que damos com o protagonista Oliveira pelas páginas do livro antecipam, meio século antes, a caverna que visito. O escritor sugere duas maneiras de ler seu livro: a ordem crescente, que conduz do capítulo 1 ao 155; ou uma linha imaginária que parte do capítulo 73 e, seguindo um “tabuleiro de direção” que nos oferece, dá grandes saltos, para lá e para cá, até o capítulo 131, onde paramos. Existem, porém, infinitas possibilidades de leitura, e cada leitor pode (e deve) inventar a sua. Como os meninos que abrem e fecham páginas da web, podemos abrir e fechar os capítulos de “O jogo da amarelinha” sem nenhum apreço pela ordem, qualquer ordem. Guiados, unicamente, pelo impulso e pela sedução.E, por que não, pela alegria. Há entre o romance de Cortázar e os meninos amarrados nas redes da web, contudo, uma importante diferença. Em “O jogo da amarelinha”, o leitor deve fazer uma escolha a cada página, ou naufragará.Na navegação on-line, ao contrário, imerso em um oceano de links, imagens e janelas, o leitor é arrastado por um repuxo irreversível, que o agarra pelos pés (ou melhor: pelas mãos) e não o larga mais. Vinte e quatro anos depois de “O jogo da amarelinha”, o filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser (1920-1991) publicou um ensaio que me ajuda a ligar os dois mundos. Chama-se “A escrita: há futuro para a escrita?” (editora Anna Blume, tradução de Norval Baitello Jr.). A história da internet é recente, começa no início dos anos 1990. Lançado em 1983, o ensaio de Flusser se revela visionário. Pois é a partir da tempestade de imagens da web que passamos a nos perguntar, aflitos, se há um futuro para a escrita. Os pais reclamam que os filhos não leem. Na web, é verdade, eles leem e escrevem todo o tempo, mas movidos (puxados) por outro sentido: o do arrastão, e não o do pensamento. Na escuridão da caverna, parecem fisgados por uma trama hipnótica. Sim: eles me lembram prisioneiros.Já quando abrimos um livro, ou bem o “editamos” (ordenamos) com nossa imaginação, ou não haverá livro algum. E, para imaginar, é preciso parar e respirar. Toda leitura, diz Flusser, é “asmática”, isto é, impõe pausas.A escrita, ele me sugere, é o contrário da web. Eu mesmo, hoje, frequento o reduto mais sossegado (e já “antigo”) dos blogs. Afora esses nichos em que a palavra resiste — e eles estão, sobretudo, nos sites de informação —, a rede se torna, porém, uma engolidora de palavras. Vilém Flusser vem em meu socorro com a imagem clássica do tapete. Sobre os fios verticais da urdidura, o tapeceiro “narra” sua trama — isto é, costura um tapete. Sem a urdidura para sustentá-la, a trama é impossível, simplesmente desaba. Ao contrário, sem o esforço da trama, a urdidura não passa de um deserto. Algo assim acontece com a escrita. “Quem escreve tece fios, que devem ser recolhidos pelo receptor para serem urdidos”, diz Flusser. O escritor tece sua trama, mas ela só faz sentido quando urdida pelo leitor. Textos devem ser “concluídos” pelos outros. Cada leitor, à sua maneira, urde (lê) uma trama e lhe confere uma forma. Logo: para cada leitor, uma trama é outra trama. O alfabeto, recorda Flusser, organiza a língua. Antes dele, o mundo era feito só de imagens e de murmúrios — isto é, de mitos. A escrita é uma luta feroz para organizar a língua. O escritor ordena as palavras e lhes dá direção — ele as “edita”. Com isso, a escrita (a literatura) supera a consciência mágico-mítica — aquela que se define pela adoração das imagens — e nos impõe, em seu lugar, uma consciência histórica. Ela nos dá não só a história, mas o pensamento. Na caverna da web, ao contrário, tanto a história (o tempo) como o pensamento (a pausa) parecem ausentes.Aqueles meninos e meninas da lan são adoradores de imagens — ainda que muitas delas sejam feitas de letras. Não se trata aqui de combater a web! — o que, de resto, seria inútil, além de uma estupidez. Flusser nos mostra, porém, que o mundo contemporâneo ultrapassa a consciência linear e histórica da escrita para fazer, em um sistema mecânico e luminoso, um retorno ao mito. Não mais os mitos dos sonhos e dos heróis, mas os mitos em série dos aparelhos. Sim, nas ondas frenéticas da web os meninos escrevem, mas a rapidez e a dispersão conferem outro status a esta escrita. Em vez de, a cada parágrafo, “violarem” a língua, como Flusser define o trabalho do escritor, nela se afogam. Em vez de escritores, funcionam como operadores de máquinas, presos a rotinas irreversíveis. No mundo virtual, a realidade não tem limites, isto é, não tem vírgulas, pontos e pausas. Não pensa. Diz Flusser que o computador substitui, de modo inexorável, as funções espirituais do homem. Não se trata de lutar contra a invasão inevitável dos aparelhos, ou de cultivar uma fobia ao tecnológico. Acontece, porém, que esta grande colcha das imagens surge em um momento histórico de grave desilusão em relação ao progresso e ao pensamento. Filho do progresso e do pensamento, o século 20 nos levou a um mundo doloroso e indomável. Há um desencanto — e a mais pungente imagem dele é a dos meninos reclusos nas cavernas das lan. Ali se entregam a uma orgia de imagens e a um mastigar enlouquecido de palavras, que agora — como nos tempos míticos — voltam a se organizar em círculos e a girar e girar, sem qualquer desejo de sentido. Será que leem? Sem o exercício da urdidura, a trama se torna só um chicote louco, que nos açoita e fere. Deixamos de pensar — o que é o mesmo que deixar de ler. Perdemos nossa interioridade, desistimos de nossa subjetividade, e preferimos o festim de uma grande rede. No grande arrastão das cavernas, Flusser me ajuda a ver, é o pensamento que dança.”

Um comentário:

Maria Amelia disse...

Muito bom o texto, Roberto. A sensação de que as idéias poderiam ser melhor aprofundadas e de que o pensamento está "dançando" demais traz uma sensação de incompletude e uma enorme insatisfação,para mim, leitora "da antiga".