domingo, agosto 17, 2008

Um pouco de literatura para refrescar o final de semana - II

O mesmo caderno Prosa & Verso publicou hoje, o primeiro dos dez finalistas deste ano, do concurso de contos do caderno do jornal O Globo. É um primor que o blog resolveu disponibilizar para os leitores que apreciam algo para além das eleições: Fidelidade Vida minha, perdoa, vai? Fiz de tudo pra chegar antes, mas você sabe como essa cidade fica um inferno no carnaval. Antes das oito da manhã de sábado tomei um banho demorado, vesti aquela camisa que você tanto gosta, comprei rosas vermelhas.Mas no caminho esbarrei como Zeca, aquele nosso antigo vizinho, na porta do bar. Começamos a falar sobre você. E você sabe, amor, que quando o assunto é você nem vejo a hora passar. Quando acabei de tomar um gole, corri para te ver. Mas no caminho fui arrastado pelo Bola Preta. Mais de 300 mil pessoas, mal dava pra respirar. Perdi as suas rosas e fui arrastado até a porta do Odeon, onde encontrei a Marina. Lembra dela, querida? Aquela magrela, que você teimava em dizer que me dava mole. Coitada, nunca viveu amor como o nosso, nunca acreditou nos homens. Tenho pra mim que é trauma do pai, alcoólatra, que, diziam, batia nela, nas irmãs e na mãe. Quando a vi no Bola, bêbada, chorando feito criança, morri de pena. Você me conhece bem, sabe que seria incapaz de deixar uma mulher largada na sarjeta. Enfrentamos o maior engarrafamento, ônibus e metrô lotados. E como há muitos anos não passava nem perto de Maria da Graça, onde ela mora, demorei a encontrar a casa.A coitada, de tão bêbada, mal se agüentava em pé. Fiz de tudo para vir embora, sabia que você ia morrer de ciúmes, mas era muito tarde. Tive que ficar no sofá. No domingo de manhã, Marina acordou antes do sol raiar Fez café, comprou pão, manteiga, queijo e geléia, tão agradecida que estava por tê-la resgatado do Bola, Não pude recusar a gentileza, uma mesa de café tão bonita, e acabei demorando um pouquinho mais do que previa.Mas assim que consegui, amor, peguei o metrô, saltei na Carioca e saí correndo pra Praça XV.Só que quando ia comprar o bilhete da barca, ouvi um choro de criança. Era uma linda menina vestida de Carmem Miranda, perdida em pleno Cordão do Boitatá. Olhos grandes, como os seus. Podia ser nossa filha, se você não tivesse tanto medo de engordar. Você sabe, amorzinho, que sempre quis ser pai... Encontramos a mãe duas horas depois, rodeada por dois policiais.Quando me viu, com a sua pequena Carmen no colo, ficou tão agradecida, tão agradecida, que me deu um abraço apertadíssimo e quase me jogou no chão! Cismou que tinha que me recompensar e conseguiu me arrastar para uma feijoada lá na casa da mãe dela, na Rocinha.Eu juro que não queria ir, mas minha avó me ensinou que nunca se deve recusar uma retribuição de um favor, que as coisas começam a dar errado se a gente não aceitar as graças dos outros. Precisa ver, vida minha, como a Rocinha é colorida por dentro.Vendo de fora, nem dá pra ter idéia. Me senti em plena Sapucaí: gente bonita, dentes de fora, confete no ar e o feijão da Dona Mirtes.É de lamber os beiços. Tanta lingüiça que acho que tinha uns dez porcos dentro. Pena que você nunca gostou de carne vermelha, ia te fazer muito bem, te deixar menos pálida. Confesso que exagerei nas caipirinhas pra compensar o sal do feijão e aliviar a saudade, que quase fez meu peito explodir quando ouvi as rosas do Cartola. Acordei já na segunda à tarde na varanda da Dona Mirtes, e tracei um pão com mortadela e café preto pra curar a ressaca. Saí da Rocinha correndo, decidido a ir logo pra Niterói, mas enquanto esperava o ônibus na orla, dei de cara com aquela galera das antigas, que jogava bola lá em Madureira quando eu era garoto.Pra quem já tinha demorado tanto, achei que não ia fazer mal atrasar mais uns noventa minutinhos e entrei na pelada com eles. Marquei onze gols, meu amor. Onze! E a goleada teve que terminar em cerveja, na praia de Copacabana. Ao ver as ondas quebrando com tanta delicadeza, lembrei da primeira vez que te beijei. Lembra, querida, em frente ao Posto 6? Você quase se jogou na areia...Saudade filha da mãe de você, que só piorou quando ouvi as marchinhas do Rancho Flor do Sereno. Passei a madrugada no ponto de ônibus, esperando uma condução qualquer que atravessasse a ponte. Mas foi em vão. Lá pelas cinco da manhã, um sujeito com roupa de mulher veio reivindicar metade do banco público. Esbravejei na hora, mas quando olhei pra cara dele logo vi que não me era estranho. Você não vai acreditar, querida, esse mundo é mesmo um ovo! Era o Josué, aquele meu primo de Sergipe que se mudou pra cá atrás de uma mulher. Vendeu a casa, deixou a plantação, só para vir pro Rio atrás da safada. Viveram uns meses juntos, mas ela logo foi morar com outro. E o coitado do Josué agora vive perambulando, moribundo, pela cidade. Pena que nem toda mulher é como você: fiel e amorosa. Pra animar um pouco o cara, o convidei pra comer uma buchada de bode lá em Santa Teresa. Pelo menos pra amenizar a saudade da terra natal. Comemos até não poder mais e o papo até que ia bem. Mas quando eu disse que precisava ir embora pra te ver, tive que me segurar pra não meter a mão na cara dele. Ele riu de mim, acredita? Sujeito ingrato! Joguei as moedas na mesa e saí desembestado pelas ladeiras de Santa Teresa. Só pensava em te ver logo, sentir esse teu cheiro de flor aberta depois da chuva. Mas não era mesmo o meu dia.Na altura do Largo dos Guimarães, esbarrei com as Carmelitas. O bloco estava uma animação só, uma máscara mais linda que a outra. Como não conseguia passar, caí mesmo na folia. Afinal, carnaval é só uma vez ao ano, né, querida? Mas assim que o sol nasceu, peguei as barcas, comprei as rosas vermelhas que você tanto gosta, e estou aqui, em plena quarta-feira de cinzas, ao seu lado, mais apaixonado que nunca, cobrindo de beijos a sua lápide.

3 comentários:

Anônimo disse...

Essa é a vida que interessa...eh coisa maluca e bonita!

Anônimo disse...

Muito bom!
As últimas palavras desmoronam por completo as deduções a que a gente vinha chegando.
Valeu a pena a leitura.

Anônimo disse...

Lindo texto. É a vida cheia de controvérsias, mas de realidade. Carnaval tem a mística do amor brincadeira, mas que, por debaixo dos panos, fala de um sentimento mais do que sincero.
Feliz escolha nesses fragmentos poéticos ...